Sobre Biografias
Inácio Araújo
Recebi o ótimo texto abaixo, por email, do João Carlos Rodrigues. É muito abrangente e concordo em quase tudo com ele. Abaixo dele, acrescento duas ou três linhas, talvez até para divergir um pouco.
João Carlos Rodrigues
Nada poderia ter feito mais mal às biografias de Caetano-Gil-Milton-Chico (e os outros todos, também) do que ter assinado o manifesto Procure Saber. Nem o panfleto mais apócrifo, mais caluniador, mais nauseabundo, cheio de calúnias e/ou insinuações teria um efeito tão nefasto. Pois, se algum deles fosse vítima de uma infâmia dessas, entraria como vítima e teria a solidariedade nacional, como ótimos artistas há mais de quatro décadas encarapitados na árvore evolutiva da música brasileira. Como signatários do Procure Saber assumem uma nova face até agora oculta, a face do obscurantismo, o lado escuro da força. Que decepção para os que, como eu e outros muitos, sempre os tivemos como faróis libertários, mesmo nos momentos mais tumultuados da vida brasileira, 45 anos atrás. O tempo não lhes foi bondoso, constatamos tristonhos. Os reis estão nus, como na fábula. E velhos. Não apenas nas faces já não tão faceiras, mas principalmente nas suas opiniões sobre o que é a Liberdade (de expressão), que na brilhante definição da Rosa Luxemburgo, é “a liberdade dos que divergem de nós”.
Escrevi duas biografias. João do Rio e Johnny Alf. Os dois não tinham parentes, sorte minha, pois suas vidas tinham segredos que não podiam revelar, mas que elucidam (e muito) suas obras. Teriam sido interditadas pela lei vigente. Em ambos os casos recebi informações bombásticas, algumas certamente verdadeiras, outras jamais, mas que, por não possuírem provas idôneas ou realmente contribuírem para a compreensão do trabalho deles, simplesmente ignorei. Sim, é preciso que o biógrafo tenha discernimento. Mas, assim como a liberdade de imprensa implica também na liberdade dos maus jornais e dos maus jornalistas, é melhor que sejam publicadas biografias mal intencionadas do que sejam impedidas as que realmente contribuem para o andar da carruagem.
Pensemos agora além das frágeis intimidades dos quatro semideuses, mas pensemos grande, além do horizonte. Como se farão os estudos da História do Brasil apenas com biografias chapa branca? Como se elucidará a personalidade de políticos, e, por conseguinte, dos seus mandos e desmandos? Então Sarney, Renan, Dirceu, Collor, Maluf e outras jóias do nosso cancioneiro político terão de aprovar previamente o que for escrito sobre eles? O eleitor nunca terá a oportunidade de conhecer a face oculta da lua? Devem estar às gargalhadas, brindando o apoio inesperado recebido por tão ilustres personalidades. Pois é isso que vai acontecer, caros menestréis, se o seu estouvado e inoportuno manifesto for levado a sério como se pretende. E é assim que construiremos um país que valha a pena? Cedendo aos pudores póstumos das madalenas arrependidas? Vergonha. Vergonha. Vergonha. Que herança maldita deixarão para seus filhos e netos! De recuo em recuo, qualquer Bakunin vira Pastor Malafaia.
Então, para arrematar, repito o que disse no primeiro parágrafo. Nem o mais infame pasquim da imprensa marrom fará algum dia maior mal às biografias de Caetano-Gil-Milton-Chico do que o fato de terem assinado o Procure Saber. O que é isso, companheiros? Quem não deve, não teme. Agora é tarde. Podiam morrer sem essa. Daqui a um século talvez as belas canções tenham sido esquecidas, mas o manifesto não será, infelizmente. Uma nódoa indelével que o futuro repetirá ad aeternum através de suas biografias, autorizadas ou não. Pois tenho esperança e quase certeza de que a sensatez e a liberdade de expressão vencerão. Para o bem de todos nós, inclusive deles mesmos. Adeus, meus caros. “Bato o portão sem fazer alarde, levando a carteira de identidade e a leve impressão de que já vou tarde”. Mas no caminho certo.
RJ, 17 outubro 2013
Questões pontuais
Agora sou eu, Inácio, e minhas dúvidas.
Me parece que, desde o início, há duas questões misturadas aí: uma, o do direito à intimidade (inclua-se nela o direito à verdade e tal); outra, o do direito a indenização monetária por uso da imagem.
A segunda, partindo de quem parte, é uma coisa indefensável. Eu posso entender que a família do Garrincha precise desse dinheiro (que, aqui entre nós, nem é tanto assim). Mas o Chico Buarque? O Caetano Veloso? O Roberto Carlos? Não dá.
A primeira teria de mim alguma simpatia. Não me parece que intimidades da vida de um cantor ou compositor, por exemplo, devam ser expostas, pelo menos enquanto ele estiver vivo, primeiro porque existe o seu direito à privacidade e não convém confundir isso com torturadores. Segundo, porque não está claro para mim que conhecer algo sobre os casamentos de um ou as separações de outro, a sexualidade de um terceiro possam ter algum interesse para a cultura nacional.
Por uma questão de bom senso, apenas isso, em princípio essas biografias deveriam ser sempre póstumas, até porque o tempo é que poderá dar a medida da importância de determinada vida.
O que Noel ou Guimarães Rosa representam para a cultura, sabe-se. O que representará Roberto Carlos daqui a 20 ou 30 anos? E nesse caso surgirá algum biógrafo interessado no assunto ou o interesse é mesmo apenas mercantil?
Estava eu nessa simpatia por ao menos essa parte da argumentação, quando li que Paula Lavigne, num programa de TV, interpelou a jornalista Barbara Gancia sobre sua sexualidade.
Uma interpelação cuja baixeza não deixa dúvida sobre a personagem, pois seu único objetivo era embaraçar a interlocutora justamente naquele ponto – a vida pessoal – cuja proteção tem sido tão reivindicada pelos artistas em questão.
Aliás, para falar a verdade, a questão que me fica é a seguinte: se você se expõe na TV ou na Caras, ou algo assim, com objetivos publicitários, produzindo uma falsa intimidade, com que cara interditar que uma outra intimidade, talvez verdadeira, seja produzida?
Enfim, quase não tenho certezas finais a esse respeito, mas me sinto próximo ao raciocínio do João Carlos.
Se eu legislasse sobre isso, pediria em contrapartida que herdeiros devessem ser excluídos de direitos diretos ou conexos sobre a obra de seus pais ou parentes. Impedir que se fale de Guimarães Rosa, que se exiba o “Matraga” de Roberto Santos, que se proíba biografia de daqui a 20 ou 30 anos? E nesse caso surgirá algum biógrafo interessado no assunto ou o interesse é mesmo apenas mercantil?