Blog do Inácio Araújo

Arquivo : November 2010

Brasília, 43
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Inácio Araújo

Boa, a opção de Brasília.

Se hoje em dia outras mostras oferecem uma nota ao vencedor, o festival fechou questão em torno do ineditismo dos filmes.E, sobretudo, investiu nos novos.

Só fui lá para a homenagem ao Carlos Reichenbach, de quem “Lilian M”, restaurado, foi exibido na abertura. Mas nos dois dias seguintes deu para ver os filmes da noite.

O Carlão ficou literalmente encantado, e não sem razão, com “Contagem”, o curta mineiro de fato muito forte que acompanhou a exibição de “Transeunte”, de Eryk Rocha.

Entre os longas, minha maior curiosidade era em relação ao “A Alegria”, de Felipe Bragança e Marina Meliande, de quem eu já tinha visto “A Mulher Gorila”.

“A Mulher Gorila”, eu penso, devia ser refilmado, com um pouco mais de recursos (não muitos, em todo caso). O segundo filme me coloca, primeiro, uma questão marginal, mas que sempre me deixa de cabelo em pé: nesse tipo de parceria, quem dirige o quê?

No tempo dos irmãos Santos Pereira corria que um dirigia as cenas pares e outro as cenas ímpares. Corria também que eles brigavam o tempo todo. Acho que isso era piada. Mas os filmes não eram lá grande coisa.

“A Alegria” é um filme bem interessante. Bragança & Meliande têm atração por máscaras, por identidades que se transformam ou se duplicam.

Isso já estava na “Mulher Gorila”, talvez com mais intensidade, não repartido entre várias pessoas.

Aqui, algo tem um peso alegórico desnecessário. O menino que é baleado no início, tudo aquilo me parece desnecessariamente obscuro. Não conduz a nada.

Já o monstro marinho que aparece lá para o final é muito bonito, muito forte e também terrível.

Agora, o que mais me interessa (além da direção de arte que combina cores muito bem) são os personagens que vão atrás da vida, contra todos e tudo, se necessário.

Já o “Transeunte” de Eryk Rocha não me agradou no geral. A solidão de um velho é um assunto batido. A mulher morreu. Os amigos parece que não tem. Deve viver de uma aposentadoria modesta. De concreto, restam-lhe o radinho de pilha e o Flamengo. Para completar, optou-se pelo preto-e-branco, que me parece uma decisão infeliz.

No entanto, há uma cena muito boa e que dá conta de que o realizador pode muito bem controlar e desenvolver atmosferas. É o momento em que a sobrinha sobe para comemorar, rapidinho, o aniversário do tio. Ela faz a cena do bolo, da conversinha, da saudade da titia e tal, mas, providencialmente, deixa o namorado lá embaixo esperando por ela. Sinal de que logo dará o chapéu no homem.

No geral, o filme podia ser resolvido em uns 15 minutos. O trabalho muito cerrado em torno do rosto do ator ajuda a justificar que Eryk, ao apresentar o filme, tenha dado o ator, Fernando Bezerra (é esse mesmo o nome), como co-autor. De fato, o filme é ele.

A melhor surpresa dos dias em que estive lá foi “Contagem”, dos jovens Gabriel e Maurilio Martins. Um filme de final de curso, sem recursos, que em certos aspectos parece tateante. Mas o momento inexplicável (quando ocorre) do sorvete caindo no chão, da mão da protagonista, é notável. Eis uma coisa que só entenderemos depois, no final, porque há várias narrativas, cada uma preservando a subjetividade de cada personagem, a experiência que podem ter do evento. E a experiência de cada um tem limitações encantadoras, essa impossibilidade de saber tudo, de ver tudo – isso é que me parece, no fim, tematizado no filme. Dá para esperar outras coisas dos Martins (mais uma dupla e, apesar do nome, não são irmãos). O Carlão se encantou com o fato de eles serem fãs do Joseph H. Lewis. Tem razão: um fã do H. Lewis sente o celulóide com mais intensidade.

