Blog do Inácio Araújo

Arquivo : August 2011

Abaixo o MEC-Usaid
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Inácio Araújo

Minha geração, a de 68, certamente se enganou em quase tudo, a começar pela ilusão de que poderia enfrentar o governo militar brasileiro a poder de armas e que o povo seguiria a vanguarda. Não seguiu e quase digo ainda bem que não seguiu.

Mas o problema não está aí: acreditar que os EUA deixariam acontecer aqui algo parecido com o que houve em Cuba, onde uma pequena vanguarda, de uns 20 caras, acabou liderando a revolução, era uma ilusão quase infinita. Tenho razões para dizer o que digo, mas elas sequer vêm ao caso.

O caso é outro. É que, se acertamos numa coisa, foi quando saímos às ruas gritando “Abaixo o MEC-Usaid”.

Poucos de nós sabiam do que se tratava. Aliás, até hoje eu não sei direito. Não importa.

Basta ver o resultado de que acabamos de ter conhecimento a respeito da educação no Brasil. É uma desgraça. O ensino do Estado, em particular, é uma lástima.

Bem, o que eu quero dizer é isso: é muito bonito dizer que devemos fazer que nem a Coréia, destinar imensos recursos à educação, etc. Não sou contra isso, aliás.Mas me pergunto: e quem é que vai ensinar?

O abismo educacional no Brasil é tão intenso, tão violento, exprime tão bem o esmagamento das populações pobres pelas ricas, que hoje, quando o país voltou a crescer, não como os chineses, mas voltou, falta até quem saiba apertar parafusos, consertar sola de sapato e tudo mais.

O governo militar acabou com as humanidades. O governo militar fez do ensino público um simples depósito de jovens pobres. E arrisco dizer que providências como essas foram piores do que a tortura.

Porque a tortura (a política, ao menos) acabou, ficou para trás (mas esse “perdão” a torturadores é uma mancha durável e de conseqüências horríveis). A educação continua no buraco.

Como resolver isso? Com dinheiro, claro. Capacitando e aperfeiçoando professores, claro. Estou de acordo. Mas quem é que vai fazer isso se ninguém mais sabe nada de nada?

Durante décadas se desincentivou a leitura, porque era inútil aprender, porque isso não valia nada, economicamente. Um cara que lia era risível. O bom era o cara que enriquecia, que sabia os caminhos.

Mas agora, crescemos, e começamos a perceber que não se conserta uma janela direito, não se faz uma máquina de lavar quando não se lê, não se desenvolve princípios morais, essas coisas.

Então, hoje não falamos de cinema aqui. Mas falamos, sim. Essa é uma arte maravilhosa, que era em um momento partilhada por ricos e pobres, doutores e semi-analfabetos. Perdermos a perspectiva do quanto de democrático havia no cinema é muito mau.

Digo isso, também, um pouco sob o impacto da revisão de “A Árvore da Vida”. E revi a partir da perspectiva dos que acham que o filme poderia muito bem ser reduzido.

E entendi o que dizem. O filme para eles é muito longo, aquelas imagens “National Geografic” se eternizam. É verdade.

Mas acho que se pode observar da perspectiva do autor do filme. Trata-se de mostrar nada menos que o início dos tempos. Não dá para reduzir isso a um tempo mixuruco.
O evento é muito grandioso.

Ou então era melhor botar lá uma cartela: E o mundo começou. E depois começou a vida na Terra. E por fim veio o homem.

E estava resolvido o problema.

Não sei se é certo. Como já disse, o filme busca aproximar o nascimento do mundo e o do homem. O surgimento da espécie e o nascimento de cada um. O filogenético e o ontogenético.

O filho, a mãe, o pai ou: a água do ventre, a secura da Lei e eu: esse o drama.

Pode-se achar tudo isso uma bobagem, pode ser até que seja.

Mas da perspectiva do filme não havia outra solução.

É a mesma coisa o filme do Lars von Trier.

Para que se ocupar desse assunto, melancolia, depressão, se já existem belas pílulas milagrosas que nos alienam delas?

Bem, porque o resultado das pílulas milagrosas não é, para começar, tão milagroso assim.

Não dá para cobrir o inconsciente com pílulas e achar que tudo bem, está resolvido, a história acabou. Não dá.

Ou, para voltar lá onde tudo começou: Abaixo o MEC-Usaid, essa inesgotável mancada.


Super 8 – Um filme de duas cabeças
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Inácio Araújo

 

Tive a impressão, saindo de “S8”, que o nome de Spielberg, colado ao de J.J. Abrams nos cartazes não era apenas um artifício publicitário.

