Sonho e pesadelo
Inácio Araújo
Todo mundo tenta entender as mobilizações. Que eu tenha visto, só o cara da Record já entendeu.
Tendo, subitamente, perdido sua bandeira favorita (polícia tem que dar pau com violência) passou a defensor dos pagadores de impostos.
Ah, eis como transformar um movimento que, aos trancos e barrancos, afirma a cidadania, em movimento de consumidores.
Todos os outros, que eu leio, tateiam com honestidade. Buscam pistas. Li coisas muito boas no Safatle, depois no Marcelo Coelho. Mas todos somos cegos tateando o elefante e tentando descobrir o que é isso.
O Jabor, me dizem, fez um voltaface violento. De criminosos um dia os rapazes passaram a heróis nacionais no outro. Mas não vi.
O Antonio Prata e um ministro que apareceu na TV foram os com quem estou mais de acordo: ainda não entendemos patavina.
Vi, gravado, o Roda Viva da segunda-feira. De um modo geral, os jornalistas eram muito, fortemente críticos ao movimento de rua.
A menina e o menino deram um banho neles.
De lá para cá a imprensa virou a favor do movimento, mas em larga medida sem saber a favor do que está verdadeiramente.
Em todo caso, não me parece que o essencial esteja na idéia de Passe Livre, nem de 20 centavos.
Há muito mais nisso.
Acho que o Prata (ou o Marcelo?) fala do direito de sonhar.
Isso é vital.
Chega de realismo!
Todas as decisões parecem muito distantes de nós, isso é certo.
Algumas unanimidades:
Contra a polícia. Contra a violência.
Muito bem, também sou contra. Mas me parece uma coisa que precisa ser mais ampla. É uma questão de ver a vida. Não pode dar pau na passeata, é claro. Mas também não pode pegar o menino da periferia, só porque usa havaiana e bermuda, e encostar na parede e pedir todos os documentos. Ou achacar o guardador de carro que vai ganhando sua vida ao lado do museu (honestamente).
Porque quando as pessoas sentem que sua vida não tem valor (para a polícia, poder imediato), não se pode pedir que dêem valor à vida dos outros, nossa, dos ricos.
Contra o vandalismo.
O vandalismo, na sua versão mais recente, é a violência do pobre.
Em Brasília tomaram o Congresso, para mostrar o quanto não nos sentimentos representados pelos representantes. Estou nessa.
No Rio, quebraram os vitrais franceses da Assembléia. Não estão contra os vitrais, creio eu, mas contra o legislativo.
Em São Paulosaquearam as lojas. Todo mundo está contra.
Mas não me parece tão simples, a partir de uma frase que ouvi nos jornais: A vida inteira nos roubaram. Agora é a nossa vez!
São, portanto, pessoas mais pobres, que se sentem roubadas diretamente pelos lojistas. Não abstraem muito. Quem rouba são as Americanas, é a Marisa e tal.
Mas o sentimento é mais ou menos o mesmo de muita gente que está na rua.
Então, à parte isso provocar reação policial, a onda é a mesma. Cada um surfa como pode.
Se todo mundo está cheio da lenga-lenga que, acho que o Prata escreveu, tudo melhora, melhora, melhora, mas continua horrível, se é preciso mesmo virar a mesa e sonhar, tem esse outro lado, o pesadelo. O que está fora de qualquer sonho.
Como todo o resto, será preciso entendê-lo.
(Muito pessoalmente: entre as coisas decididas às nossas costas está essa regulamentação da meia-entrada.
Primeiro, para sacanear a UNE, tiraram dela a exclusividade de emitir carteira de estudante. Daí virou uma esbórnia, é claro, só podia virar.
Agora querem estabelecer uma quota: 40%.
Ok. (ok nada, só para raciocinar) Mas quem vai controlar quando chegou aos 40%?
E qual o compromisso assumido (e assinado) por exibidores, produtores, o diabo, em troca disso?
E se o limite é 40%, qual a porcentagem da meia-entrada hoje em dia?
Tudo isso é nas nossas costas. E vai cair, entre outros nas costas dos espectadores de cinema).