Quitéria e os outros
Inácio Araújo
Já deu para notar que eu não tenho falado muito de cinema. É pela simples razão de que não vejo filme que me entusiasme. É como dizer: temos mais o que fazer.
O Kiarostami disse uma coisa interessante: que esses filmes hollywoodianos não apenas não nos dão nada, como ainda tiram. Ok. Se fossem apenas os hollywoodianos estava bem.
Então vou dizer que lembrei da Quitéria.
Ela é a mulher que achou a bolsa de documentos que um dia eu perdi perto da Casa Flora e me ligou.
Nós marcamos um encontro, não me lembro mais onde, mas lá para os lados da Zona Leste. Era o terminal de ônibus dela.
Era longe pra burro, o que me leva a supor que ela vinha de muito longe até ali para tomar outra condução até o trabalho.
Eu percebi que era ela chegando. Pela maneira como andava na minha direção e porque eu devia ter a expressão mais ansiosa do mundo.
Aí, quando eu vi que ela agitava a bolsinha, dei uma corrida, um grande abraço e um beijo em seu rosto.
Era uma moça negra, nova ainda, forte, de rosto simpaticíssimo.
Aí eu dei um dinheiro para ela. Pelo aborrecimento, pelo deslocamento, pela gentileza, por tudo.
Mas não foi a isso que ela se mostrou reconhecida. Foi o abraço e o beijo. Ela era “cenourinha”, explicou, o que significa, concretamente, que trabalhava com lixo. E as pessoas, ela sentia que faziam como se ela não existisse.
Eu fiz cara de espanto. Porque todas as pessoas existem. Trabalhar com lixo não significa que sejam menos que os outros.
Então eu digo apenas que me sinto mal porque perdi o telefone da Quitéria, com quem eu queria voltar a falar, porque é uma cidadã íntegra e porque pensa no outro.
Isso aconteceu num sábado. Ela acabou o expediente. Podia ir descansar. Mandar o chato que perdeu a bolsa se lascar. Mas não fez isso. Ela pensou no outro, não é pouca coisa.
É uma coisa que a gente vê muito mais nas pessoas pobres do que nos AB, que pensam muito em si mesmos e só em si mesmos.
E o homem da carroça
Ouço dizer que esses homens que puxam carroça são desprezados, também eles.
Que as pessoas os xingam, dizem que são vagabundos, essas coisas. São pessoas para quem a única coisa que importa é a tralha do seu carro andar. A vida é secundária.
Mas essas pessoas estão enganadas em vários níveis.
Os homens das carroças são importantes para a reciclagem.
Claro, devia haver uma política mais desenvolvida disso no Brasil. Aqui em São Paulo, ao menos, é tudo uma porcaria.
De todo modo, penso que não existe política nacional para o lixo e a reciclagem.
Agora em São Paulo te vendem uma sacola ridícula por R$ 0.50 e escrevem “vamos salvar o planeta”. Com mais sinceridade, diriam “vamos salvar os supermercados”.
Não tem nem uma coleta decente de lixo reciclável, uma coisa vergonhosa…
Mas os paulistas convivem bem com isso, os paulistas AB, pelo menos. Enquanto puderem descarregar em cima dos carroceiros vão levando.
Eu aproveito essa vaga de filmes chatos para encher um pouco essa turma.