Um belo filme, sim, de Jafar Panahi
Inácio Araújo
por Juliano Tosi
A certo momento de seu ''Isto Não É um Filme'', Jafar Panahi se questiona, com um olhar cabisbaixo e perdido: ''Se pudéssemos contar um filme, por que filmá-lo?''.
Lá se passou uma boa meia-hora de seu não-filme. E, de fato, muito pouco que nos foi dado ver parece com o senso comum do que seja cinema. A ação é pouca; a produção inexiste: o não-filme foi todo feito em seu apartamento, e basicamente assistimos a gestos cotidianos (seu café da manhã, a iguana da filha que circula pela casa, etc.) e algumas conversas que só escapam ao trivial por tratarem de algo demasiado grave.
Mas a seriedade do tema (a censura, a arbitrariedade de um governo) é limitada a algo muito mais pessoal (mas não menos político): a prisão de Panahi e a proibição de fazer novos filmes e mesmo conceder entrevistas.
E aqui começa todo o dilema: como fazer cinema sem os meios para isto? Como fazer um filme sem cenários ou grandes equipamentos, sem atores nem técnicos – ou seja, sem tudo aquilo que, resumidamente, chamamos de produção?
Pois um filme é, em grau zero, algo essencialmente material: não apenas uma ideia, mas esta ideia mais sua concretização, sua “fabricação”.
Não por acaso Godard dizia que um filme é, também, um documentário sobre a sua filmagem. Isto é, um filme é uma imagem do mundo, ao mesmo tempo que um reflexo de si mesmo – algo que o próprio Panahi reafirmara no seu mais belo filme, justamente chamado “O Espelho”.
O que fazer, então, quando se está alienado do mundo, alheio ao que se passa ao redor? Contar o próprio filme que se tem imaginado na cabeça?
É o que o próprio Panahi irá fazer em alguns momentos: descrever algumas cenas de um roteiro não filmado (ele não foi autorizado pelo governo iraniano a produzi-lo) sobre uma garota presa em um apartamento, quase sem contato com o mundo exterior. E aqui temos, de fato, alguns momentos mais belos do filme: o cineasta não apenas narrando ações, mas sobretudo descrevendo dados concretos.
Pois sua matéria-prima essencial de trabalho está naquilo que só pode ser mostrado e visto: no espaço físico, por exemplo (na arquitetura do apartamento, na disposição de uma janela, etc.). Naquilo que está nos gestos, no rosto sofrido de uma atriz, num sotaque específico – e que, a princípio, pode parecer pouco significativo. Ou, ainda, naquilo que é, de certa maneira, imponderável (a reação incomum de um ator amador, na cena que nos mostra de “Ouro Carmim”), que foge ao controle do artista-criador. Tudo isto é cinema, e apenas cinema, pois um filme não é simplesmente um roteiro contado ou mesmo ilustrado.
Será o próprio Panahi, portanto, que irá conscientemente desmentir, imagem a imagem, a questão feita: por que filmar? Porque mostrar algo e saber vê-lo é também uma forma de revelação, tanto quanto qualquer outra arte.
''Isto Não É um Filme'' é, portanto, um título mais do que apropriado: não uma imagem do mundo (algo que lhe é interditado), mas um objeto que é como uma imagem desta imagem (como o quadro de Magritte é uma imagem do chachimbo). E, no entanto, este é um belo filme – um dos mais belos que se pode ver nos últimos tempos.