Blog do Inácio Araújo

Alguns Dias em Tiradentes

Inácio Araújo

Para evitar qualquer dúvida, já que Jean-Claude entendeu outra coisa, e talvez não tenha sido só ele, deixo bem claro que gostei muito de “Eles Voltam”, de Marcelo Lordello.

Tem ali, para começar, uma coisa de que gosto muito: vejo o filme e tenho tempo de, simultaneamente, remeter a outros filmes de que gostei. Um deles: “Alemanha Ano Zero”. O mistério que carrega aquele menino, que não se dissipa, sua errância, são coisas que se aproximam da menina do filme. Há um mistério nela que supera aspectos mais trabalhados no filme (a família de classe média, a formação, etc.), que leva todo o tempo a perguntar quem é ela, afinal.

Lembrei também do “Au Hasard Balthasar” e acredito que pelo mesmo motivo, com a diferença que o burrico do Bresson não tem um mistério, ele é o mistério em si, me parece. E não tem controle nenhum sobre o seu destino, como a menina do “Eles Voltam” em parte do filme. É levado. Como ela.

Fiz algumas objeções pequenas ao filme. Como certos saltos dramáticos que talvez fossem desnecessários. Isso pode acontecer por alguma dificuldade de produção. Mas pode também ser uma opção de autor. Afinal, o Renoir fez dessas a vida toda e não deixou de ser Renoir (talvez tenha sido graças a isso, a essa liberdade que se concedia).

Minha única objeção real ao filme é num momento ainda inicial, depois que o irmão sai. A menina fica ali bem como o Balthasar do Bresson. Mas o filme nesse ponto se ressente de algum tempo forte, que poderia surgir em um terror dela, em um primeiro plano, algo que vinculasse espectador e filme, sem violentar o seu espírito (essa coisa hitchcockiana em que o Kiarostami é mestre).

No mais, o filme tem essa virtude de vincular o espectador, sobretudo pela revolta: que pais são esses que largam os filhos na estrada?, que irmão é esse que de repente desaparece?, etc. e tal.

O espectador fica intrigado e curioso. E com isso “Eles Voltam” se constrói como um filme de extracampo, muito interessante.

Ah, outra pequena objeção: me parece que em dado momento, quando a garota encontra uma casa burguesa e uma moça também burguesa ali, tudo vai bem, mas o fato de sua família possuir uma casa nas redondezas faz com que ela transite do estranhamento à familiaridade muito rapidamente.

São coisas pequenas, talvez irrelevantes diante da originalide do trabalho. E mais uma vez Pernambuco se afirma como referência nacional em termos de estética cinematográfica e também de uma liberdade que nem por isso contraria a intransigência.

Deixo de lado aqui alguns momentos muito bonitos, muito fortes do filme e passo raspando pela questão política tão presente, quanto discreta. Não sei se chega a ser uma “questão”. São notações sutis, porém incisivas. Percepções de nossos desequilíbrios. Mais ou menos isso.

Doce Amianto

Também para que não haja dúvida: não gostei nada do filme cearense. Digo isso com o coração na mão, porque um dos rapazes, muito simpático, dedicou inclusive a sessão ao Carlão.

Mas é outra coisa que tinha em comum com o Jairo Ferreira: não suporto filme barulhento. E “Doce Amianto” não dá nem um pequeno refresco aos ouvidos. Pelo menos enquanto eu estive lá.

Lúcia Murat

Não lembro o título, que me pareceu bem confuso, do filme da Lúcia Murat. Enfim… Lúcia é uma mulher corajosa, ninguém duvida. Passou por guerrilha, tortura, o diabo. Vem construindo uma obra que se pode criticar por vários aspectos, mas nunca pela coerência.

Aqui ela não abre mão de seus princípios: foi guerrilheira (ninguém chame de terrorista), acha a luta armada justíssima, acha que houve mortes indesejáveis (casualties of war), mas nunca assassinatos da parte dos guerrilheiros. Etc.

Quem quiser aceitar, que aceite. Quem não quiser, não aceite. Desde “Que Bom Te Ver Viva” é assim que ela mostra o mundo. Não mudou. Não se arrepende de nada. Não acha nem mesmo que a guerrilha esteve errada. Não fundamentalmente, em todo caso: para ela, se não houvesse luta o Brasil seria não um país mas uma lesma desossada.

Há um canto à sua geração ali. Que até ela reconhece exagerado aqui e ali. Mas é isso. À sua geração e a Vera Silvia Magalhães, a militante fascinante que Simone Spoladore interpreta.

O mais interessante é a convivência entre os velhos militantes e a jovem protagonista: essa fenda de tempo entre a juventude e a maturidade que o filme não preenche. A protagonista será sempre uma garota…

Dito isso, eis um filme “en dents de sice”, para falar na língua que Lúcia Murat prefere. Alterna momentos excelentes a bobagens também enormes.

Gosto da idéia de ela ter um filho homossexual. Fala de uma passagem geracional sobre a qual Irene, a narradora, não tem controle (claro, há um quê controlador nessas pessoas da política). Não gosto de em dado momento o filho e o namorado aparecerem na cama sem mais nem aquela. Não é um filme sobre a vida sexual. Agora, se ela mostrasse uma transa da Irene ou dos outros velhotes também… Aí tudo bem.

Companheiro Daniel

A homossexualidade, sabemos, é um preconceito forte entre o pessoal da política. É interessante a L.M. lutar contra isso.

Mas não é tão verdadeira assim essa tolerância toda ou o pessoal mudou muito.

Em dado momento ela cita o companheiro Daniel.

Um bravo, bravíssimo guerreiro, até onde se sabe, e homossexual.

Eu estava no meeting, em Paris, em que ele e seu companheiro se declararam homossexuais.

Foi quando eu dei graças aos céus de esses caras não terem tomado o poder, porque era tudo de um obscurantismo eu diria papal.

Houve um que garantiu, indignado, que entre cachorros não havia dessas coisas…

Por aí dá para perceber a barra.

Essa autocrítica, a dos costumes, eu não vi no filme. Num outro, talvez… Daria uma boa comédia, para ser bem franco.