Blog do Inácio Araújo

Arquivo : April 2012

O Homem que Não Dormia
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Inácio Araújo

Numa cabine de imprensa encontro o amigo Egypto e ele me pergunta sobre “O Homem que Não Dormia”. E, antes mesmo que eu possa responder ele acrescenta que foi um dos quatro abnegados que permaneceu até o fim da sessão.

Nada contra sair no meio dos filmes. Ficar até o final não proporciona uma visão melhor e, eventualmente, se não se está agüentando aquilo, ela pode ser até pior.

De minha parte, só posso discordar do Egypto em relação a esse filme. Não posso falar dos demais colegas, porque não tive a chance de conversar com eles.

É um filme fragmentário, concordo. Mas isso não é necessariamente um defeito. É um hábito da geração de Edgard Navarro, não apenas no Brasil.

E, até pude entender, o filme tem uma coerência interna muito forte, é balizado por um fabulário (mula sem cabeça etc.), pela crônica política (o torturado da ditadura, transformado em louco da cidadezinha), pela permeabilidade do real pelo fantástico (os deuses nativos, tão presentes que contaminam até o padre), pela crônica de costumes (a maledicência e a tragédia familiar do coronel, que é um outro lado da repressão e da dominação econômica).

Essas séries, tenho a impressão, se articulam muito bem e criam um exemplar de filme fantástico bem raro no Brasil e que foge do interminável prato pronto que em geral nos é servido.

Há um ponto obscuro no filme e o Egypto manifestou seu desagrado: é quanto a certa escatologia, àquela gente que fica urinando em cena, essas coisas.

Bem, para os padrões Navarro é uma delicadeza. Ainda assim, acho que esses momentos, sim, são dispersivos. Raramente se justificam.

No geral, no entanto, um filme que me pareceu muito vivo, atrevido, inteligente. Espero que os colegas lhe dêem uma segunda chance.


Supremo na TV
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Inácio Araújo

O poder da TV, que apesar de todas as revoluções tecnológicas é assustador, hoje se manifesta de maneira mais que clara no Supremo Tribunal Federal, dito STF.

Até alguns anos não conhecíamos sequer o rosto dos ministros. Desde que abriu a TV Justiça, que não é nenhuma campeã de audiência, isso mudou de maneira radical.

No bar da esquina ou no barbeiro, discutem-se as decisões como se cada um de nós fosse um jurista consumado. O futebol, desde sempre terreno preferencial dessas conversas fiadas, cedeu lugar à discussão sobre o posicionamento de cada juiz, etc.

Talvez sejamos um pouco juristas consumados mesmo. Tirando o vasto blablablá do jargão jurídico, com o costume de ver as caras dos juízes, todo mundo percebe que, atrás do palavrório (e, cá pra nós, do narcisismo reinante) existem posições muito claras, maneiras de ver o mundo que se abrem ao público. Isso é bom.

A Justiça deixou de ser, penso que graças à TV em boa parte, um território secreto, insondável e, sobretudo, impenetrável..

Vejo na internet que não faltam esses caras que lamentam o surgimento da corrupção até na Justiça, essas besteiras.

Não é isso. É o contrário: agora sabemos melhor que existe corrupção. Começam a existir meios de combatê-la. Tudo isso vem envolto em muitas nuvens, que surgem de todas as partes. Mas hoje, quando um político ou um juiz nomeia um amigo todo mundo fica sabendo. Conforme o caso se faz vista grossa.

Mas, no geral, quando se pensa em tempos passados, a coisa era assim: não havia poderoso que não nomeasse parentes (ou mesmo os fizesse passar em concursos, como uma amiga que entregou a prova em branco e foi aprovada – depois renunciou ao cargo e mandou a família plantar batatas, assinale-se).

(Li até um dizendo que precisavam voltar os militares para dar o poder às pessoas honestas… Ah, nada como uma boa censura para dar a impressão de que o mundo é perfeito… Especialmente para nostálgicos da ditadura.)

Acho bem bacana os juízes se mostrarem humanos, quebrarem o pau. Isso os retira desse pedestal togado e um tanto ridículo, que aliás não orna mesmo com o mobiliário do Supremo.