A julgar por esse início (hoje à noite é a premiação) parece que temos aí um festival prospectivo, bem interessante. Melhor um filme que as pessoas detestam, como parece que aconteceu com o do Tiago Matta Machado, do que a mesmice.

Para terminar: quando o festival não é o Hotel Nacional perde-se muito em convivência. Não só o HN facilita às pessoas se encontrarem, como as salas onde se passam as mesas são acessíveis, o sujeito entra, se não gostou sai, se gostou fica. Certo, a cozinha do HN é famosa por ser uma desgraça, mas essa vantagem compensa.


O ataque ao Alemão é “Tropa de Elite 3”
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Inácio Araújo

1) Quando esteve em Recife, acho que no ano passado, Costa-Gavras justificou a premiação de “Tropa de Elite” em Berlim por ver no filme uma denúncia da ausência e das falhas do Estado em relação à segurança pública.

Naquele momento, admita-se, quase todos nós que mexemos com cinema víamos no filme um perigoso elogio do policialismo.

Mas o filme se impôs e teve uma continuação. Gustavo Dahl escreveu a respeito que, com essa sequência, o cinema brasileiro deixava de ser insignificante.

Não são observações intrinsecamente cinematográficas, está claro. Mas vêm do cinema, de pessoas do cinema. Pode-se discordar, observar o viés sociológico etc. No entanto, é inegável que uma parte do cinema consiste em seu lado “significante”, em sua importância para o momento. Daqui a dez anos veremos o resto.

2) Mas, vendo o que ocorre no Complexo do Alemão, parece claro tudo que a atual operação de tomada deve ao filme.

“Tropa”, 1 e 2, deu à polícia, ao Bope em particular, uma credibilidade que nunca teve. Pode-se dizer que a operação aconteceria de todo modo, que existe o papel das UPPs, etc.

Mas esse apoio em massa da população (e dos meios de comunicação), deve-se a uma confiança nesses caras, o Bope, e mais extensamente o conjunto das forças de repressão, e essa confiança deve muito (para não dizer tudo) ao filme.

Antes dele, se alguém dissesse que a polícia apreendeu um quilo de maconha, qualquer um se via no direito de pensar que havia mais dez moitados.

O filme criou a idéia de uma corporação (ou batalhão) incorruptível.

A idéia agora é: se alguém quiser botar a mão na maconha, ou no dinheiro apreendido, ou o que for, vai ter o olho vigilante dos dementes (e incorruptíveis) discípulos do capitão Nascimento.

Por trás, se alguém tem dúvida, entra a tropa do Haiti, que ainda não entrou em filme, mas garante a retaguarda, por um lado, e a simpatia, por outro.

3) A ação no Alemão é o terceiro filme da “Tropa de Elite”.

Claro, ele é dominado pela retórica da TV.

É um produto da TV. E tem a TV como produto (aquela que mostra na hora).

O suspense é intenso, provocado minuto a minuto pelos âncoras e pelos comentaristas.

Há também a ação da polícia, que dá entrevistas se dirigindo menos a nós do que aos bandidos.

Mas o central nisso é que o imaginário construído (e aprovado) nos “Tropas” é que está agindo, está passando à ação. A aprovação prévia parece ter sido essencial à resposta do governo do Rio.

4) O trabalho da mídia é importante, diz na Globo um ex-Bope, comentarista de terror, ou de guerra.

Os canais de TV vão junto com a polícia na invasão.

Eles avalizam tudo.

Eles comentam tudo.

Eles garantem que o gordo patético preso junto com um outro é um perigo.

Um barão do tráfico?

Esse balofo sem camiseta, de havaiana e bermuda?

Não é que seja mentira. Talvez ele seja mesmo um perigo.

Mas alguma coisa soa falso nessa hora.

E quando soa falso, quando a imagem desmente, os locutores falam mais alto, repetem, repisam, notam o quanto esses caras são perigosos e tal.

Quando eles aparecem, eu abaixo o som e penso que o que está errado não está na cobertura da TV, nem na invasão.

E sim: se isso acontece é porque durante décadas e décadas se considerou que isso era uma questão de favelados, talvez “um modo de vida” dessa gente (para citar uma professora da USP entrevistada na TV Cultura: de fato, parece que há um desmonte da USP).

