David Perlov, um Proust das imagens
Inácio Araújo
O cinema tem algo de heróico, que está em sua natureza mesmo. Independe dos cineastas, dos técnicos, das técnicas.
Consiste na capacidade de aprisionar o tempo. A imagem de uma rua em Vila Mariana ou a passagem do bonde de Santa Tereza, em 1981, permanecem o que são. Sua identidade não se altera. Não se pode pensar, diante da imagem, em “era assim” ou “foi assim”. Algo permanece na imagem de terrivelmente presente.
Penso nisso a partir dos formidáveis “Diários” de David Perlov (1973-1983) que estão nessa grande mostra que já começou no Rio de Janeiro (Instituto Moreira Salles) e agora vem a São Paulo (Centro de Cultura Judaica, Cinemateca Brasileira), e também nos “Diários Revisitados” (1990-1999).
Perlov renunciou ao cinema comercial. Propunham-lhe filmar idéias. Queria filmar coisas. Comprou uma câmera 16mm e passou a registrar seu dia-a-dia.
Existe, claro, algo de muito atual em sua atitude: hoje as imagens não vêm mais das velhas 16mm. Qualquer celular é capaz de produzir diários.
Mas essa capacidade do cinema de reter o tempo não é puramente mecânica. Trata-se de uma arte. A imagem carrega consigo sempre uma reflexão. Ela seleciona o que reter. Ela impõe determinado ângulo.
Por fim, o diário não é mero registro. Essas imagens engendram um movimento da memória sobre elas próprias. Uma recuperação do tempo. Elas trazem presente e passado, camadas em que se superpõem palavras e figuras, o perdido e o recuperado. Seu movimento me parece proustiano, assim como esses filmes raros, sublimes, inesperados a cada passo, originais e óbvios que Perlov escreve com sua câmera e sua voz.
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Paz Heeralall
18/07/2011 04:35:01
Thank you, a very good read - added to favourites so will pop back for new content and to read other people's comments. Thanks again.
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Avanor Castoriadis
20/03/2011 07:24:41
Sugestão de leitura para pensar no assunto: "Teoria do Filme", do Kracauer. O livro, muito bom, vai um pouco por essa linha do cinema como registro de imagem. Ao mesmo tempo, revela os limites dessa teoria -- cinema é arte e arte é "fingimento" com vistas a revelar o autêntico (ou a "verdade"). Na era da computação gráfica, quando desaparece por completo a fronteira entre real e irreal (presente e passado), que tempo é esse aprisionado? Qual é esse presente?
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marcos nunes
18/03/2011 12:10:41
Acrescente a isso o malogro existencista sartreano e chegamos à verdadeira dimensão humana, expressa por Nietzsche em termos mais ou menos assim: "Durante milênios ele (o Homem) não existiu; depois que tiver desaparecido, nada terá acontecido". Resta-nos fixar a nossa existência nesse vazio e agir como se o próximo passo tivesse algum sentido e propósito. Somos mesmo os reis do autoengano...
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