A caminho do Cinema Ritrovato
Inácio Araújo
Um dia em Lisboa
Para começar, uma parada rápida.
Ha algo de estranho em sair de São Paulo para a Europa.
Tudo aqui está atrapalhado, e no entanto existe um ar de civilização inequívoco.
Paira uma tranquilidade no ar que convive com certa segurança da própria civilização.
As pessoas não se matam correndo, batendo nos outros, essas coisas.
Mas dizer que as coisas vão bem…. Não vão, isso é evidente.
Está na cara. Esta nos pedintes, que me lembram que não os tenho encontrado no Brasil com a mesma intensidade. Esta nos músicos diante das pastelarias…
Na Cinemateca
E na régia, notável Cinemateca Portuguesa encontro o gentil Antonio Rodrigues, que me fala das dificuldades da instituição nesta época de corte de gastos.
A cultura é sempre quem paga o pato primeiro, nos cortes de orçamento.
E o cinema antes de todos. O cinema parece que não produz um filme ha um ano.
A Cinemateca está na tanga.
E no entanto, em sua sede, que fica na rua do hotel Ibis Liberdade, na parada Liberdade da av. da República (parada de ônibus, estou certo, de metrô não sei), bem, lá há duas belas salas de cinema que funcionam todo o tempo.
Assim como a biblioteca e a sublime livraria, com os catálogos notáveis que produzem e vendem a preço de custo.
Para nos o problema maior é o peso na hora de levar as malas… Porque vale o investimento nos livros.
Para fechar, um café agradabilíssimo, no segundo andar, onde fica também uma pequena sala de exposições.
Não fica no mesmo lugar o acervo e o laboratório, onde a Luiza, especialista em cores e filha do Zetas Malzoni, que está aqui em Bolonha, lembra que fez um estagio extraordinário pela Cinemateca Brasileira.
Por falar nisso: acho que a nossa Cinemateca cuida bem desses aspectos técnicos. O que nunca compreenderei é seu autismo. Voltarei a isso, que me parece importante.
2. Em Bolonha
Em relação ao ano passado, Bolonha tem uma diversidade que me parece até excessiva de temas.
Chegarei aos filmes.
Mas o retorno à cinefilia é um deles, e não dos menores.
Varias mesas as respeito, uma delas quase um quebra-pau, mas muito informativa, entre Jean Douchet (Cahiers du Cinéma) e Michel Ciment (Positif).
Entre outras sumidades que estiveram nessas mesas, como Jonathan Rosenbaum e Kevin Bronlow.
Bem, a idéia de Gian Luca Farinelli, o diretor geral do festival, é que hoje existe uma nova geração de cinéfilos. E, com efeito, a olho nu, percebe-se uma presença forte de uma garotada interessadíssima nos filmes, desde os de 1912 aos restauros mais recentes.
É em grande parte um trabalho deste festival e desta Cineteca de Bolonha.
Aí entra minha questão: essa nova cinefilia não sai do cinema, nem da TV, mas da internet. Dos filmes baixados e vistos… Bolonha é um ponto de encontro, como certamente será a Cinemateca Francesa.
A questão é: como fazer essas pessoas, eruditas (ao menos em cinema), espantosamente por vezes, se aproximarem, se conhecerem, desenvolverem idéias comuns e diferenças, discussões, em suma.
Apresentar filmes já não basta. O trabalho universitário é importante, mas nunca será suficiente. O CCBB faz um trabalho extraordinário, mas numa sala ínfima, onde não dá para marcar um encontro, porque é impossível saber se vai haver lugar…
Enfim, as pessoas se encontram, nas revistas, na Mostra, onde dá. Ou seja, o trabalho de uma Cinemateca hoje é muito mais complicado (não a burocracia; essa se tira de letra).
Preservar é importante. Mas preservar para quê? Para que as pessoas possam ver e pensar a partir disso, não é?
Difundir é essencial. O cinema é minoritário, tudo bem. Mas, como bem lembrou Michel Ciment, certa vez Stalin perguntou ''E quantas divisões tem o Papa?'', para se referir à força bélica do Vaticano.
Bem, o Papa não tem divisão alguma, mas está aí. Stalin, com todas as suas divisões, blindados e bombas A, já era.
O cinema tem função, não pode ficar nas mãos dos comerciantes, das Globos e das majors, e das pipocas…
As cinematecas tem um papel nessa história…
(Lembro que esse foi o meu tema único nos anos em que, a convite do fabuloso Thomas Farkas, participei do Conselho da Cinemateca. O assunto nunca foi visto como urgente. Talvez não fosse. Mas cada vez mais se torna. Eu, com toda franqueza, preferia que no Conselho se fizesse um pouco menos de orações a Paulo Emilio e se tentasse imitá-lo um pouco, a ele, que foi fundamental na difusão do cinema como modo de conhecimento. Desculpem o parênteses, mas, caramba, estar lá no sábado aas 9 da matina para ver que pouco se caminhava naquilo que mais me interessava… era duro).
3. Uma sessão para não esquecer: Viagem à Itália restaurado
Restaurado em digital. Restaurado até demais. Falta aquela incerteza, aquela imprecisãozinha do grão. Isso o digital não tem. E inteiro, uniforme, até duro, límpido demais, claro demais…
Mas que importa? Ai está ele. Impecável. Difícil entender como esse filme possa ter fracassado inteiramente.
Ali o casal Ingrid Bergman e George Sanders, em crise, vai a Napoli cuidar de negócios.
A crise se agrava, o tédio é total. Sanders detesta museus. Vai a Capri tentando se divertir. Mulheres, claro. Não pega tchongas.
Ingrid fica em Napoli e só a levam a ver mortos: catacumbas, túmulos, Pompéia.
Morte e crianças. Criança para ela é meio igual à morte, porque ela não tem filhos…
E assim vai. Até que veremos uma magnífica procissão, em que os dois se perdem, tal a multidão, tal a força da multidão e de sua fé.
É então que veremos um milagre…
Bem, Rossellini era católico. Esperavam o que?
No fim a platéia chorava. Impossível não se comover diante da beleza do filme. Impossível.
Mas, para além da beleza, como sempre é Jean Douchet que vem em nosso socorro, explicar Rossellini.
E porque não era aceito, nem compreendido: porque o cinema trabalha a ação em função de um futuro… Daquilo que virá… Do objetivo, como diria um roteirista.
Enquanto Rossellini filma o presente. Não pensa no que virá depois. No resultado da ação de cada personagem. O ato é um ato, fim.
A pensar: por contemporâneo que seja, isso não tem muito a ver com o presentismo detectado por François Hartog. Para Rossellini existe uma utopia. Ela se chama, eventualmente, Jesus Nazareno.