Blog do Inácio Araújo

As raparigas do Manoel e outras histórias

Inácio Araújo

É fantástico “Singularidades de uma Rapariga”, o Manoel de Oliveira que acaba de entrar em cartaz. Já tinha passado na Mostra, na penúltima, mas a gente vai correndo ao cinema, assim que pode, para rever. É um gesto quase automático.

Oliveira cria, a rigor, várias raparigas. A garota por que Macário se apaixona ao ver através de uma janela, protegida por um véu, a imagem de sonho da linda garota, Luísa.
Rapariga ficcional: personagem de um quadro, ou de um filme visível pela janela indiscreta de Macário.

Aos poucos, Luísa deixará o reino da ficção para se tornar palpável. A encontraremos na loja do severo tio de Macário, Diogo. Mais tarde, no estranho círculo literário onde enfim será apresentada a Macário.

Haverá ainda mais uma Luísa. Não se pode falar dela. Seria estrepar com quem ainda não viu o filme.

Mas pode-se dizer que ela será tão surpreendente que deixará de ser real ou realista para assumir uma terceira natureza. Ou terceira personalidade, acho que no caso dá no mesmo: esta última vai atirá-la num registro de franca irrealidade.

Essa última personalidade de Luísa existe, fiquei com a impressão desta vez, em relação com o tipo de trabalho de Oliveira sobre o tempo.

Num momento estamos no Portugal moderníssimo da União Européia: um trem belíssimo a embalar a história que Macário conta à mulher (Leonor Amarante).

De repente, chegamos à loja. À austeridade quase demente do tio Francisco (Diogo Dória). À idéia de uma viagem a Cabo Verde como se fosse o exílio (não conheço o original, não sei se é assim que as coisas se passam lá). O círculo literário criado por um ministro da Informação de Salazar!!! Luís Miguel Cintra declamando O Guardador de Rebanhos, nesse jogo que vai do literário e o teatral.

Enfim, é como se o filme revolvesse várias camadas de tempo, várias histórias, várias sensibilidades portuguesas a partir da saga de Luísa, que é, no mais, bem esquiva, bem Capitu.

É impressionante como Oliveira enfileira filmes insubstituíveis, um atrás do outro.

* * *

Faz-me rir

Não assisto programas de humor na televisão. Quando sintonizo, mais para saber que existem, tiro um minuto depois, tal a barulheira, tal, em suma, o que me parece falta de humor.

Minha filha uma vez falou daquele Pânico como uma coisa dadaísta. Pode ser que seja uma sensibilidade contemporânea que já não acompanho. Pode ser.

Mas não creio que seja. Não creio que esses caras saibam do que se trata.

Tudo isso me parece horrível, mas talvez seja isso mesmo: você vai envelhecendo, tudo que está ao lado começa a parecer hostil, decadente, desprovido de sentido. Pode ser.

Agora, o que Marcelo Coelho escreveu na Folha é coisa de outra ordem. Diz ele que o tal sujeito pediu desculpas. Como desculpas?

A referência a Metrô, velhinhos judeus, Auschwitz ultrapassa, evidentemente, qualquer limite do racismo. É simplesmente abjeta.

Não sei, fico com a impressão de que, por serem esses arremates de humanidade (não raro travestidos de jornalistas) esses caras acham que podem falar tudo que a boçalidade possa lhes sugerir.

Marcelo pensa num caso de fascismo. Acho que nem chegamos a isso.

Não estamos diante da banalidade do mal: trata-se mais de cretinismo elevado à condição de livre direito de pensamento.

A TV tem muito a ver com isso.

A TV mais a internet pode ser uma mistura que ainda vai dar rolo.

* * *

Nóis e a língua

Como todo mundo sabe ou suspeita, nós, jornalistas, temos a língua pátria como ponto de honra.

Não que sejamos mestres nela. Até onde vai minha experiência não somos lá grandes coisas nesse particular.

Vivemos pendurados no prof. Pasquale ou outro. Ele ensina uma coisa e na semana seguinte a gente vai lá e fica encaveirando a ignorância alheia – que é tão nossa.