Me pareceu que, ao contrário, esse era um filme dos dois. Na primeira parte é predominantemente de Abrams, e o que dá as tintas é o mistério. O aspecto “espetacular” é tão pouco levado a sério que ninguém nem se preocupa em explicar como todos os heróis escapam de um desastre de trem apocalíptico, que acontece ao lado do lugar onde filmam, sem um arranhão, praticamente. Aceitamos a convenção e não se fala mais nisso.

Também fiquei pensando que se fosse um filme só de Abrams certos aspectos estariam mais em evidência. Assim, o acidente que mata a mãe de Joe teria mais sentido, assim como começar o filme pelo velório.

A expulsão do pai de Alice do velório é interessante, mas não se explica de maneira conveniente (melhor seria que nada fosse explicado) e acabará neutralizada na parte final.

Também fiquei achando que a rivalidade entre Joe e o diretor do filme, Charles, seria não apenas referida no diálogo entre os dois, mas ganharia relevo caso o filme fosse só de Abrams.

Na segunda metade, o mistério lançado praticamente desaparece e dá lugar ao monstro, isto é, no caso, ao alien. Que tem um aspecto interessante, é verdade: nunca sabemos exatamente como ele reagirá diante dos personagens. Mas se trata apenas de desenrolar uma trama, nada mais.

As sugestões do início (inclusive o filme de vampiros) são meio que varridas do filme (este só reaparece nos créditos, e de maneira muito simpática).

Enfim, é apenas uma impressão, mas parece por vezes que cada um, Abrams e Spielberg, está puxando o filme para um lado.

O que não o impede, diga-se, de ser bem acima da média do que temos visto.


A forma e o caos, ou “A Árvore da Vida”
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Inácio Araújo

Um aspecto de “A Árvore da Vida” que chama vivamente a atenção é o tipo de cenografia escolhida.

Na parte antiga, anos 50, é exemplar a organização, desde as ruas, com sua simetria, seus terrenos uniformes como as casas, bem como a decoração da casa, também uniforme em sua modernidade. Isso não se transforma quando chegamos aos anos 2000, embora o cenário se transforme de forma radical, passando aos grandes arranha-céus.

Em ambos existe uma organização racional, ou uma tentativa racional de intervenção do homem no mundo: acomodar da melhor maneira possível as famílias, os seres, os desejos.

Em oposição, existe o mundo, ou antes, o caos do mundo, que se manifestará na tristeza do filho, na frustração do pai, no desencanto da mãe.

O homem põe e o mundo dispõe, em suma.

Pois este é, em grande medida, um filme sobre a arte. Sobre a tentativa humana de superar o caos do mundo, de dar-lhe forma, de submetê-lo pela forma.

Forma que pode ser arquitetônica ou musical, tanto faz.

Tenho a impressão de que existe um equívoco na suposição de que, por evocar o princípio dos tempos, o filme tenha implicado algum tipo de busca religiosa. O início dos tempos, assim como a saída dos seres da água designa, antes, a universalidade do tema: o esmagamento do filho pelo pai. E, depois, o desejo do filho de ver o pai morto. O Édipo, em suma. A acreditar em Ferenczi, a oposição ao pai viria das águas. As águas representam uma memória do ventre materno, da existência intra-uterina, segura e garantida contra todo mal, ali onde o feto é completamente feliz.

A forma é a grande, terrível luta do artista, primeiro, mas do homem em geral. Dar forma a um mundo infinitamente caótico. E, quando chega à forma, ela lhe escapa, obriga-o a uma nova operação, a um novo entendimento do mundo.

Talvez isso surja com clareza não apenas na figura do pai, incerto entre a música e a engenharia, a forma abstrata da música e essa outra, arquiconcreta, da produção para o mundo. E ainda dessas formas, não mais paradoxais, mas francamente contraditórias, do órgão, instrumento que lembra a religião, é certo, mas sobretudo esse tempo eterno a que aspira a convicção religiosa, em contraste com a afirmação de precariedade, de efêmero, do design moderno.

“A Árvore da Vida”, filme realmente raro, tem esses dois ramos: a percepção daquilo que é permanência na aventura do homem na Terra, aquilo que se repete de geração em geração, mas também a perpétua transformação das coisas, como uma árvore.


O cinema está de volta
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Inácio Araújo

E já não era sem tempo: estamos entrados em agosto.