Volto à “Tropa”: gostemos ou não do filme, ele enfatiza a proximidade entre o morro e a praia, através desse exilado que é Nascimento: na anomalia geral, só um homem sem lugar traz a história ao momento. Como na ação policial de agora, não se trata de eliminar o passado e não vislumbrar o futuro, apenas de lembrar que existe algo de muito premente a fazer bem agora.


O dândi da montagem
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Inácio Araújo

Estava aprontando as malas para ir a Brasília quando recebi a notícia, a porrada na verdade, da morte de Mauro Alice, na terça-feira, 23 de novembro.

Era meu vizinho. Um homem gentil ao extremo, dotado de enorme cultura, que de certa forma encarnava a montagem moderna no Brasil, já que foi discípulo de Oswald Haffenrichter na Vera Cruz.

Era um excelente montador, o que se pode constatar facilmente vendo “Noite Vazia”, de Walter Hugo Khouri, ou “O Beijo da Mulher Aranha”, de Hector Babenco, entre os muitos que montou, ritmou ou mesmo salvou.

Era do tempo da emenda feita com cola, mas vivia em diálogo com montadores jovens, em especial com Cristina Amaral, gostava de ver filmes novos com o mesmo prazer com que discorria sobre os da sua infância e juventude.

Era também um homem elegante e sempre de ótimo humor. Nessa profissão em que é freqüente uns criticarem os outros, nunca ouvi uma palavra sua de restrição ao trabalho de algum colega. A única exceção, um montador que se atribuía trabalhos que tinham montados, na verdade, por Haffenrichter, que no entanto assinava apenas a supervisão de montagem nos filmes da Vera Cruz.

A última vez que o vi foi lançamento do livro com a seleção de minhas críticas feita pelo Juliano Tosi, na coleção Aplauso. Ele teve a generosidade de passar por lá, comprar o livro (o que implicava uma fila cansativa, posso garantir) e ainda vir falar comigo, pedir que autografasse…

Bem, eu o achei saudável, de boa cor, embora um pouco abatido ainda, mas já ouvira falar da fragilidade de sua saúde. Disse que gostei da cor. Ele replicou, rindo, que era efeito da luz.

Só agora me ocorre que havia alguma tristeza naquele jeito de comentar as coisas.

Vou sentir saudade de encontrar meu quase vizinho Mauro caminhando na rua, puxando conversa ou mesmo, eventualmente, dando aulas de montagem no meu curso.

(Volto amanhã ou depois para falar um pouco do que vi em Brasília).


Agressão à paulista
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Inácio Araújo

As imagens podem ser encontradas com facilidade: basta ir ao Youtubee procurar por “agressão av. Paulista”. Existem várias versões, salvo erro todas de canais de televisão, portanto cercadas por aquele blablablá característico.

Mas o que importa são as imagens da agressão vistas pelas câmeras de segurança, que constituem em princípio mais um elemento do policialismo do mundo contemporâneo. Elas existem para controlar comportamentos.

O que fizeram naquela madrugada, no entanto, foi o melhor cinema. Fizeram o que a maior parte dos cineastas tenta a vida inteira e não consegue: restituir ao mundo a verdade do mundo.

Não são imagens que custaram milhões. Não têm nenhuma intenção artística. Precisam até ser ajudadas pelo holofote que a imagem de TV lhes acrescenta para esclarecer quem é quem. As imagens mostram as coisas, apenas.

Em seus poucos segundos põem abaixo a conversa fiada do advogado dos agressores, por exemplo.

Mais do que isso, mais do que o próprio crime, trazem à tona coisas misteriosas, como a determinação dos agressores de tomar os agredidos como objetos. Não há na imagem nenhum sinal de que sejam homossexuais, ou romenos, ou morem na zona norte, ou torçam para tal ou tal time de futebol.

Nada.

Falar de homofobia me parece limitar a questão, quase desidratá-la. O motivo, no caso, é o que menos importa. Ele é, por natureza, irrelevante.

