A Intolerância e o Intolerável (ou: Caça aos Negros)
Inácio Araújo
Devo ter lido na minha infância umas dez vezes as “Caçadas de Pedrinho”.
Devo a Monteiro Lobato talvez o melhor da minha infância.
Mas é preciso admitir que existem ali demarcações raciais intoleráveis aos negros.
Dizer que o livro é clássico não é dizer nada, exceto apelar a um critério de autoridade.
E daí?
Os meninos e meninas negros continuarão a ser humilhados classicamente, apenas isso.
Serão humilhados com autoridade, com direito.
Como disse: adorei esse livro e o tenho no coração.
Não me importa nada se, pessoalmente, Lobato era racista ou não.
Provavelmente, não.
Daí o racismo que aparece no trato das pessoas de cor ser tão inocente. E ao dizer inocente pode-se dizer: naturalizado.
É como se aquilo fizesse parte da natureza, e não da história. Como se a escravatura não tivesse sido abolida pouco tempo antes.
E, vamos falar com franqueza, só hoje os negros começam a ser tratados com um mínimo de igualdade.
Com todo respeito, acho uma hipocrisia essa história de gente, seja políticos, seja literatos, brancos todos, a favor da liberdade de expressão e essa coisa toda.
Os únicos relatos que me comoveram de fato, que pareceram verdadeiros, foi de negros dizendo o quanto sofreram e se sentiram diminuídos com passagens de Lobato.
O mínimo a fazer, o mínimo decente eu digo, me parece que seria escutar os interessados a esse respeito, isto é, os negros, sem o que liberdade de expressão é nada mais que uma abstração sem conteúdo nenhum.
Pois a liberdade de expressão jamais será afetada.
Não se trata, é bom lembrar, de censurar os livros, de proibir sua circulação.
E sim: de livros de leitura obrigatória, recomendada, comprados pelo governo e distribuídos nas escolas.
Admito que estamos num país onde pessoas se dão o direito de recomendar o linchamento de nordestinos via twitter, o que parece mais grave (mas processar a moça, fazê-la perder o emprego, não consiste também em um grave cerceamento do direito à livre expressão?), mas isso não inocenta quem prefere a omissão diante dessa barbaridade praticada contra negros.
Lobato era inocente. Talvez não fosse nem racista. Seus livros reproduzem o tipo de tratamento corrente dado a negros no país até alguns anos atrás.
Não temos motivo para nos orgulhar disso.
Uma nota explicativa na abertura dos livros e quilos de recomendações aos professores é o mínimo que se pede.