Bem, na sexta passada a bancada do Jornal Globonews ficou em pé de guerra por um livro, licenciado ou comprado pelo MEC, “ensinar errado”.

Foi uma espécie de êxtase, porque a hipótese do erro alheio, sobretudo de um erro de quem deveria ensinar – a professora que escreve o livro, o Ministério da Educação – revelava um pouco a superioridade dos jornalistas. Somos os que conhecem a norma culta.

É óbvio que ninguém tem obrigação de conhecer linguística ou a questão das particularidades.

Mas é um vício dos jornalistas, nosso, a precipitação. Me ocorreu às vezes. Não quero falar de ninguém.

Mas é algo que a TV potencializa, porque o jornalista é revestido de certa autoridade.

Então ele não diz: eu quero entender tal coisa. Não. Ele imagina que sabe e o mundo inteiro é composto por idiotas.

Quase sempre não é bem assim.

  1. Marla Grinage

    18/07/2011 13:19:14

    I’ve been wondering about the similar factor myself lately. Delighted to see an individual on the same wavelength! Nice article.

  2. Michael Carabini

    27/05/2011 04:22:30

    N o se pode desconsiderar que embora a interpreta o seja subjetiva h limites. Se n o houver esta vis o global dos momentos liter rios e dos escritores a interpreta o pode ficar comprometida. Aqui n o se podem dispensar as dicas que aparecem na refer ncia bibliogr fica da fonte e na identifica o do autor.

  3. Ricardo Garrido

    23/05/2011 14:43:07

    Inácio, assisti ao filme no último final-de-semana e, embora reconheça grandes qualidades nos enquadramentos, nas cenas de "divulgação cultural" e nas simbologias (dia x noite, imagem x ilusão x real)... achei o resultado meio fraco. O roteiro, sobretudo, resolve tudo de sopetão, sem maiores motivações ou explicações... e as atuações são todas fracas, não acha?Enfim, acho que é um grande feito para um diretor com mais de 100 anos (!), e certamente dá pra ver que há talento por trás da coisa, mas não acho que é um grande filme...(Mas é claro que Luiza tem aquela qualidade machadiana - aliás, vindo de um conto do Eça de Queiroz, pode muito bem ter sido matriz de algumas mulheres machadianas...)Um abraçoRicardo

  4. marcos nunes

    20/05/2011 16:44:03

    Vi o filme do Manoel no Festival do Rio do ano passado. O cara é engraçado: seus filmes parecem que são feitos com a câmera nas mãos e uma criança ancestral. É brinquedo e ao mesmo tempo deslocada do lugar, pela forma de seu olhar ao mesmo tempo renovado e anacrônico.Singularidades é um filme especial na sua filmografia repleta de filmes especiais. Quando estou de saco cheio do cinema vejo um dos filmes dele. Ainda dá: o cinema tem jeito. Se ao menos ele vivesse mais trinta anos...TV: confundem correção política com incivilidade, falta de educação, exercício de "livre-pensar" do idiota preconceituoso, conservador, cretino. Livro didático: a Globo pensou ter achado um filão; errou e insiste no erro para não pegar mal. O livro, que não é para crianças, discute a língua em termos dinâmicos, pndo na balança critérios linguísticos, norma culta, comunicação, coloquialidade no falar e correção no escrever. Não é um desserviço à educação, mas um refinamento no conhecimento da língua. Quem diz o contrário não leu o livro e é só mais um daqueles opositores sistemáticos do governo.

  5. Alessandro

    19/05/2011 16:05:07

    Sobre os purismo da Língua, há um ótimo texto do Marcos Bagno: http://alessandrocoimbrablog.blogspot.com/Abrs.

  6. allegro

    18/05/2011 18:34:15

    Acho que a imprensa age dessa forma para preencher o papel social que a academia deixa de exercer no Brasil. A maioria das vezes erra na dose e proporciona espetáculos lamentáveis como o que estamos presenciando.Realmente gostei muito dessa mea culpa, Inácio. Quem me dera que outros jornalistas agissem dessa forma.

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