Blog do Inácio Araújo

As belezas do “Xingu”

Inácio Araújo

Até aqui o cinema do Brasil criou épicas negativas: derrotas, basicamente. A saga dos Villas-Bôas no Xingu me pergunto se é “vencedora” ou não.

Mas os elementos são interessantes. Há a Marcha para o Oeste, primeira grande empreitada de conhecimento territorial, se a gente não pensar nos Bandeirantes ou, talvez, Rondon. Aqui está o nosso faroeste, de certa forma.

Há uma visão de encontro do país consigo mesmo que é importante. A rigor, não conhecemos os índios. Temos deles uma idéia muito primária. São ou “os bugres”, na concepção mais preconceituosa (e que nos envolve a todos: terra de bugres, dizia-se antes) ou os “primitivos”.

Esse segundo caso é a concepção da antropologia do tempo de Rondon, Roquete Pinto e tal. O índio é nosso homem pré-histórico. Nossa tarefa, portanto, é queimar etapas, trazê-lo à civilização.

Os Villas-Bôas, ao menos no filme, formulam a coisa de outro modo, mais próximos da antropologia estrutural. Não sei se é coisa do filme, mas a idéia deles é mesmo essa: quanto menos contato melhor.

Ponto dois: é um filme de aventuras e de aventureiros. De caras que não aguentam a civilização, a cidade. Acham que liberdade é na selva. Mais ou menos como os cowboys do Velho Oeste.

Agora, é interessante como essa empreitada (a deles, mas também a do filme) acaba indo na direção oposta à da antropologia pré-Levy Strauss. Quer dizer: o importante é civilizar o branco, não o índio.

E nesse sentido é que eu vejo uma épica a desbravar. A do conhecimento do outro que há em nós (a imagem final do índio de uma tribo cujo nome esqueço, a última a fazer contato, é impressionante, porque já não fala dos índios que conhecemos, mas de outros).

Tenho a impressão de que o sucesso desse filme dependerá muito não apenas da aceitação da saga dos Villas-Bôas, como, sobretudo, de um desejo de encontro dos brasileiros consigo mesmos.

Penso que isso não diz respeito apenas aos índios. E volto à imagem belíssima e terrível de alteridade que é a última figura do índio no filme. Trata-se também de ver as diferenças que existem entre nós mesmos, playboys e manos, como dizem, ricos e pobres, cultos e incultos.

Não é fácil. Não será fácil. Será tão difícil como abordar os índios, entendê-los. Vejo meus colegas jornalistas em geral revoltados com um manual escolar em que a “norma culta” não é a única norma. A gritaria é análoga à do “mata índio”, ou “índio é atrasado”.

Me parece que é necessário um pouco mais de compreensão pelos outros. Não se trata de ensinar que o certo é “nóis vai”. Trata-se de remover o pesado estigma que paira sobre quem fala errado. Ou escreve errado.

Meus colegas jornalistas sabem o quanto sofrem com a norma culta. O quanto os jornais investem em professores de língua para evitar ao menos erros escabrosos. Talvez em função dessa disciplina terrível eles tenham criado um respeito excessivo, ao meu ver, à norma culta.

Se a gente for ver nossos clássicos, eles pululam de erros. Felizmente.

Que eles tirem esse peso maldito de nossas costas. Que as pessoas aprendam a escrever, aprendam a norma culta, mas sem esse respeito religioso, respeito imobilizante.

Essa segunda parte parece que não tem nada a ver com “Xingu”, mas tem. Tem também o fato deCao Hamburguerter feito um bom filme antes. De aqui ter ido mais longe.

O filme anterior era “O Diaem que MeusPaisSaíram de Férias”. Ou quase isso. Era sobre guerrilheiros. Agora foi ao Xingu. Ver os índios. Mas os índios não são o único episódio do Xingu, dessa parte do país, não é?

Me parece que apontar para essa possibilidade de os habitantes do país se verem e se reconhecerem uns nos outros (não pensarem, os ricos: ah, eu sou europeu, não sou daqui etc.) é uma grande coisa.

Cinema que faz sentido.