Todo mundo há de convir, este tem sido um ano de amargar para o cinema até aqui. Tirando o Oliveira, o Kiarostami, não me lembro de mais nada que de fato valha a pena. Devo estar esquecendo de alguma coisa, mas… não de muita.

Isso para dizer que de repente entraram alguns filmes que mudam todo esse panorama sinistro. Dos que vi, “A Árvore da Vida”, do Terrence Malick, me parece uma acabada obra-prima. O máximo difícil de expor em poucas palavras.

Remeto ao texto que escrevi na sexta-feira para a Folha. Acho que ali mais ou menos consegui dar conta da coisa quase sem fim que é esse filme.

Perto dele, “Melancolia” virou um bom três estrelas. Um bom filme de Lars Von Trier, com imagens muito fortes no final e um olhar sempre original para as coisas. Mas, não sei, não é forte como o filme da Bjork, por exemplo. Ao menos é o que sinto agora: demorei séculos para reconhecer o interesse do filme com a Nicole Kidman.

Não vi “Super 8”, mas dá para botar fé. Não vi as famosas séries que o J.J. Abrams criou, mas o “Star Trek” foi uma bela surpresa.

O filme que me deixa meio perturbado é o do Hugo Carvana: “Não Se Preocupe Nada Vai Dar Certo”. Os colegas do Guia da Folha, que dão as estrelinhas, ao menos os que já viram o filme, mostraram infinitamente menos entusiasmo do que eu. Me senti um pouco solitário.

Embora esse não seja um sentimento de todo mau. É como quando passou o filme do Saraceni, “O Viajante”, na abertura da mostra anual do Cinesesc: um monte de gente deixou a sala. Mas é um grande filme, quem gosta de cinema notou.

Talvez o do Carvana não seja um grande filme, o tempo vai dizer. Mas existe uma diferença quase ontológica dele em relação às comédias brasileiras que tenho visto, que parecem ter como finalidade o nada. Uma espécie de Nirvana da nulidade.

Bem, o filme do Carvana tem aquela tocada anarco-carioca bem dele. É um filme de ator. Com o ator. Pelo ator e para ele. A arte de atuar, de ser outro. Essa arte tão próxima da vigarice.

E o que ele nos mostra? Esses atores, meio vigaristas, usando sua arte para enfrentar os outros vigaristas, os de verdade.

Não é o tipo de comédia para rir a bandeiras despregadas, até porque existe o cuidado de desenvolver um raciocínio, gentileza um tanto rara hoje em dia.


“A Tristeza e a Piedade”: um filme de intervenção
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Inácio Araújo

Muito a propósito, lembra um leitor/amigo que o título do DVD de “Le Chagrin et la Pitié” deveria ser “A Dor e a Piedade”.

Com toda razão: mas a Videofilmes optou mesmo por “A Tristeza e a Piedade”, embora seja “Dor” (assim, com maiúscula) a idéia que o original exprime e que, de resto, exprime a situação da França sob Ocupação entre 1940 e 1944. No entanto, essa é a única mancada na impecável edição.

Já um não-leitor sugere que eu não deva me meter com coisas como leis homofóbicas e me limitar a falar de filmes.

Bem, aí, para começar, nós somos cidadãos mais do que críticos, blogueiros, engenheiros, médicos, arquitetos ou o que for. Me parece dever de qualquer cidadão defender e lutar pela ampliação das áreas de liberdade, cidadania e tolerância.

Em segundo lugar, o cinema não existe fora do mundo. Ele está no mundo e se confunde com ele.

O cinema não existe para a gente se afundar num copão de pipoca à espera de que a tela nos proporcione alguns sobressaltos sensoriais – embora isso possa ser divertido de tempos em tempos.

O cinema existe, porém, para manter nossos olhos abertos. O cinema nos ensina a enxergar o mundo e também a intervir nele.

“A Tristeza e a Piedade” é um filme de intervenção.

Num dos ótimos extras do DVD, De Gaulle, entrando na Paris enfim liberada, em 1944, pronuncia um discurso onde fala de uma França verdeacdeira, da França unida, da França que luta (reproduzo de memória).

Nada contra. Era preciso falar isso mesmo. Era preciso fingir que houve um bando de renegados colaboracionistas, boa parte deles justiçados, cercados de bons franceses.

E seguir com a vida, contando, inclusive, com um monte de colaboracionistas que estavam na administração, pois é assim que as coisas são: se tirar todo mundo, o país para.

Mas essa ficção da “França que se bate” é que entrou para a história. Como se todos fossem resistentes da primeira hora.

