Blog do Inácio Araújo

Douglas Sirk Universal

Inácio Araújo

Segue, abaixo, a íntegra da preciosa entrevista de Eduardo Simantob com Matthias Brunner, feita em 19/4/2012 e editada na Ilustrada, da Folha, no dia da inauguração da Mostra Sirk no CCBB.

Eduardo Simantob – Como você conheceu Douglas Sirk?

Mathias Brunner – Foi no início dos anos 70, 1974 se não me engano, no Festival de Locarno. Ele vivia em Lugano na época e sempre reclamava de que nada acontecia no Ticino (cantão italiano da Suíça) a não ser o festival de cinema, que ele e sua mulher Hilde frequentavam todos os anos incógnitos, misturando-se ao público normal sem sequer pedir credenciamento. Alguém que nem me lembro nos apresentou e eu não era nada estúpido e logo imaginei que poderíamos fazer algo juntos no futuro. Logo comecei a preparar uma retrospectiva Sirk e começamos a nos encontrar com frequência em Zurique, que eles adoravam visitar, ficavam sempre no mesmo hotel, iam sempre ao mesmo restaurante vegetariano, muito modesto, o que era muito conveniente para mim na época, pois além de vegetariano, eu também não tinha dinheiro sobrando para jantar fora o tempo todo. Mas as visitas deles eram sempre uma ocasião festiva, fosse para jantares em minha casa ou na casa de meu parceiro na época, (o galerista) Thomas Amman.

ES – Isso então se passou bem quando a obra de Sirk estava sendo reavaliada e revalorizada por uma nova geração de cineastas…

MB – Exatamente. Foi quando Fassbinder escreveu aquele maravilhoso artigo sobre Sirk; Godard, Truffaut e os outros franceses também começaram a citá-lo como influência, e também quando saiu o livro de Jon Halliday (Sirk on Sirk). Kathryn Bigelow e eu então fizemos uma grande entrevista com ele para a revista Interview, de Andy Warhol. Na época também conheci Elisabeth Leufer, que se tornou uma grande amiga do casal, quem escreveu a primeira biografia de Sirk em alemão, e ontem mesmo recebi um telefonema de um historiador do cinema de Hamburgo que está escrevendo uma nova biografia de Sirk que deverá ser lançada agora em setembro/outubro.

ES – Esse processo de reavaliação da obra de Sirk dava-se da mesma maneira entre os jovens cineastas alemães e americanos, ou havia alguma diferença de abordagem?

MB – Na verdade ele era muito mais apreciado na França, os franceses de fato são os primeiros a merecer o crédito pela “redescoberta” de Sirk, especialmente o pessoal da Cahiers du Cinéma, mas também da Positif, e só depois vieram Fassbinder e Jon Halliday, antes que essa onda se espalhasse por toda a Europa, incluindo aí a Itália, onde Bertolucci e Bellocchio eram os grandes entusiastas.

ES – Só Hollywood que levou mais tempo para apreciar a obra de Sirk…

MB – Hollywood definitivamente levou muito mais tempo, até porque Sirk deixou lá uma imagem de diretor caprichoso. Para Hollywood, a obra de Sirk era considerada como “filmes de choradeira” (handkerchief films), melodramas para as tardes das donas-de-casa.

ES – Por acaso Sirk expressou em algum momento seus rancores em relação à Hollywood?

MB – Não, jamais. Era mesmo muito esquisito, pois ele tinha dezenas de motivos para reclamar de sua experiência nos EUA. Ele foi mesmo abusado pelo sistema e nem ao menos foi remunerado decentemente. Ele realizou um sucesso após outro para a Universal e eles, em algumas situações, pagaram-no com ações da empresa, e quando ele deixou o estúdio – e esse foi o seu grande erro – Sirk acreditava que algum novo gênio iria tocar a Universal e valorizar as ações, mas o que se sucedeu foi a grande crise dos estúdios de Hollywood nos anos 60. Não havia mais Minelli nem Sirk nem uma nova geração brilhante, e o que Sirk havia guardado não deu nem para sustentar a casa que ele mesmo construiu no Ticino, e que logo depois teve de vender para comprar um apartamento super modesto em Lugano onde ele e Hilde viveram até o fim da vida. Claro que dava para perceber que ele não estava contente com essa situação, mas ele ainda tentou dar um jeito. Lá pelos idos dos anos 70 o video-cassete começou a ficar popular e ele tentou, junto com outros diretores, como Martin Scorsese, fazer alguma coisa para ganhar algum dinheiro com essa nova mídia, mas no fim não deu em nada. Isso certamente o incomodava, mas ele não se deixava amargar. Ele era nobre demais para isso; talvez em seu íntimo ele sofria com isso, mas nunca deixava transparecer nada.

ES – Sobre quê vocês costumavam conversar?

MB – Sobre tudo! Ele se interessava por gravuras chinesas e japonesas, assim como por poesia alemã, política, e, claro, filmes, e fenômenos sociais, a única coisa que o entediava mortalmente era fofoca. Ele era extremamente intelectual, extremamente ligado nas coisas do seu tempo, lia jornais do mundo todo, era membro da Sociedade de Museus da Suíça (Museumgesellschaft), e adorava vir à Zurique onde podia achar todos os jornais e revistas do mundo.

ES – Ele comentava também sobre a sua experiência de retorno à Europa?

