Blog do Inácio Araújo

Lincoln, o americano tranquilo

Inácio Araújo

 

Saí de “Lincoln” bem impressionado.

Tinha visto o filme quase fora do cinema (fila B, poltrona 23 de um Kinoplex), tinha tudo para achar aquilo longo e tal, mas não foi essa a impressão que me ficou.

Pensei que Spielberg fez um filme de fato fordiano, que de certa forma busca reinstituir o mito da América. Em outros termos, na verdade, mas nem tanto.

Não se trata da vida de Lincoln. São alguns meses, aqueles que precedem a votação da emenda que decretaria o fim da escravatura.

Para ter sucesso, Lincoln precisa conseguir manter sua bancada (republicana) unida e ainda angariar 20 votos entre os democratas.

Mas precisa fazê-lo antes que a guerra civil acabe, pois o Sul está exangue. E precisa que seus exércitos continuem a atacar os sulistas.

Precisa contentar a parte mais conservadora de sua bancada e acalmar os radicais.

Enfim, o momento histórico que Spielberg maneja não é de força, mas de razão e negociação. Aí está a grandeza de Lincoln. Se atrasar a votação da emenda, terá de volta as bancadas sulistas (ora em secessão) e perderá fatalmente. Tem de fazer algo num momento exato, passando por todas as vicissitudes que um presidente enfrenta no caso de um congresso dividido.

O que me parece sensacional é a forma como Spielberg toma esse tema espinhoso, nada Indiana Jones, e o leva com firmeza. Não facilita as coisas introduzindo cenas emocionais, nada (ou: não mais do que John Ford faria)

É verdade que Daniel Day Lewis (e o maquiador) ajudam muito. Mas eis aí um filme escuro, feito no escuro, muito arrojado, com base sobretudo no “homem que pensa”, Lincoln.

Há essa mitologia, é verdade. Mas no caso ela se origina menos das efígies lincolnescas (exceto por uma imagem logo no começo do filme, ao menos que eu tenha notado) do que do filme de Ford, “A Mocidade de Lincoln”. Sobretudo a imagem do Lincoln andando solitário, se distanciando, aquela figura esguia, que lembra um pouco Nosferatu, essa é a verdade, me fez lembrar mais ainda da figura também esguia de Henry Fonda como jovem Lincoln.

Talvez Spielberg estivesse pensando em Obama, que ora tenta reconstruir o país enquanto sofre forte oposição. Claro, os estilos e circunstâncias são bem outros, mas ainda desta vez a negociação é a chave, o raciocínio, a capacidade de mover as pedras nesse xadrez cheio de movimentos traiçoeiros.

E se se aproxima de Ford, ao mesmo tempo opõe-se a ele: aqui de certa forma há um “grande homem”, o grande homem americano por excelência, tutelando o filme, levando a história adiante. Ford nunca cultivou isso. Ainda assim, um quê fordiano está presente no filme.

P.S. 1 – Aqui vê-se Lincoln, ninguém menos, envolvido até o pescoço num profundo mensalão. Oferece empregos, compra, chantageia congressistas na maior. É imoral, nesse momento em que a moralidade seria… escravagista. Se estivesse no Brasil as coisas seriam diferentes. Nos Estados Unidos a lei corre meio frouxa.

P.S. 2 – Por que são tão caros os restaurantes e as roupas em São Paulo? Acho que é porque são os dois únicos assuntos sobre os quais os paulistas gostam de falar e discorrem com propriedade. Não é porque os aluguéis são caros, nem os impostos altos. Acho… Digo isso porque, vendo o filme, perto de mim, quando Lincoln menciona Euclides, a amiga volta-se à outra amiga e pergunta: “Euclides da Cunha?”