Blog do Inácio Araújo

Dois suicídios

Inácio Araújo

Todo mundo já sabe, acho, que prefiro filmes “vazios”. Sem mensagem. Sem apoio excessivo nos temas.

Mas o canadense “O que Traz Boas-Novas” não se deixa intimidar pelo tamanho do tema.

Temos, de início, o suicídio de uma professora. Ela se enforca na classe onde leciona e, ao que parece, de modo a que seja vista por um determinado aluno.

Como não encontra um substituto para ela, em seu lugar entra um argelino, que não é bem imigrante, é um cara que está pedindo asilo político ao Canadá (a ação se passa em Montréal).

A partir de então temos o tema da pedagogia em destaque no filme. Da pedagogia moderna. Detesto quando se observam os métodos educacionais como chave para o entendimento do mundo. Se fossem, a URSS não teria ido aonde foi parar.

Mas existe algo a discutir no cinema a respeito desde “Zero de Conduta”. A França é quem eu vejo ter sido mais consequente em relação ao tema. Veio depois Truffaut, com “Os Incompreendidos” e houve um filme mais recente, não lembro o nome agora, sobre o problema da escola francesa (republicana) em relação a imigrantes, religiões, convivência de cultura distintas (e conhecimentos idem) numa mesma classe, etc.

“Boas-Novas” não tem o mesmo alcance, mas possui uma sensibilidade a reter, na medida em que o M. Lazhar, o novo professor, cuidará de ensinar aos alunos certas coisas que parecem esquecidas: autores clássicos, certa disciplina, sentido de organização. E tal.

Quer dizer: se “Zero” e “Incompreendidos”, sobretudo o segundo, tem no caráter repressivo da escola um inimigo do estudante, o filme canadense joga no sentido contrário: uma pedagogia excessivamente liberal tende, nessa visão, a criar crianças superprotegidas (ou mimadas), que sabem se servir muito bem de prerrogativas há pouco obtidas para oprimir seus mestres, tornando-se, conforme o temperamento (ou o dos pais, com idéias tipo “não me toques”) pequenos tiranos. E mestres oprimidos não ensinam: estão contra a parede.

Evidentemente, começar pelo suicídio é uma apelação. Pode até ter havido algum caso assim, mas isso não quer dizer nada, nadinha… Me parece que não ajuda na discussãoem nada. Maso assunto levantado é mais que pertinente.

Há mais de uma geração que cresceu sob esse tipo de ideologia pedagógica, a da liberdade total. O número de pessoas malcriadas cresceu muito, e não sei se a inteligência floresceu enormemente por isso.

Elena

Muitas pessoas vêm me falar bem de “Elena”, entre elas minha irmã. Estou longe de partilhar desse entusiasmo. Por inúmeras razões. A primeira delas é que, ao final do filme, constato que não descobri nada, praticamente, sobre a moça, exceto que tinha um desejo quase insano de se tornar atriz.

Tudo mais a seu respeito permanece, se não perdi nada, intocado. Quem era ela à parte isso?

Existem seus diários gravados, e os filmes caseiros, e alguma coisa de apresentações de Elena (ela aparece numa bela dança, espécie de dança de serpentina no programa Metropolis).

Muito pouco para um filme que se justifica como algo que vai em busca de Elena, de seus enigmas, de sua morte.

Ler a sua carta de despedida me parece uma invasão de privacidade que a fraternidade não chega a perdoar. Elena diz ali que se mata porque não consegue exercer sua arte, a única coisa que a justificaria.

Bem, vamos ver um pouco essas palavras. Ela é uma brasileira que vai estudar arte dramática em NY. É uma estrangeira, portanto. Sonha com Hollywood e, talvez, a Broadway.

Como todos sabemos, o que não falta é quem sonhe com Hollywood e a Broadway. Se cada um que não tenha sido bem sucedido nesse aspecto se suicidasse não haveria braços para enterrar todos eles.

Às vezes a gente vê um jovem ator, acaba de se consagrar, e sabemos em seguida o quanto ele pastou antes de chegar lá. E o quanto a sorte contou. E o quanto contou um bom agente. E outros acasos. O número de garçons e garçonetes (lembremos “Mulholand Drive”) nesse ramo não é grande por acaso.

Na verdade não estamos diante de um filme sobre Elena, mas sobre os sentimentos da irmã a seu respeito. À irmã ocorre ser a diretora do filme, Petra Costa. Trata-se, portanto, de um desses documentários confessionais que têm se multiplicado nos últimos tempos, alguns interessantes outros nem tanto. Petra é também a narradora em primeira pessoa. A primeira pessoa é ela: sua dor, sua perplexidade face à morte da irmã. A necessidade de juntar documentos, de visitar os lugares, de rever as imagens… Essa necessidade de explicação gira em falso. É compreensível, do ponto de vista pessoal: quem poderia encontrar uma explicação plausível para a morte de um ser querido? Para uma morte prematura? E violenta?

Mas um artista tem o dever de buscar uma explicação fora de si mesmo. Assim, o que me chama a atenção é o número de omissões a respeito de Elena e sua família.

Petra não avançou nada no conhecimento da irmã, a julgar pelo filme. Como ela era, realmente, à parte as aparências? E a família? Por que vai a estudar no exterior, longe da família? Etc.

Eu entendo que à autora do documentário interessem basicamente os aspectos sentimentais da história. Mas não entendo porque eu deveria me deixar seduzir por eles. Ou antes, eu sei que o espectador de cinema é um ser especialmente seduzível por sentimentalidades.

Eu me pergunto apenas uma coisa: se Petra colocasse suas palavras, seu monólogo sobre a irmã em texto, num livro, será que as mesmas pessoas iriam suportar a coisa?

Sei que para parcela imensa da população o cinema é um depósito de sentimentos. Que uma boa música triste leva milhões às lágrimas diante de uma cena sem nenhum valor. Mas, por favor… Dentro de certos limites.

Passemos a uma questão importante: a família. O filme nos informa que os pais eram do PCdoB, que só não foram para o Araguaia não me lembro mais porquê. Daí cessa toda informação. É bem errado, tratando-se de um documentário, pois por mais belo que seja estar no PcdoB, na guerrilha, lutar pela liberdade e tal, isso não acrescenta nada ao destino de Elena. Vira uma espécie de título nobiliárquico: ele lutou no Araguaia. Pois pois.

Mas por que o pai desaparece da história? E como desaparece? E a mãe, além do seu justificável olhar de tristeza, o que sabemos a respeito dela?

E essa tristeza vem da morte da filha? Aceitemos. Mas ela se culpa pela morte ou não? Ela aceita a versão de que a filha morreu porque não conseguia um bom papel? Isso me cheira a lorota, com toda franqueza. Se Elena estava deprimida não haveria algo mais profundo nisso? Por que não se toca no assunto?

Isso é o que no fim o filme me passou: que existe para lançar sentimentos e sentimentalismo sobre o assunto, ao mesmo tempo em que preserva certos mistérios familiares com muito cuidado.

* * *

Bem, eu sei que, se existe tradição na internet, vai chover gente dizendo que eu sou um coração de pedra, que digo isso porque nunca perdi nenhum ente querido etc.

A esses só posso dizer que o filme lembrou-me o “Poema à Minha Irmã Morta”, que escrevi um dia. Felizmente esses não terão como chorar à leitura desse texto adolescente que, felizmente, rasguei e joguei fora antes que tivesse chance de chegar à celebridade.