Blog do Inácio Araújo

Do Capitão Nascimento ao sumiço de Amarildo

Inácio Araújo

 

Já faz duas colunas, salvo erro, que Elio Gaspari aproxima “Tropa de Elite” do desaparecimento de Amarildo no Rio de Janeiro.

Ele se refere em particular à cena em que a polícia coloca um saco plástico na cabeça de um suspeito. Uma cena, lembra, aplaudida pelo público. E uma cena repetida com Amarildo, segundo Gaspari (digo “segundo” porque não vi nem li a respeito) e, obviamente, detestada pela população.

Esse retorno à cena aponta a complexidade, nem sempre cinematográfica, do fenômeno.

Se existe um mérito pouco questionável em “Tropa de Elite” é o de ter chamado a atenção para outro modo de observar a criminalidade que não o tradicional do cinema. Tratava-se, enfim, não de compreender o fenômeno, mas de enfrentá-lo. Existe aí algo de razoável, pelo menos.

O problema é que, numa dramaturgia tradicional, o filme de José Padilha só faltava pedir a canonização dos policiais. Eles eram preparados para a guerra, à maneira do “Iwo Jima” de Allan Dwan. E faziam guerra seja ao tráfico e decorrências, seja à corrupção policial.

O problema do filme é não compreender, ou não querer compreender que o cinema é uma máquina diabólica. Ele carrega ao mesmo tempo a realidade e a ideia da realidade.

O público não só acredita no que vê (a cena de tortura, pois é disso que se trata na cena do saco de plástico), mas envolve-se com a ideia aí contida, de que isso é certo, pois o filme se constitui sobre a ideia de que a causa do Bope  é justa.

Sabemos o quanto, por exemplo, a ocupação de favelas via UPPs deve a esse mito do Bope criado pelo filme: quando eles chegavam, percebia-se no ar um sentimento de confiança. Os Intocáveis estavam chegando, com sua força e integridade!

Podia parecer “bom”, mas o perigo estava lá. Na montagem, no caso – para lembrar André Bazin. Com a montagem se faz com que negros sejam odiados (O Nascimento de uma Nação), os judeus parecerem seres intrinsecamente nocivos (o cinema nazi inteiro) e daí por diante.

O sentimento de otimismo diante do filme deveria ter sido mitigado de imediato. Os perigos deveriam ter sido expostos. Esse tipo de sentimento é perigoso. É realmente fascista, o que não significa que o filme seja. Todo filme montado assim é um perigo em potencial, alguns o exercem, por inconsciência (Padilha) ou cálculo (Goebbels).

É preciso lembrar que esse sentimento de mata-esfola já estava na população. Os aplausos eram sintomáticos disso.

A sociedade (a paulista, sobretudo, mais que a carioca, cujos ódios eu sinto mais localizados) não quer justiça, de jeito nenhum: quer aparência de justiça. Eis o que “Tropa” oferecia, uma imagem, uma aparência de justiça. Uma ampla parcela da população queria exatamente isso. Uma parcela é francamente saudosa da ditadura (pior: boa parte não a viveu – é a nostalgia do que nunca foi, para ficar perto de Fernando Pessoa), e é perigosa, sim.

Conceder essa crença à polícia é o que há de mais perigoso no mundo.

Conceder à hipótese de imagens e ideias se igualarem, muito perigoso, também.

DVD, minha alegria

Do que falar nessa entressafra de cinema? Entressafra, eu disse? Parece uma travessia do deserto.

Nada me anima a escrever, salvo esses filmes da Versátil, sobretudo. Agora, os Minnellis que eles estão lançando, e os Ozus programados. A Lume anda um pouco devagar, mas é sempre digna.

Há também os do Instituto Moreira Salles, que lançou a caixa preciosa do Nelson Pereira dos Santos.

E, desculpem dizer, é bom ficar de olho nessa coleção da Folha. Eu acho chato ficar fazendo promoção de um produto do jornal em que trabalho, mas o fato é que a coleção anterior, a dos filmes europeus, trazia coisas ótimas. Exemplo: em vez da cópia nojenta do “Potemkin” que havia em circulação, entrou uma muito boa (que não havia circulando antes provavelmente porque a cópia nojenta da Continental ocupara o lugar no mercado).

Há de se ressaltar que essas edições repulsivas, lançadas afobadamente, com imagem desigual, traduções não raro horríveis e também não raro emperrando na máquina, estragaram muito o mercado de DVD.

Nós piratas

Como se sabe, não existem piratas entre nós.

Só funcionários públicos e políticos. Todos somos honestos.

Compramos DVDs piratas não porque isso pareça uma economia, mas porque somos contra os impostos etc. que o governo cobra etc.

Mas compramos. As banquinhas em frente ao Espaço Augusta vivem lotadas.

Só uma coisa: se se quisesse acabar com a pirataria isso já teria acabado. Não existe nada mais público, mais exposto, mais à vista do que essas banquinhas.

Não entendo (ou antes: entendo) porque continuam a funcionar livremente ou quase.