Por favor, não estou dizendo que homofobia seja uma questão irrelevante ou não deva ser combatida. Não é isso. Digo que os agressores encontrariam algum motivo para partir para cima deles, sejam homossexuais ou não. Poderiam ser correntistas das Casas Bahia ou qualquer outra coisa. Poderiam ser os nordestinos do hoje tristemente célebre twitter.

O fato não é isolado. É um lamentável sinal de barbárie e, se houver seriedade, autoridades buscarão entender um pouco disso. Não digo escutar esses psicólogos de ocasião que aparecem para palpitar sobre tudo. Que aparecem para aparecer, em suma. Não é isso.

Leio na seção de cartas da Folha alguém que parece ser um professor (ele não se declara tal, em todo caso) reclamando da tortura de dar aulas em escolas privadas, onde não se pode dizer “não” aos alunos.

É um indício. Na escola privada, os alunos são clientes. Têm que passar de ano. Essa é a regra que não raros pais endossam, no mais. Esse é um problema decorrente de não termos conseguido passar a uma escola pública de massa (e de qualidade), à qual a escola privada poderia complementar por diversos motivos (religiosos, procedência etc.).

Claro, isso é apenas um indício. Há muitas outras coisas nessa história. Inclusive aquelas pessoais e intransferíveis (ou transferíveis a amigos influenciáveis).

Enfim, vendo essas imagens lembrei do “Fúria” de Fritz Lang, dos célebres 17 planos, da sequência em que a imagem filmada e a verdade do mundo coincidem perfeitamente.

[uolmais]http://mais.uol.com.br/view/8338124[/uolmais]

Tenho visto muitas vezes imagens passíveis de interpretação. Por exemplo: o cara que pôs o dinheiro na meia. Isso não caracteriza crime. Pode ter sido por precaução, por medo de assalto, por não querer que a mulher visse aquela fortuna na conta conjunta deles. Enfim, é imagem sujeita a interpretação, como muitas outras.

Esta, não. É imagem rosselliniana: está lá não a imagem, mas o ato, a coisa. Isso é que conta. Isso é que é horrível. É um triunfo do cinema.


Brecht no cinema
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Inácio Araújo

É claro que, para o fã de cinema, o que realmente interessa na caixa “Brecht no Cinema” é “Os Carrascos Também Morrem”, que Fritz Lang fez logo após a execução de Heydrich, o “reichprotector” da Tchecoslováquia durante a Ocupação.

(Douglas Sirk fez, ao mesmo tempo, um outro filme sobre o mesmo assunto, “Hitler’s Madman”. Será interessante vê-los em conjunto, por conta dos diferentes estilos).

Mas há outros interesses, e não menores.

Primeiro, o fato de Bertolt Brecht, considerado um dramaturgo-chave do século 20, ter sido posto de lado depois da queda do Muro de Berlim e do comunismo, como uma desnecessária antiguidade. Talvez não seja.

O documentário na caixa o eleva às alturas. Parei de ver porque passava dos limites. Mas havia coisas interessantes, como o fato de Brecht suscitar enormes desconfianças dos dois lados de Berlim, ele, que sempre foi comunista.

(Bem, não era difícil provocar desconfiança naqueles dirigentes da Alemanha Oriental. Seria até comprometedor ser bem visto por eles).

Já “Kuhle Vampe” é um filme precioso: exemplar mitológico do cinema proletário na Alemanha do começo dos anos 30, na grande crise logo antes do nazismo. O mais interessante não é a dramaturgia, nem a ficção, para falar a verdade, mas as cenas em que se percebe o registro de um modo de viver, de pensar e de agir (agir politicamente, no caso).

Não sei se essa caixa da Versátil foi imaginada aqui ou veio pronta (ou quase pronta, porque há uma seção documental feita aqui). De todo modo, tenho a impressão de que essas caixas em que se operam aproximações podem emplacar neste momento em que o mercado de DVD anda capengando.

Quanto a “Os Carrascos Também Morrem”, sabe-se que o original foi muito mexido. De todo modo, a passagem da moça (a filha do professor) de quase delatora a resistente diz respeito a uma tomada de consciência levada com muita força por Lang.

