Saraceni morreu. Viva Saraceni!
Inácio Araújo
Paulo Cezar Saraceni era um dinossauro. Via e praticava o cinema não como um meio de comunicação, mas como modo de conhecimento.
Saraceni era uma espécie de rocha de resistência. Fazia os filmes que lhe vinham à cabeça, filmes de artista.
Não eram filmes de propaganda, de publicidade. Não estalavam de produção e desperdício: Saraceni não era um novo rico do cinema de patrocínio.
O que fazia vivo, ainda, era incomodar um pouco. Seus filmes não interessavam à Ancine, ao MinC, ao público chic. Esse público que, ao ver “O Viajante”, durante a abertura de uma mostra de melhores do ano promovida pelo Sesc, deixava a sala.
Estava diante do, provavelmente, mais belo filme brasileiro desde os anos 90 do século 20, mas não sabia reconhecer.
Quando houve uma dessas premiações que tentam imitar o Oscar, Marília Pêra mal foi lembrada como melhor atriz. Mas nunca Marília Pêra foi tão sublime quanto naquele filme, naquela cena em que arremessa o filho débil mental pela ribanceira, por julgar que ele atrapalhava seu amor, ou naquela em que arrebenta a sacristia e maldiz a Deus.
Antes disso, convém não esquecer, “Natal da Portela”, que a seu tempo nem chegou a São Paulo. E como esquecer aquele Natal, o bicheiro, ou Milton Gonçalves?
O sujeito de um braço só que tanto podia matar os inimigos com crueldade como dar tudo que tinha às pessoas do seu bairro, da sua escola de samba, que substituía um governo incapaz de fazer alguma coisa pelos pobres.
Não fica por aí. Há muito mais.
Há maus filmes, até. Eu pelo menos não agüento ver “Anchieta, José do Brasil”.
Seu encontro com Lucio Cardoso foi definitivo.
Acho que Lucio Cardoso estava para ele como Graciliano para Nelson Pereira: mais que uma identificação, uma história de complemento mesmo.
Há, desde “Arraial do Cabo”, no cinema de Saraceni, uma integridade idêntica ao desejo de conhecer o mundo que o cercava.
E ainda havia o projeto de “Chaplin Club”, quer dizer, a filmagem dessa dedicação ao cinema que existiu entre um grupo de intelectuais em determinado momento.
Paulo Cezar Saraceni era um artista, ou seja, um incômodo: seus filmes não têm firulas. Diante deles, não há nada a fazer senão olhar, ver, perceber como as imagens falam, mostram uma alma, investigam. Não há nada a fazer, exceto contemplar, deixar que existam.
E Adriano, o ator…
As coisas já estavam ruins assim, quando chegou a notícia da morte de Adriano Stuart. Foi ator e diretor.
Não gostei do pouco que vi dele como diretor, mas não vi “O Bacalhau”, uma sátira de “Tubarão”, que parece ser o ponto alto de sua produção.
Mas ator houve poucos como ele.
Com o Ugo Giorgetti, que viu essa capacidade dele de entrar no personagem de tal modo que parecia até se tornar transparente, fez papéis para não esquecer. O ex-jogador de futebol de “Boleiros”, o artista de “Festa”, tantos outros.
Complemento: … e Zé Mário
Neste terrível fim de semana acabo de saber que perdemos também José Mário Ortiz Ramos.
O Zé Mário eu conheci faz tanto tempo que, para se ter uma idéia, Eder Mazzini era meu assistente de montagem.
Os dois vinham da Engenharia Mauá, mas gostavam mesmo era de cinema.
O Zé Mário colaborou no primeiro (e único) número da revista Cinegrafia, acho que foi seu primeiro trabalho ligado a cinema.
Depois fez curso na EHESS de Paris, entre outros, antes de se tornar professor da Unicamp.
Um AVC, há alguns anos, cortou o que me parece que seria uma carreira de muitos livros capitais para o conhecimento do cinema e da sociedade brasileira.
Teve tempo, em todo caso, de publicar o clássico “Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 40, 60,70”.
É um dos livros mais livres, despojado de preconceitos, sobre o cinema brasileiro, mas escrito com seu rigor de sociólogo.
Um último abraço ao amigo.