Caça aos desviantes
Inácio Araújo
Do que adianta fazerem uma bela mostra de Samuel Fuller e todo mundo comentar?
A caça aos desviantes está em pleno vigor.
Vigor ditatorial, eu diria.
Vejamos o caso mais recente: um aluno, fazendo exame do Enem, escrevendo a respeito de imigração (quase nunca isso é dito), resolveu fazer uma pausa, para amenizar, e enfiou lá uma receita de miojo.
Foi o bastante para começar um bullying contra o rapaz, contra os examinadores, contra não sei mais quem, comandado, é claro, pelos jornalistas e professores de português.
Com todo respeito, conheci professores de português que eram umas bestas quadradas. Nem todos, há os geniais também. Esses tornam os seus alunos interessados na leitura, por exemplo, e na cultura.
Os outros… Bem, os outros reprimem, exigem respeito à autoridade, esse tipo de coisa.
Volto ao caso. Para mim, o menino da receita de miojo é um sopro de alegria, de criatividade, de liberdade nesse exame chato (como todos os exames).
Se fosse eu o examinador levava nota máxima. Mas eu sou um outro desviante… Minoritário à beça. Nada feito…
Ora, só um tapado não percebe a relevância do miojo na imigração japonesa. É uma marca. Claro, há outras. Há os pintores, os filmes da Liberdade, o suchi (ou suxí?, ou çuchi?), por exemplo.
Um bom professor, acho eu, é o que sustentar e der força a esse menino. Porque é preciso irreverência, é preciso um tanto de desrespeito nesse mundo sacal.
Então vêm os jornalistas, que caem em cima porque são massacrados com esse papo de “norma culta” desde que acabaram os revisores. Fazem erros, não sabem verbos, nem vírgulas. Então precisam aprender tudo de uma hora pra outra. Aprendem mais ou menos, apanham e querem bater nos outros. Eu mesmo, que não sou tão ignorante assim, aprendi um monte quando o Pasquale veio dar aulas na Folha. Foi ótimo. Aprendi, por exemplo, que a gente não mete vírgula quando respira. Não é isso, há uma lógica na coisa. Eu desconhecia isso. E, caramba, sou leitor desde que nasci praticamente. Eu não sabia falar direito e minha mãe já me tinha feito decorar uma poesia do Machado.
Quando eu era copy desk, meu Deus, corrigi textos de sumidades nacionais (e mesmo internacionais) com erros que dariam medo em muito semi-analfabeto. Não tira o mérito da pessoa. Estavam em outro lugar (os méritos). Se caíssem nas mãos desses professores estava lá: reprovado!!!!!!!
A marcha da repressão hoje é quase incontrolável. Não vem dos militares, do governo, da oposição: a palavra de ordem vem dos ex-juízes de futebol na Globo, sobretudo o Wright: tem que punir, tem que expulsar, tem que dar cartão, tem que impor respeito.
Tudo é punição. Respeito. Ordem e progresso. Crime e castigo. Mundo apertado, besta.
Viva o menino do miojo. O do hino do Palmeiras também. Menos. Mas futebol é o que passa na cabeça desses garotos. E o Palmeiras é imigração italiana, não é, então qual o galho?
O pior de tudo é o que o Enem (ou o MEC, ou lá quem seja), apertado pela inquisição, em vez de mandar plantar batatas, já prometeu que vai mudar os critérios, que vai dar nota zero a quem fizer brincadeira na prova e tal e coisa.
Em suma: cartão vermelho. Expulsa. Respeito! Fora da classe! Pra diretoria!
Vigiar e punir.
Nenhuma chance para a alegria, que é a prova dos nove, dizia Oswald.
E onde está Oswald? Cai na prova? Está esquecido.
Gostei do Xico Sá-ience falando da Nicole Puzzi. Era a mais linda atriz do cinema brasileiro, sem dúvida, embora uma má atriz. Tinha muitas mágoas do cinema (e dos produtores), isso a tornou uma atriz dura, como se diz. Mas era um espanto, uma graça.
Voltando ao assunto principal, mas não muito: a nossa língua é difícil, cheia de meandros.
“Dominar a norma culta” é diferente de “erro zero”, como reivindicam os professores e os colegas jornalistas.
A norma culta é uma abstração. Um conjunto de leis perfeitamente modificáveis. Não é a Tábua da Lei. Entram e saem palavras nela. Entram e saem formulações. Para isso existem a escrita e os escritores. Os escritores não os escreventes, como bem dizia Barthes. Deles vamos esperando a contribuição milionária dos erros, contra a miséria dos acertos estéreis.