Me chamou a atenção, também, o lado expressionista do filme. Na interpretação de Anna Lee isso é muito claro. Em aspectos da iluminação, também.

Uma perseguição final do traidor lembra muito “M”, no momento da perseguição do monstro.

* * *

BRECHT NO CINEMA

Disco 1:

A ÓPERA DOS TRÊS VINTÉNS (Die 3 Groschen-Opera). Alemanha/1931. Dir: G. W. Pabst

KUHLE WAMPE (Kuhle Wampe oder: Wem gehört die Welt). Alemanha/1932. Dir: Slatan Dudow

COMO VIVE O TRABALHADOR BERLINENSE (Zeitprobleme: wie der Arbeiter wohnt). Alemanha/1930. Dir: Slatan Dudow

Disco 2

OS CARRASCOS TAMBÉ M MORREM (Hangmen also die!). EUA/1943. Dir: Fritz Lang

OS MISTÉRIOS DE UMA BARBEARIA (Mysterien eines Frisiersalons). Alemanha/1923. Dir: Bertolt Brecht e Erich Engel.

Disco 3

A VIDA DE BERTOLD BRECHT (Brecht – Die kunst zu leben). Alemanha/2006. Dir: Joachim Lang

VISÕES DE BRECHT. Depoimentos de especialistas na obra brechtiana: Profa. Iná Camargo Costa (USP), Prof. Marcos Soares (USP) e Profa. Maria Sílvia Betti (USP)


Mostra, 2010 – Um balanço
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Inácio Araújo

O fim da Mostra SP, como sempre, traz um pouco de frustração: sempre faltou algo para ver.

Quem quiser corrigir e completar, por favor, sinta-se à vontade. Porque no sábado, depois de ver “Os Mistérios de Lisboa” eu disse chega, está bom pra mim, e nem cheguei perto do cinema no domingo.

Vi que o prêmio da crítica foi para “Mistérios”, com menção ao “Carlos” de Olivier Assayas. Eu teria feito o inverso, mas isso é apenas pessoal.

“Mistérios” é barroco, aquela câmera que não pára, aqueles enquadramentos inesperados, às vezes inóspitos. E aquela máquina de ficção, uma história saindo da outra o tempo todo, passeando entre realidade e teatro, lembrança, sonho, fantasia.
Quatro horas e meia, é isso?

“Carlos” tem uma hora a mais.

“Carlos” é o cotidiano do terrorista, desde jovem militante até ser o cara mais perseguido do mundo (não existia Bin Laden ainda). Uma trajetória fantástica, que Assayas narra com a mesma distância com que trata da herança de um pintor famoso.

Não é Carlos o mau, nem Carlos o herói. É Carlos só.

É difícil pra caramba, penso eu, porque são 5h30 sem apelo a bem e mal, certo e errado, mas o espectador não consegue desgrudar os olhos da tela.

Os medalhões

Houve os de sempre: Oliveira, notável, Kiarostami, prodigioso. E Godard me parecendo um pouco cansado num mundo que se tornou turístico. O turismo no lugar da política, eis o que parece mostrar “Film Socialisme”. Um filme irresolvido para um mundo idem.

“Tio Boomee”: o vencedor de Cannes. Num júri em que Tim Burton era o presidente. Coerente: a família conversa em torno de uma mesa de refeições, quando um fantasma passa a ocupar uma cadeira como se fosse a coisa mais natural do mundo. Lembra um pouco a umbanda.

A natureza, a presença da natureza é muito interessante em Apichtapong. Uma bela história, aquela dos macacos de olhos vermelhos. Mas a história desaparece de repente, e com ela os macacos. Não entendi.

O filme do Coutinho é espetacular, claro: pena que não será mais exibido.

O novo “Bandido” é claro que não encara o antigo. Mas é bom, se distingue da produção paulista em geral, remete a um outro momento sem perder a classe nunca. A concepção do som, sobretudo as vozes (do Ney Matogrosso, cuja figura é impressionante, e dos locutores), não me entusiasmou, longe disso. Mas o conjunto vale.

Não consegui ver o filme do Amos Gitai, nem o do Kechiche, entre outros que queria ver. Não vi o filme que ganhou a mostra, também.

