O porvir de uma ilusão
Inácio Araújo
No mesmo dia em que leio sobre o início da campanha do “Tropa de Elite 2” ao Oscar, o Bope é afastado da operação da polícia do Rio que deu na prisão de um chefe do tráfico.
O Bope era suspeito de vazar a operação. O incorruptível Bope do filme, esse que não faltava quem aplaudisse no cinema quando se espancava alguém.
A primeira coisa que o traficante falou foi que 50% do que lucrava ia para suborno da polícia.
Mais um mito que vai pro beleléu?
Pode ser. O poder de corrupção do tráfico é absurdo, sabe-se.
Mas a questão me parece outra. Quase ao mesmo tempo passou na Mostra “Laranja Mecânica”. E o que me deixa intrigado é: o que leva essa quantidade imensa de brasileiros a acreditar que o mundo visto por José Padilha é mais verdadeiro que o visto por Stanley Kubrick?
O que nos leva a crer que uma solução simples (um batalhão bem treinado, um deputado com boas intenções etc., quer dizer, que o puro voluntarismo), já para não dizer simplória, vá resolver nossos problemas?
Quase ao mesmo tempo, ainda, São Paulo fazia uma megaoperação policial para desalojar alguns estudantes da Reitoria da USP.
A TV fez um fuá em torno disso. Nas cartas dos leitores dos jornais o que não faltou foi gente aplaudindo e com a tal história de dura lex, esses estudantes são privilegiados, e viva a polícia e coisa e tal.
A polícia paulista Ninguém imagina que os traficantes e similares daqui gastem menos de 50% dos seus gastos com suborno de policial. Ou imagina?
E as perdas do patrimônio? Na TV parecia que tinham derrubado a USP inteira.
Muito bem: até onde se sabe, o mesmo reitor da USP envolvido com essa presepada ameaça devolver o prédio do MAC, onde se está fazendo uma reforma colossal, se duas ou três condições envolvendo uma pinimba dele com a Faculdade de Direito não forem atendidas.
Aí ninguém fala de patrimônio? Reformar um prédio de Detran para virar museu, empenhar uma nota nisso e depois devolver o prédio não é ameaça ao patrimônio público?
O que há com a gente?
Bem, posso estar bastante enganado. Mas esse terrível ressentimento que vejo por aqui, aqui em São Paulo sobretudo, me parece resultado de nossa longuíssima ditadura.
Ela não matou tanto como no Uruguai, Chile e Argentina.
Mas a extensão dela é assustadora. Foram, no total, 24 anos. Uma geração.
Tempo para criar uma mentalidade. A crença na lei e na ordem mais cretina, mais limitada. A ilusão de que não havia corrupção (quando o que não havia era liberdade de imprensa). A suposição de que o Congresso só existe para roubar. E por aí.
Na Argentina a coisa foi de uma tal violência, de uma tal sede de sangue que, quando foi finalmente vencida, a ditadura era odiada. É até hoje, aliás.
Talvez por isso eles façam boa literatura e bom cinema e não se iludam com soluções hollywoodianas.
Eles sabem que a vida está mais para “Laranja Mecânica” do que para “Tropa”. Mais para Borges do que para novela de televisão.