De volta aos clássicos
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Inácio Araújo

Para quem já viu tudo que é visível (não é tanta coisa assim) no circuito comercial de São Paulo, uma bela opção será visitar o cine Olido, que de hoje ao dia 29 estará com o programa “Clássicos Revisitados”.

O Olido (que pertende à Secretaria Municipal de Cultura) no ano passado fez uma dobradinha com o Cinema Ritrovato de Bolonha, do qual exibiu alguns filmes bem importantes.

Este ano retoma alguns filmes que há uma pá de tempo não se viam em tela razoavelmente grande.

Entre eles, há dois Hawks, “Os Homens Preferem as Loiras” e “Scarface, a Vergonha de uma Nação”.

Há essa jóia tão pouco reconhecida que é “O Portal do Paraíso”, de Michael Cimino, num restauro de 2004.

Há ainda “Uma Aventura na África”, um dos bons John Huston, o formidável “Cantando na Chuva”, de Stanley Donen e Gene Kelly, e “Kes”, de Ken Loach.

Todos em cópias com restauro relativamente recente, segundo o release.

Há ainda o recém-restaurado “Viagem à Lua”, de Méliès. A imagem é impecável, mas a verdade é que alguém deveria logo acoplar a ela a música com que a orquestra de Bolonha ilustrou o filme. A música colocada na cópia é de uma chatice sem fim.

Dois complementos:

A entrada custa R$ 1,00 (e tem meia-entrada). Uma bagatela. A Secretaria Municipal de Cultura torna o acesso aos filmes a coisa mais democrática do mundo. Espero apenas que não vire um lugar barato, onde os caras entram para dormir.

O Olido foi uma sala de ponta nos tempos de Cinelândia. Sua reforma foi excessivamente modesta, no meu entender. Não ruim, mas modesta. Um pouco mais de ambição não lhe faria mal, para a gente não ficar com a impressão de que está entrando numa “sala para pobre”. Os pobres é que merecem o luxo oficial, ou ao menos sua atenção.

Depois volto, porque há outras coisas rolando. Estive doente de sono, tosse, gripe e dores musculares nesses dias, sem contar o Serasa (e seu maldito certificado digital), sem contar as terríveis mortes em série das pessoas de cinema. Não é pouco para uma semana.

* * *

programação

20/04, sexta-feira

19h30 – Scarface (93’), Howard Hawks

21/04, sábado

17h – Os Homens Preferem as Loiras (91’), Howard Hawks

19h30 – Kes (110’), Ken Loach

22/04, domingo

15h –  Viagem à Lua (16’), George Méliés e Cantando na Chuva (103’), Stanley Donen e Gene Kelly

17h – O Portal do Paraíso (149’), Michael Cimino

24/04, terça-feira

19h30 – Os Homens Preferem as Loiras (91’), Howard Hawks

25/04, quarta-feira

19h30 – Uma Aventura na África (105’), John Huston

26/04, quinta-feira

19h30 – Viagem à Lua (16’), George Méliés e Cantando na Chuva (103’), Stanley Donen e Gene Kelly

27/04, sexta-feira

19h30 – Scarface (93’), Howard Hawks

28/04, sábado

17h30 – O Portal do Paraíso (149’), Michael Cimino

29/04, domingo

15h – Uma Aventura na África (105’), John Huston

17h – Kes (110’), Ken Loach


Saraceni morreu. Viva Saraceni!
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Inácio Araújo

Paulo Cezar Saraceni era um dinossauro. Via e praticava o cinema não como um meio de comunicação, mas como modo de conhecimento.

Saraceni era uma espécie de rocha de resistência. Fazia os filmes que lhe vinham à cabeça, filmes de artista.

Não eram filmes de propaganda, de publicidade. Não estalavam de produção e desperdício: Saraceni não era um novo rico do cinema de patrocínio.

O que fazia vivo, ainda, era incomodar um pouco. Seus filmes não interessavam à Ancine, ao MinC, ao público chic. Esse público que, ao ver “O Viajante”, durante a abertura de uma mostra de melhores do ano promovida pelo Sesc, deixava a sala.

Estava diante do, provavelmente, mais belo filme brasileiro desde os anos 90 do século 20, mas não sabia reconhecer.