Entre os filmes-homenagem, achei muito interessante o Scorsese falando do Kazan. Não todo, mas naqueles momentos em que fala do Sindicato de Ladrões é espetacular, porque pega bem a questão do filme onde, de repente, aparecem pessoas de verdade, porque os seres de Hollywood são em geral abstrados. E o que o Kazan faz em certos filmes é bem diferente do que se espera.

Ao mesmo tempo, acho um filme voltado ao mercado interno, onde a história da delação ainda pesa fundo. Ora a história do Kazan imigrante é muito mais interessante.

A da delação se resolve com uma penada: Kazan delatou e ficou um cineasta melhor. O que mais importa? Importa, sim: os que ele delatou já estavam todos devidamente fichados e delatados. A delação dele não revelou nada, exceto sobre ele mesmo.

Projeções

Há uma questão que não é menor: a das projeções.

Vi muita gente reclamando, inclusive as que viram “Carlos” no Arteplex. Me parece que, embora a projeção digital esteja generalizada, continua sendo necessário colocar o aviso na bilheteria.

E é preciso também melhorar a projeção digital, claro. Quem viu o “Kazan” na Faap viu tudo distorcido.

Eu vi o “Carlos” na Cinemateca/BNDES. Começou distorcido. Aí perceberam que a indicação na lata (4:3) estava errada. O formato era 16:9. Corrigiram e foi uma boa projeção.

É preciso entender que metade da Mostra é improviso, que não existe muito maneira de controlar previamente essas coisas, não há como visionar as cópias todas, etc.

Mas espera-se que o pessoal tenha preparo para fazer como o projecionista da Cinemateca, isto é, perceber que o formato não é aquele.

No que diz respeito a Mostra, em princípio é isso: nos vemos em 2011.

Digo isso também aos vários amigos com quem só consigo cruzar nos dias de mostra.


A Intolerância e o Intolerável (ou: Caça aos Negros)
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Inácio Araújo

Cena de "O nascimento de uma Nação" (1915), de D. W. Griffith

Devo ter lido na minha infância umas dez vezes as “Caçadas de Pedrinho”.

Devo a Monteiro Lobato talvez o melhor da minha infância.

Mas é preciso admitir que existem ali demarcações raciais intoleráveis aos negros.

Dizer que o livro é clássico não é dizer nada, exceto apelar a um critério de autoridade.

E daí?

Os meninos e meninas negros continuarão a ser humilhados classicamente, apenas isso.

Serão humilhados com autoridade, com direito.

Como disse: adorei esse livro e o tenho no coração.

Não me importa nada se, pessoalmente, Lobato era racista ou não.

Provavelmente, não.

Daí o racismo que aparece no trato das pessoas de cor ser tão inocente. E ao dizer inocente pode-se dizer: naturalizado.

É como se aquilo fizesse parte da natureza, e não da história. Como se a escravatura não tivesse sido abolida pouco tempo antes.

E, vamos falar com franqueza, só hoje os negros começam a ser tratados com um mínimo de igualdade.

Com todo respeito, acho uma hipocrisia essa história de gente, seja políticos, seja literatos, brancos todos, a favor da liberdade de expressão e essa coisa toda.

Os únicos relatos que me comoveram de fato, que pareceram verdadeiros, foi de negros dizendo o quanto sofreram e se sentiram diminuídos com passagens de Lobato.

O mínimo a fazer, o mínimo decente eu digo, me parece que seria escutar os interessados a esse respeito, isto é, os negros, sem o que liberdade de expressão é nada mais que uma abstração sem conteúdo nenhum.

Pois a liberdade de expressão jamais será afetada.

Não se trata, é bom lembrar, de censurar os livros, de proibir sua circulação.

E sim: de livros de leitura obrigatória, recomendada, comprados pelo governo e distribuídos nas escolas.

Admito que estamos num país onde pessoas se dão o direito de recomendar o linchamento de nordestinos via twitter, o que parece mais grave (mas processar a moça, fazê-la perder o emprego, não consiste também em um grave cerceamento do direito à livre expressão?), mas isso não inocenta quem prefere a omissão diante dessa barbaridade praticada contra negros.