É sobre essa ficção que se construíram a Quarta e a Quinta Repúblicas.

E com a ajuda, inclusive, dos comunistas, que estiveram na Resistência com os gaullistas e se aproveitavam do mito, também.

Sobre a Colaboração baixou um tremendo silêncio.

E por isso “A Tristeza e a Piedade” fez tanto barulho. Ela repôs as lendas em questão. E deixou claro que não foi bem assim. É o que dizem vários entrevistados. E o vergonhoso anti-semitismo que vigorou na França durante a guerra, bem, aqui veremos que ele não vinha só dos líderes. Estava disseminado na sociedade francesa.

É claro que há os resistentes, também. E há Mendès-France narrando a sua formidável fuga da prisão. Ou ainda o depoimento do ex-miliciano, ex-Waffen SS, ou seja, ex-colaboracionista, um depoimento muito franco, muito sincero, sobre o que foi a direita francesa naquele momento.

Enfim, são mais de três horas de um filme exemplar para quem deseja conhecer um pouco do que foi o nosso século. Pois a França da guerra (e de antes dela, sobretudo), teve tudo dele: comunistas e anticomunistas, democratas, militares, anti-semitas, gente deplorável, traidores, heróis, pensadores brilhantes, cretinos…

Enfim, mais até do que a própria Alemanha, que foi dominada por um pensamento meio primário (o nazista), a França que entra na guerra partida ao meio, entre uma direita e uma esquerda que se odeiam (e uma direita que prefere ver os alemães por lá do que os esquerdistas) é um lugar rico de idéias (e mesmo a direita não era idiota como tão frequentemente, longe disso), o que torna mais espantosa ainda a fraqueza molóide com que, na prática, se entrega o país aos nazistas e depois vive sob uma grande ficção (o governo de Vichy).

Em suma, posso falar e falar, não terá nem 1% do interesse do filme.

* * *

A TRISTEZA E A PIEDADE (Le Chagrin et la Pitié). Dir: Marcel Ophuls. França/Suiça/Alemanha, 1969. P&b, 251 min. Distribuição: Videofilmes.


“Orgulho heterossexual” é apenas eufemismo de discriminação
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Inácio Araújo

Não era para falar disso. Hoje era para falar de “A Tristeza e a Piedade”, o documentário de Marcel Ophuls.

Eu ainda chegarei lá. Pois no fundo é a mesma coisa.

Bem, o que eu quero dizer é: a Câmara dos Vereadores de SP aprovou um projeto que institui o Dia do Orgulho Heterossexual.

Algo, para começar, totalmente idiota, portanto, já se vê, à altura da atividade intelectual média dos vereadores de SP.

Mas isso passa. O problema é o que aí existe de torpe.

O “orgulho gay” pode ser uma coisa que parece besta. Mas se trata da afirmação de um grupo tremendamente discriminado, quando não perseguido e espancado. É um dia, em suma, contra o preconceito.

O “orgulho heterossexual” não passa de afirmação de preconceito, do desprezo pelo outro, por tudo que nos parece diferente.

O torpe, como o idiota, também está à altura dos vereadores. Ainda assim, não é pior da história.

Não existe, nunca existiu, orgulho heterossexual. Entre outras coisas porque não se trata de uma minoria ameaçada, agredida, desrespeitada ou discriminada.

Estou certo de que seria demais pedir aos vereadores que criaram esse monstrengo que considerassem por um instante que as pessoas não escolhem sua sexualidade. Que não é questão, como querem os Bolsonaros da vida, de levar um puxão de orelha. O mundo é um pouco mais complexo do que pode supor essa gente.

Trata-se, claro, de uma provocação barata, de uns caras cujo grande prazer na vida será afirmar seu “orgulho”, sua “superioridade”, chamando os outros de viados.

Mas esse é, digamos, apenas o aspecto benfazejo da coisa. Essa aprovação acontece alguns dias apenas após o massacre brutal na Noruega. Também uma afirmação de “orgulho”: do branco, europeu, cristão, nórdico, contra o imigrante, islamita, pobre.

O “invasor” que estaria destruindo seu mundo. O outro temível.

Só para fazer uma provocação na linha psicanálise selvagem, digamos que esses caras parecem é umas tias enrustidas.

Mas não é isso. Não é o que conta, em todo caso. Esses vereadores, assim como o atirador da Noruega, participam do mesmo entendimento do mundo. É por eles que o fascismo sobrevive.

Não espero grandes coisas do Kassab, mas espero que vete esse lixo.


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