Quando houve uma dessas premiações que tentam imitar o Oscar, Marília Pêra mal foi lembrada como melhor atriz. Mas nunca Marília Pêra foi tão sublime quanto naquele filme, naquela cena em que arremessa o filho débil mental pela ribanceira, por julgar que ele atrapalhava seu amor, ou naquela em que arrebenta a sacristia e maldiz a Deus.

Antes disso, convém não esquecer, “Natal da Portela”, que a seu tempo nem chegou a São Paulo. E como esquecer aquele Natal, o bicheiro, ou Milton Gonçalves?

O sujeito de um braço só que tanto podia matar os inimigos com crueldade como dar tudo que tinha às pessoas do seu bairro, da sua escola de samba, que substituía um governo incapaz de fazer alguma coisa pelos pobres.

Não fica por aí. Há muito mais.

Há maus filmes, até. Eu pelo menos não agüento ver “Anchieta, José do Brasil”.

Seu encontro com Lucio Cardoso foi definitivo.

Acho que Lucio Cardoso estava para ele como Graciliano para Nelson Pereira: mais que uma identificação, uma história de complemento mesmo.

Há, desde “Arraial do Cabo”, no cinema de Saraceni, uma integridade idêntica ao desejo de conhecer o mundo que o cercava.

E ainda havia o projeto de “Chaplin Club”, quer dizer, a filmagem dessa dedicação ao cinema que existiu entre um grupo de intelectuais em determinado momento.

Paulo Cezar Saraceni era um artista, ou seja, um incômodo: seus filmes não têm firulas. Diante deles, não há nada a fazer senão olhar, ver, perceber como as imagens falam, mostram uma alma, investigam. Não há nada a fazer, exceto contemplar, deixar que existam.

E Adriano, o ator…

As coisas já estavam ruins assim, quando chegou a notícia da morte de Adriano Stuart. Foi ator e diretor.

Não gostei do pouco que vi dele como diretor, mas não vi “O Bacalhau”, uma sátira de “Tubarão”, que parece ser o ponto alto de sua produção.

Mas ator houve poucos como ele.

Com o Ugo Giorgetti, que viu essa capacidade dele de entrar no personagem de tal modo que parecia até se tornar transparente, fez papéis para não esquecer. O ex-jogador de futebol de “Boleiros”, o artista de “Festa”, tantos outros.

Complemento: … e Zé Mário 

Neste terrível fim de semana acabo de saber que perdemos também José Mário Ortiz Ramos.

O Zé Mário eu conheci faz tanto tempo que, para se ter uma idéia, Eder Mazzini era meu assistente de montagem.

Os dois vinham da Engenharia Mauá, mas gostavam mesmo era de cinema.

O Zé Mário colaborou no primeiro (e único) número da revista Cinegrafia, acho que foi seu primeiro trabalho ligado a cinema.

Depois fez curso na EHESS de Paris, entre outros, antes de se tornar professor da Unicamp.

Um AVC, há alguns anos, cortou o que me parece que seria uma carreira de muitos livros capitais para o conhecimento do cinema e da sociedade brasileira.

Teve tempo, em todo caso, de publicar o clássico “Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 40, 60,70”.

É um dos livros mais livres, despojado de preconceitos, sobre o cinema brasileiro, mas escrito com seu rigor de sociólogo.

Um último abraço ao amigo.


O Fim de Paulínia
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Inácio Araújo

(ou Já Não se Faz Hollywood como Antigamente)

Paulínia nunca teve paisagem para ser a Hollywood brasileira. Nem vida. Nem tradição.

O que atraiu o cinema para lá foi a iniciativa voluntarista de criar um “pólo” tendo por base a dinheirama da Petrobrás.

Paulínia tinha um macrofestival e não tinha hotéis para os participantes. Todo mundo tinha de ficar para os lados de Campinas. Construiu um teatro com fachada greco-caipira (mas muito bem projetado como som e imagem, ressalte-se). Já parecia anunciar o que estava por vir.

Paulínia era uma dessas iniciativas absolutamente artificiais, voluntaristas, que visam, antes de mais nada, colocar o nome da cidade no mapa. Sem articulação com as entidades estaduais ou federais que cuidam do setor.

Não há um projeto político para o cinema (como sempre). Houve um projeto político local. Projeto de um político, de um prefeito, que o prefeito seguinte resolveu bombardear. Mais ou menos o roteiro de sempre.

