Blog do Inácio Araújo

O segredo da porta fechada

Inácio Araújo

Eu costumava rir com as histórias russas, cujo passado mudava conforme a necessidade de Stalin e seus epígonos. Não só eu, é verdade. Demorou para que compreendêssemos que o passado é a coisa que mais muda.

E acho que Roterdã, com sua mostra atrevida da Boca do Lixo, pode contribuir para isso. É uma chance de ouro para historiadores envergonhados.

Porque alguns dos cineastas que lá estavam têm direito a uma portinhola na história do nosso cinema: a de Rogério Sganzerla é maior, depois vem a do Khouri, e a do Mojica, e a do Carlão, e a do Candeias, por fim, abrindo-se nos últimos tempos, a do Callegaro. São portinholas.

João Silvério Trevisan, Jean Garrett, Cláudio Cunha, Ody Fraga, para ficar com os que tiveram filmes no festival, nem pensar. Só entram aqui por curiosidade.

Como bem lembrou Gabe Klinger, não são os únicos: há Guilherme de Almeida Prado, por exemplo. E Osvaldo de Oliveira, certamente. Há muitos outros.

O fato é que a história do cinema brasileiro conta-se a partir do eixo Cinema Novo/Embrafilme. Por isso eu uso a expressão portinhola: não havendo como encaixá-los nessa linhagem, só resta abrir umas notas de rodapé.

Mesmo a Palma de Ouro de “O Pagador de Promessas” não é mais do que isso, um acidente, uma nota de rodapé.

O que a mostra de Roterdã deixou claro é que se trata de outra tradição, de outro caminho. O caminho “artístico” do CN e o “sério” da Embrafilme só podem enxergar a Boca do Lixo mesmo como uma perversão.

Não era em outra coisa que pensavam Luis Carlos Barreto, Sonia Braga e a comitiva que foi a Brasília pedir mais censura contra as produções Boca do Lixo, em dado momento. No momento dos militares, fique claro.

E estavam certos em pensar em perversão.

O CN se quis mais europeu, mais Rossellini. A Boca do Lixo nasceu mais americana, mais Nouvelle Vague.

Cinema comercial. Não eram outra coisa “O Bandido”, “A Mulher de Todos”, “O Pornógrafo”, “As Libertinas”, “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”, “Meu Nome é Tonho”, etc.

Havia também os miúras, como “A Margem” e “Orgia ou O Homem que Deu Cria”, entre outros.

Havia muito presente a idéia de filmes para encher os poeiras e serem esquecidos. A parte de serem esquecidos supõe um certo charme de Rogério Sganzerla, que criou a frase. O essencial nela é o seguinte: o cinema brasileiro será popular ou não será.

Bem ou mal (mal, quase sempre) esse viés desenvolveu-se na Boca do Lixo. Não importa que os filmes já não tivessem muito a ver com a proposta dos primeiros realizadores implicados.

Mas que se criou um ciclo de filmes autosustentável, para usar uma expressão agora corrente: que, graças às leis de obrigatoriedade, se garantia pela simples presença das platéias.

Algumas revisões

Alguns dos filmes vistos ou revistos em Roterdã:

“O Império do Desejo” – mudou um pouco. O lado iconoclasta, provocativo, que tinha, hoje interessa menos; cede à tremenda informação que o filme nos dá sobre alguns usos e costumes não só de comportamento como políticos nos anos 1980. Lá estão maoístas, direitistas, oportunistas diversos, hippies e capitalistas. O personagem do canibal que a todos deglute é absolutamente exemplar. Um filme precioso de Carlos Reichenbach, a colocar na lista dos melhores do nosso cinema. O pessoal de Roterdã lotou a sala e acho que achou mais ou menos a mesma coisa.

“A Margem” – continua o que era: para mim, o segundo melhor Candeias, depois de “Tonho”.

“A Opção” – continua o que era: um filme ruim. Para mim, o problema duplo de Candeias, a partir de certo momento, foi: 1. a necessidade de fazer “social” (de esquerda); 2. uma autosuficiência que o levava a pensar que podia fazer tudo (fotografia, montagem, roteiro, produção, direção) e com cada vez menos dinheiro.

“Snuff – Vítimas do Prazer” – acho, e o Júlio Bressane (que estava lá) também, o melhor filme do Claudio Cunha. Essas coisas que implicam brutalidade, é nelas que CC se dá muito bem. Vi o filme no fim de 1979 e foi o brasileiro, na época, que mais me impressionou. Resiste bem. Já “Oh! Rebuceteio” é uma paródia de “Oh! Calcutá” que interessou bastante, acho que pela presença de certo humor no sexo explícito, à platéia que estava na Holanda.

“O Pornógrafo” – sempre atualíssimo e, mais do que isso, divertidíssimo.

“Orgia” – o mais radical, expressa muito a radicalidade antigoverno, anti-acomodação daquele momento (1969, por aí). Trevisan, aliás, continua igual. Quanto ao Cinema Novo, o filme provoca: Trevisan não gosta nada. É a vertente mais política do grupo e do que foi a Boca.

Não revi o Khouri, nem o Mojica, nem o Sganzerla, que já vi muito e recentemente. Não vi “Fuk Fuk à Brasileira”, do Jean Garrett. Ele merecia ter lá algo como “A Mulher que Inventou o Amor”, mas não foi possível, por falta de cópia, acho.

Vi apenas um fragmento do filme do Ody. Nele, há um homem com um pênis na cabeça e outro no lugar habitual. Parece bem humorado. Mas não gosto do cinema do Ody, acho que não começaria a gostar agora.

Abrir a porta

Me parece mais do que hora de, finalmente, se partir para compreender esse cinema de imensa diversidade, de altos muito altos e baixos deprimentes, mas que é preciso parar de ver como um desvio. Ele está aí, existe, precisa ser visto e revisto.

Acusá-lo de “cinema comercial” é retomar a mesma acusação que se fazia a Hitchcock até que virasse o Hitchcock que hoje conhecemos. Com o perdão da comparação.

A questão é: ser comercial não é um pecado.

Depois, há a degeneração. Como esse cinema vai piorando em condições de produção. Por quê? Há toda uma série de indagações que ele nos faz. Deixá-lo de fora não ajuda nada, e, pelo contrário, atrapalha à beça.

As trevas e seu reverso

A propósito, a Versátil está lançando ''Quando Desceram as Trevas'' (Fritz Lang), ''Madame de…'' (Max Ophuls) e ''Os Ambiciosos'' (Buñuel).

Indispensáveis.

Há também ''Os Visitantes da Noite'' (Marcel Carné). Esse eu posso viver sem.

Post-scriptum

A imagem que ilustra o cabeçalho do post foi tirada so site O Cinema da Boca do Lixo, com diversas fotos tiradas por Ozualdo Candeias nos anos 1970-80. É um documento obrigatório para quem quer saber o que foi a Boca.