Lobato era inocente. Talvez não fosse nem racista. Seus livros reproduzem o tipo de tratamento corrente dado a negros no país até alguns anos atrás.

Não temos motivo para nos orgulhar disso.

Uma nota explicativa na abertura dos livros e quilos de recomendações aos professores é o mínimo que se pede.


A volta da velha Cultura
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Inácio Araújo

O canal deixou de “fazer televisão”, que é o que mais a atrapalhava.

Quando se fala “fazer televisão” ou “linguagem de televisão” a gente já sabe que se trata, em linhas gerais, de imitar a Globo.

Pois bem: a Cultura já deixou de “fazer televisão”, que é o mais atrapalhava o canal.

Está sendo bem rápida a transição com João Sayad a dirigir a estação.

Algumas vezes, elementar. Voltaram os filmes. Ufa! Voltaram os documentário do Amir. Ufa! Já peguei até um Mazzaropi. Sendo que Mazzaropi foi, durante anos, o grande sucesso de audiência dessa estação.

Hoje não deve ser mais. Ainda assim, deve ter lá seus espectadores. E, sobretudo, seu retorno vale pelo retorno a um valor simbólico: o filme brasileiro de programa livre.

Também me pareceu muito interessante o novo/velho “Metrópolis” com Cadão Volpato. Em vez daquela chuva de reportagens anêmicas, completando a agenda, temos entrevistas no estúdio, com pessoas sentadas e tal.

O fato das pessoas sentarem, além de Cadão entrevistar muito bem, é animador. Significa que pelo menos terão tempo de dizer alguma coisa sem ser interrompidas pela edição por causa do “timing de TV” (mais uma convenção que se toma por verdade eterna).

O “Roda Viva” está bem vivo, a julgar pelo dia em que foi lá José Dirceu. Peguei só uma parte, mas estava um debate acalorado. Por vezes acalorado até demais. É preciso nesses casos, que imagino não sejam muito frequentes, tomar cuidado, porque que se há um lugar-comum sobre TV que é verdadeiro é aquele segundo o qual quando dois falam ao mesmo tempo, ninguém entende nada do que dizem. Quando quatro falam juntos, então…

Mas isso é o de menos: mil vezes isso do que a pasmaceira que andava vigorando.

Me pareceu que mudar o cenário, depois de décadas e décadas, faz sentido. Mas aquele verdão é difícil de encarar. Não sei o que o cenógrafo queria com aquilo.

Claro que algumas coisas precisam ser acertadas. Me parece interessante a fórmula do Jornal da Cultura com a M.C. Poli.

Ela sempre traz dois convidados para fazer comentários, o que é interessante. Mas esses convidados deveriam ser convocados a falar menos. Não vejo em que a opinião de um sociólogo sobre jogo de futebol poderia ser interessante, nem o que pensa um músico sobre os buracos na rua ou assaltos a banco.

Mas essas são questões de ajuste, numa coisa que parece estar voltando a adquirir cara de TV não comercial, que se chame educativa, cultural, pública, tudo isso junto ou o que for.


Política da imagem
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Inácio Araújo

Durante a campanha presidencial, algumas pessoas de vez em quando pediram que eu me manifestasse a respeito das coisas que aconteciam.

Na verdade, um fiz um pequeno comentário sobre o primeiro dia da propaganda política. Parei em seguida, porque era fácil intuir que seria uma campanha muito feia. Aliás não deu outra, como todo viu.

Então vou pular essa parte para ficar com a primeira manifestação da futura presidente (ou presidente eleita?) sobre cultura. Ela diz que quer abrir um cinema em cada cidade do Brasil.

A tarefa, já se disse, é impossível. Mas isso não tem muita importância. A direção é que conta. Abrir um cinema em cada cidade significa propor uma sociabilidade nova. Os cinemas fecharam, no passado, para virar igrejas (capital e interior), estacionamento ou prédios (grandes cidades em geral).