O projeto era acompanhado de uma dinheirama em prêmios que ofuscou, por exemplo, o tradicional festival de Brasília.

Havia os concursos para financiamento de filmes, com a necessidade de filmar uma parte em Paulínia. Ok. Aí a gente via o filme e se perguntava “cadê Paulínia?”. Depois, havia a pré-estréia em Paulínia. O povo do cinema misturava-se ao povo do poder local para a festa.

E o que era festival, pólo, estúdio, tudo para, fica interrompido, no dizer do prefeito.

Interrompido é o eufemismo habitual para dar um tempo aos interessados de se acostumarem à morte do projeto.


De carona com “Drive”
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Inácio Araújo

Vi “Drive” com algum atraso, não muito. Às vezes acho bom ver os filmes sem a obrigação de responder à “atualidade”.

Acho impossível não lembrar, como intriga, o “Glória” do John Cassavetes, onde Gena Rowlands busca proteger um menino contra os gângsters que mataram sua família e agora pretendem dar um fim nele também. A motivação em “Glória” me parece mais forte, mais visceral, uma coisa de instinto que de repente desperta na garota.

Em “Drive”, o cara também busca algo parecido, um vínculo, uma família, um amor, algo que o retire do nada em que vive. É uma motivação menos forte, mas existe e não deixa de fazer sentido.

A cena de abertura do filme é muito boa, muito forte como cena de perseguição.

Todo o restante me parece cheio de altos e baixos. Em certos momentos eu me sentia muito interessado pelo que via. Em outros, tudo ficava enfadonho, meio carta marcada, com aquele personagem do Ryan Gosling transitando meio que do nada a parte alguma (o que é legal), sem eira nem beira, se fazendo de enigmático no meio daquela bandidagem toda. Quer dizer, meio indefinido, me pareceu, entre achar uma missão na Terra, tipo “Taxi Driver”, e sobreviver como o motorista do “Colateral”.

Essas proximidades não diminuem o valor do filme, nada disso. Talvez seja essa oscilação entre uma aspiração moral (ou psicológica, não importa) e outra de ordem plenamente instintiva (instinto de vida, no caso) que por vezes cole meio mal, mas não impedem “Drive” de ser um filme no todo bem interessante.


Raul, um novelão
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Inácio Araújo

 

Esse é outro filme brasileiro que não sou eu quem vai aconselhar a não ir ver. Há muito de interessante ali. A pesquisa iconográfica é boa. Parte considerável das entrevistas vem ao caso, etc.

Aqui, no entanto, a narrativa deriva perigosamente para o novelão, coisa que “Heleno” soube evitar.

É estranho, tratando-se de um documentário, mas é isso mesmo que se vai construindo, o melô do Raul: suas mulheres, suas bebidas e drogas, os amigos, a luta para se manter à tona, queda e recuperação, etc. etc.

Tudo até chegarmos ao túmulo. Choro e apoteose. Finitude e eternidade.

Isso tudo é bobagem.

Esse aspecto é bem deficiente, bem convencional no filme, assim como uma série de entrevistas com gente bem no corpo, bem no mundo – gente que representa o antípoda de Raul Seixas, enfim.

Por mais problemas que se possa descobrir, estamos no documentário típico: entra uma velha filmagem de um show de RS e tudo renasce no filme.

(A não esquecer: Jairo Ferreira fez um vídeo sobre Raul Seixas que a família embargou: é uma pena, porque esse seria um trabalho sobre Raul feito por um outro Raul).


As belezas do “Xingu”
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Inácio Araújo

Até aqui o cinema do Brasil criou épicas negativas: derrotas, basicamente. A saga dos Villas-Bôas no Xingu me pergunto se é “vencedora” ou não.

Mas os elementos são interessantes. Há a Marcha para o Oeste, primeira grande empreitada de conhecimento territorial, se a gente não pensar nos Bandeirantes ou, talvez, Rondon. Aqui está o nosso faroeste, de certa forma.

Há uma visão de encontro do país consigo mesmo que é importante. A rigor, não conhecemos os índios. Temos deles uma idéia muito primária. São ou “os bugres”, na concepção mais preconceituosa (e que nos envolve a todos: terra de bugres, dizia-se antes) ou os “primitivos”.