MB – Sim… dizia-se que ele voltou à Europa porque em Hollywood ele estava estafado (burnt-out), no fim de suas forças físicas e mentais, e sair de lá era a única saída para salvar sua vida. Mas Fassbinder me disse, e outra pessoa confirmou a tese, que ele tinha uma outra mulher em Hollywood, alguém bem dentro do sistema, e que trabalhava na produção de seus filmes. E por isso Hilde quis tirá-lo de lá… mas vai saber, essa história até hoje não foi provada.

ES – Você tem aqui nos arquivos caixas e caixas de manuscritos originais, mas Sirk chegou a publicar alguma coisa em vida, ou postumamente?

MB – Não, nada. Ele não tinha nenhuma ambição literária, senão ele certamente teria dado um jeito de publicar. Escrever para ele era uma coisa muito pessoal, uma satisfação para a alma. Como você pode ver, os manuscritos estão em estado bem cru, ele não se preocupava em retrabalhá-los ou reescrevê-los. Mas Hilde escreveu um roman à clef sobre suas relações, e ela bem que queria publicá-lo, mas você viu o manuscrito, e ele é muito difícil de entender, mesmo apesar de estar datilografado. É um tanto tedioso, confuso, não está muito bem escrito. Eu creio que ela começou a escrevê-lo tarde demais.

ES – Como foi que esse material acabou em suas mãos?

MB – Eu era tamanho fã deles, toda vez que ia à Hollywood – e eu ia pelo menos duas vezes por ano – eu procurava e comprava toda e qualquer memorabilia sobre Sirk. Fotos, cartazes, posters etc, e eles um dia me perguntaram se eu não gostaria de abrir uma Fundação Douglas Sirk. Isso foi uns dois anos antes da morte de Sirk, e Hilde  me deu dez mil francos suíços para começar, e depois a Cinemateca Suíça e a Prefeitura de Zurique também contribuíram.

ES – E há ainda mais material em algum outro lugar?

MB – Não. Há certamente cartas pessoais, mas elas são propriedade dos destinatários.

ES – E que você pretende fazer com o arquivo?

MB – Alguma hora vou passar tudo para a Cinemateca Suíça, mas no momento ela passa por uma grande reforma e estou esperando as coisas se definirem lá – assim como certas garantias quanto ao uso e conservação do material – para realizar a doação.

ES – Alguma vez ele discutiu com você as razões de haver parado de filmar?

MB – Sim. O estúdio o espremia tanto, Sirk realizava dois a três filmes por ano… se ele fosse um Godard, filmando de improviso, tudo bem. Mas Sirk era um perfeccionista, e a máquina de Hollywood também era, é, muito exigente. Assim que em um certo momento ele se deu conta que estava exausto. Sirk tinha outros interesses, Hilde também temia pela sua saúde.

ES – Quem você considera, entre os então jovens diretores, os mais significativos na revalorização da obra de Sirk?

MB – Kathryn Bigelow, John Waters e Todd Haynes, Claude Miller, George Cukor e mesmo Vincent Minelli… mas também não podemos esquecer de Almodovar, e aquele diretor turco, Isbedek (????). Todos eles adoram Sirk, e Sirk de fato pode ser considerado como o pai de toda uma geração de jovens diretores que amam o melodrama e que reconheceram que ninguém conseguiu trabalhar esse estilo melhor que ele.

ES – E quem deles teve um contato pessoal com Sirk?

MB – Bigelow, Bertolucci, Fassbinder, Daniel Schmidt, Tavernier, Scorsese…

ES – Godard também?

MB – Não, apesar da proximidade geográfica (Godard vive na Suíça francesa), ele nunca procurou Sirk.

ES – Pessoalmente, como você descreveria Sirk? Ou melhor, o que mais lhe impressionava em sua personalidade?

MB – O que mais me impressionava era mesmo a sua modéstia. E a elegância com que ele se expressava, nunca conheci alguém que falava e discutia de maneira tão distinta, e isso certamente devido ao seu conhecimento extremamente rico e variado. Ele era sempre muito focado nas coisas que lhe interessavam…

ES – Ele parecia ser uma pessoa bastante sóbria…

MB – Sim, bastante sóbria, mas ele adorava dar boas risadas também. Ele não era de beber nem tomar drogas, mas sempre que havia mulheres em volta sobressaía o seu lado galanteador, sedutor. Ele definitivamente gostava de flertar, mas sempre colocava Hilde acima de qualquer outra. Ele não era do tipo de paquerador barato, longe disso, até nisso ele se comportava com uma elegância extraordinária.

ES – E ele falava sobre a Alemanha?

MB – Ele sempre falava sobre a Alemanha, a Guerra era uma coisa que o incomodava muito, pois isso foi a pior coisa que aconteceu na sua vida, especialmente no que se refere ao seu filho que foi mandado para o front com 16, 17 anos e morreu em combate. Sua primeira mulher era nazista, e quando se separaram, seu filho também se tornou um nazista fervoroso. Sirk teve que acompanhar o crescimento do seu filho por meio dos filmes de propaganda nazista, ele assistia a esses filmes para ter uma idéia de como seu filho se parecia. Era um pesadelo. Há um livro recente sobre isso, mesmo sem citar Sirk pelo nome, é um roman à clef de um jovem escritor que aliás trabalha com Scorsese.