Quando fecharam é porque, na maior parte das vezes, já eram pouco frequentados. Voltar-se para o cinema significa, de imediato, uma tomada de posição em relação à cultura. Não há mais lugar para o hábito “natural” do cinema. Ir a uma sala é um gesto de cultura. Cultura antes de mais nada popular, acessível a todos, capaz de integrar-se mesmo ao processo educacional com mais facilidade do que hábitos como a leitura ou o teatro. Capaz de ajudar na alfabetização (há pouco, um escritor disse na TV que, para ler as legendas, é preciso empenhar-se para ler rápido), mas também abrir as pessoas para o mundo.

Não é preciso que cada cidade tenha uma sala. Mas a porcentagem de cidades com cinema no Brasil hoje (cerca de 9%) é lamentável. Imagine-se então que 91% das cidades estão esperando o DVD ou a TV para ver o “Chico Xavier”, o “Tropa 2” ou tantos outros. São cidades, a rigor, fora do mundo.

Mas esses filmes chegarão lá de um modo ou de outro. É o hábito de acompanhar, de ver os filmes, de esperar por eles, de conversar na saída da sala que essas cidades não possuem mais. Reencontrá-lo seria uma coisa preciosa. Torço para que dê certo.


O filme-coisa de Coutinho (3)
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Inácio Araújo

Outra questão levantada durante o debate diz respeito aos conteúdos da TV.

Primeiro, alguns assuntos são doentiamente recorrentes: o dinheiro, a beleza, o amor.

Existem separadamente, mas ao longo do tempo se associam naturalmente. Com dinheiro se faz tratamento de beleza (plástica, por exemplo), com beleza se consegue o amor.

Como os anúncios foram quase todos excluídos, me parece que o filme deixa de fixar algo bem importante, que é o fato de a TV ser uma máquina de vendas.

Na TV, o programa é o verdadeiro intervalo. O programa verdadeiro é o anúncio, portanto a venda, o consumo, a produção.

(Pleno emprego? Os sentidos podem mudar: o que ontem era alienação hoje parece outra coisa, de repente se torna aceitável, talvez indispensável).

Isso chama outra questão: Coutinho optou por uma montagem horizontal. Ela suprime programas, claro, trechos, ela opta por filmar o canal A e não o B em tal horário. Mas, basicamente, estamos diante de um zapping acrítico, que nada comenta, que em nada intervém.

O artista é também um não artista.

Mas existem inúmeras outras possibilidades. Uma montagem temática.

A religião dos pastores ligando-se ao programa policial.
Ambos são pregadores. Ambos acontecem no transe demiúrgico dos seus apresentadores. O cara do programa policial achando que se matar os criminosos o crime estará erradicado. É a estratégia do exército brasileiro combatendo Canudos, mais ou menos. O pastor achando que precisa tirar o diabo do corpo. Será a mesma coisa?

A inocência do programa culinário pela manhã e os programas de embelezamento da tarde. Parece que a gente engorda de manhã e trata de emagrecer à tarde.

A TV que se debruça sobre si mesma na forma de fofocas sobre os próprios artistas (a vida pessoal, os casamentos e descasamentos).

À tarde, a beleza se confunde com saúde. À noitinha, com a fama.

Existem, enfim, outras formas de interpretar o material.

Todas supõem a intervenção do artista, claro, e Coutinho se recusa a isso.

Cabe a nós fazer essas montagens.

Ou outros filmes.

O filme do zapping, por exemplo: do SBT à Globo, da Globo à Bandeirantes e desta à Record, são mundos diferentes que manejamos, por vezes, são mundos que se oferecem à nossa escolha. O que ser? O que queremos ser? O que podemos ser?

A TV é uma máquina de dizer quem devemos ser.

O fim de “Tio Boomee”: as pessoas hipnotizadas, transportadas para dentro da tela, não importa o que esteja passando, não importa o que acontece ali.

Chega.

“Um Dia na Vida” é um filme-coisa alucinante, notável.

Produz o inesquecível a partir do material mais esquecível do mundo.

Seria possível conversar horas a respeito.

É, sim, Coutinho, estou de acordo com o Eduardo Escorel, é um filme, sim. E um filme raro. Uma coisa.