Esse segundo caso é a concepção da antropologia do tempo de Rondon, Roquete Pinto e tal. O índio é nosso homem pré-histórico. Nossa tarefa, portanto, é queimar etapas, trazê-lo à civilização.

Os Villas-Bôas, ao menos no filme, formulam a coisa de outro modo, mais próximos da antropologia estrutural. Não sei se é coisa do filme, mas a idéia deles é mesmo essa: quanto menos contato melhor.

Ponto dois: é um filme de aventuras e de aventureiros. De caras que não aguentam a civilização, a cidade. Acham que liberdade é na selva. Mais ou menos como os cowboys do Velho Oeste.

Agora, é interessante como essa empreitada (a deles, mas também a do filme) acaba indo na direção oposta à da antropologia pré-Levy Strauss. Quer dizer: o importante é civilizar o branco, não o índio.

E nesse sentido é que eu vejo uma épica a desbravar. A do conhecimento do outro que há em nós (a imagem final do índio de uma tribo cujo nome esqueço, a última a fazer contato, é impressionante, porque já não fala dos índios que conhecemos, mas de outros).

Tenho a impressão de que o sucesso desse filme dependerá muito não apenas da aceitação da saga dos Villas-Bôas, como, sobretudo, de um desejo de encontro dos brasileiros consigo mesmos.

Penso que isso não diz respeito apenas aos índios. E volto à imagem belíssima e terrível de alteridade que é a última figura do índio no filme. Trata-se também de ver as diferenças que existem entre nós mesmos, playboys e manos, como dizem, ricos e pobres, cultos e incultos.

Não é fácil. Não será fácil. Será tão difícil como abordar os índios, entendê-los. Vejo meus colegas jornalistas em geral revoltados com um manual escolar em que a “norma culta” não é a única norma. A gritaria é análoga à do “mata índio”, ou “índio é atrasado”.

Me parece que é necessário um pouco mais de compreensão pelos outros. Não se trata de ensinar que o certo é “nóis vai”. Trata-se de remover o pesado estigma que paira sobre quem fala errado. Ou escreve errado.

Meus colegas jornalistas sabem o quanto sofrem com a norma culta. O quanto os jornais investem em professores de língua para evitar ao menos erros escabrosos. Talvez em função dessa disciplina terrível eles tenham criado um respeito excessivo, ao meu ver, à norma culta.

Se a gente for ver nossos clássicos, eles pululam de erros. Felizmente.

Que eles tirem esse peso maldito de nossas costas. Que as pessoas aprendam a escrever, aprendam a norma culta, mas sem esse respeito religioso, respeito imobilizante.

Essa segunda parte parece que não tem nada a ver com “Xingu”, mas tem. Tem também o fato deCao Hamburguerter feito um bom filme antes. De aqui ter ido mais longe.

O filme anterior era “O Diaem que MeusPaisSaíram de Férias”. Ou quase isso. Era sobre guerrilheiros. Agora foi ao Xingu. Ver os índios. Mas os índios não são o único episódio do Xingu, dessa parte do país, não é?

Me parece que apontar para essa possibilidade de os habitantes do país se verem e se reconhecerem uns nos outros (não pensarem, os ricos: ah, eu sou europeu, não sou daqui etc.) é uma grande coisa.

Cinema que faz sentido.


Quem foi Heleno de Freitas ?
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Inácio Araújo

 

O estranho em “Heleno” é que tudo funciona. Os figurinos e a maquiagem, a cenografia e a fotografia. Não falemos de Rodrigo Santoro: sempre que dele se exige o extremo, responde indo ao extremo e mais um pouco, a se exaurir. As duas atrizes são bem escolhidas e os coadjuvantes também. É boa a direção dos atores

No entanto, a gente sai de lá sentindo falta de um filme… Como se cada parte fosse acessória, mas faltasse um coração. E não digo isso por ter ficado com a impressão de algo falso ou mesmo oportunista (impressão que a Conspiração lega com tão insistente freqüência). Não fiquei.

No que pude perceber, penso que há dois setores um tanto equivocados. O primeiro, o de roteiro. A opção por abolir a cronologia, que poderia ser feliz, resulta apenas um tanto confusa. Eu mesmo, que conheço razoavelmente (mas de muito tempo atrás) a trajetória do craque do Botafogo, às vezes não sabia em que ponto estávamos e muito menos porque estávamos ali, que papel tinha uma tal sequência estando em um dado ponto da intriga.

A opção pela cronologia poderia talvez ter deixado mais evidente o percurso e as circunstâncias que o levam da revelação de um talento luminoso à decadência precoce. Na pior das hipóteses, haveria a possibilidade de estabelecer um crescendo dramático. E permitiria talvez desenvolver de maneira mais aprofundada as relações complexas entre uma sociedade de preconceitos com o futebol, e do futebol com um jogador que destoava inteiramente desse meio (era bacharel, vinha de família bem posta, era um tipo galã, inteligente etc.).

O roteiro também deixa escapar certas particularidades do próprio Botafogo, um clube que aceitava bem essas excentricidades, digamos assim, no seu meio futebolístico.

Vale, porém, dizer que “Heleno” evita o novelesco tão característico da dramaturgia cinematográfica brasileira atual. Essa coisa 1930.

Quanto à parte terminal de sua vida, o desenvolvimento não cronológico não é problemático.

A direção é o outro problema, talvez o mais grave. Ao final do filme não sabemos o que era Heleno, afinal: um louco, um rebelde, um arrogante, um mulherengo, um bêbado, um doente crônico, um sedutor ou um chato.

O filme hesita muito. Essa hesitação é, me parece, o que faz a diferença entre um filme que começa bem e depois patina loucamente, já que as situações novas propostas não fazem senão reiterar aquilo que já vimos anteriormente, com ligeiras variações.

O que tento dizer é que, se ao final sabemos muito pouco sobre Heleno de Freitas não é porque o filme criou uma atmosfera de mistério, de tal forma que ele poderia possuir qualquer um desses atributos ou vários deles.

Parece, antes, que a direção simplesmente não soube escolher que linhas acentuar. Ou, em suma, o que dizer sobre Heleno. Admito que não é fácil, mas há momentos em que ele parece apenas um arrogante, um bocó metido a besta. E não era assim. Desde o início não era assim. Não optar claramente por um aspecto ou dois (“o rebelde”, “o maldito”, etc.) limita o filme mais do que amplia o conhecimento ou nossos devaneios a respeito.

Um ponto à parte, porque não diz respeito apenas a “Heleno”, é a timidez mórbida na filmagem de sexo. Não é, claro, exclusividade deste filme. Hoje em dia é assim que funciona no mundo todo, a menos que você se chame Cronenberg, ou De Palma, ou algo assim.

Mas aqui fica meio escandaloso, porque é do sex appeal de um cara que se trata ao menos durante um terço do filme. E em pelo menos mais um terço do sex appeal de duas garotas bem atraentes.

No filme, porém, tudo acaba nuns beijinhos, o mais das vezes, ou numas transas absurdas, como aquela de Rodrigo e Angie Cepeda, em que só vemos os dois rostos pulando na tela. A exclusão do corpo é tão mais escandalosa quanto é de corpos que se trata: a cantora e o jogador de futebol são corpos, antes de tudo.

As coisas não melhoram muito com a mulher de Heleno. Aí tem uns clichês meio radicais, do tipo a mulher que enfia o pé no peito dele deitado na cama. Pô, faz favor…

O pior momento é aqueleem que Helenopuxa a cantora, a Cepeda, pelos cabelos e a gente pensa, agora vai. Agora vai ter uma transa de Cronenberg, dessa em que os dois vão se arrebentar os ossos, a pele, a alma. Mas aí o que se segue são os beijinhos de sempre.

É importante acentuar que este filme me pareceu honesto. Foi feito com mais sentido de paixão do que de oportunidade, o que não costuma acontecer no novo cinema brasileiro. Apesar da produção de época, o filme tem menos frufru do que a média da produtora.

Já falei do elenco? Rodrigo Santoro, sempre que se pede algo excepcional dele, comparece. Incrível. O elenco é ok. Essa Angie Cepeda seria a sex symbol do Mercosul, se houvesse um sentido de marketing no Mercosul.

(Já está muito comprido. Volto amanhã com Raul Seixas).


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