Hilton Lacerda fala de seu “Tatuagem”
Inácio Araújo
Agora que o blog está para acabar me veio essa ideia de pedir a realizadores de que me sinto próximo para que falem bem à vontade sobre seus trabalhos. Hoje é a vez de Hilton Lacerda, do estranhamente belo e envolvente “Tatuagem”
Entrevista de Hilton Lacerda ao blog.
Você tem sido roteirista por vários anos, desde pelo menos “Baile perfumado”. Como sentiu a passagem à direção?
Apesar de estar mais diretamente ligado ao roteiro, a direção sempre esteve presente em meu horizonte. Desde os curtas que dirigi (“Simião Martiniano, O Camelô do Cinema” e “A Visita”), os documentários para a TV e o próprio “Cartola – Música Para Os Olhos”, onde divido a direção com Lírio Ferreira, o que sempre me guiou foi o processo narrativo do cinema. – e isso levando em consideração todas as nuances que a narração pode trazer. Na grande maioria dos roteiros que trabalhei, acredito que a cumplicidade com a direção e a produção foi fundamental para a construção dos projetos. E quase sempre estou no set, conversando com a direção, com o elenco… Acho que é uma mecânica que interessa para nosso grupo, quando isso é possível. E isso para, juntos, aproveitarmos o máximo nossas contribuições. E no meio de tudo o embate, a defesa, a problemática.
Mas a natureza do roteiro é bastante diferente da direção. E no filme o que mais interessa é onde você coloca seu olhar, seu enquadramento, sua noção narrativa. Então, passar de uma função para outra, principalmente na complexa produção de um longa-metragem de ficção, me puxou para uma responsabilidade mais apurada. Mais autônoma. E muito mais excitante. Costumo brincar dizendo que agora já não posso culpar possíveis deslizes do outro para me justificar.
A passagem do roteiro para direção tem, para mim, uma tomada de posição. E o “Tatuagem” escrevi com essa intenção. Com a idéia de colocar ali minhas convicções narrativas e minha imensa paixão ao cinema brasileiro. Uma prestação de contas comigo mesmo e usado o público como cúmplice.
Vendo “Tatuagem” me pareceu um filme por tantos motivos distante e próximo ao mesmo tempo de seus outros trabalhos. Próximo, por exemplo, de certo gosto iconoclasta do Claudio Assis, por exemplo. E ao mesmo tempo bem diferente, talvez mais próximo do último Pasolini… Ao mesmo tempo, tive a impressão de uma estrutura bem livre, bem pouco roteirizada, no sentido de uma organização prévia estrita. Não estou certo do que digo, por isso pergunto como você vê seu novo trabalho, deste ponto de vista…
A liberdade que tenho nos trabalhos com Cláudio Assis, que costumo usar como referência, pois temos uma produção mais contínua – pelo menos uma trilogia palpável – permeia algumas de minhas investigações com relação ao cinema e suas possibilidades. Mas claro que Claudio é uma personalidade muito específica, tem um furor imensamente criativo e iconoclasta. Ele é sua principal marca. E diante disso a paixão de trabalhar com ele passa por essa troca, por esse respeito de um libertar o outro em relação as suas funções. Mas mesmo aí tenho uma afeição muito grande pelo roteiro. Sei que está bem em voga a busca pela libertação das amarras da escrita, da criação no momento etc. e tal. Mas não consigo escrever levando isso em consideração. Não acho que o roteiro cinematográfico seja uma receita de bolo. Perco muita energia e atenção construindo detalhes, imaginando passagens, detalhando ambientes, dando formas a personagens… Não que isso seja uma fórmula, ou que deva ser cumprida por quem dirige. Provavelmente é um defeito de quem, quando jovem, gostaria de fazer cinema, mas não tinha instrumentos.
Tudo isso é para dizer que a estrutura na qual trabalhamos não foi “bem livre”, mas foi trabalhada para que o filme exalasse essa liberdade. Claro, estávamos mexendo com elementos que nos permitiam interferências muito interessantes. O próprio teatro anárquico, a utilização do público nas apresentações do Chão de Estrelas (este não sabia os números que veriam durante as filmagens; queríamos surpreender nosso elenco de apoio). Além de experimentar uma vivência entre o elenco – principalmente do grupo de teatro – que nos emprestasse uma intimidade maior que o tempo que tínhamos para prepará-los. E ali tínhamos atores, bailarinos, fotógrafos… E o grupo tinha participação ativa na construção do espaço, na execução dos figurinos e fantasias. E o grupo, durante as semanas de preparação, montou os textos teatrais que estavam no roteiro. E isso foi um dado importante: trazer os atores pelo teatro, mas colocá-los numa dimensão cinematográfica.
E os atores trouxeram uma carga de participação muito impactante. Claro que várias passagens vieram da liberdade desses atores durante as filmagens, as gags, as brincadeiras… Não existia uma prisão, obviamente. Mas uma intenção muito clara de não perder de vista o que me interessava.
Como foi o trabalho com Irandhir? Foi a primeira vez, acho, que o vi fazendo travesti, e achei extraordinário. O momento em que ele canta é de uma força muito grande…
Irandhir Santos é um ator com quem mantenho uma afinidade muito grande. Gosto muito de sua conduta, de sua entrega, de sua generosidade. Um animal cinematográfico bem robusto. E o tipo de ator que você conta como parceiro. Como parte dessa cumplicidade que já falei anteriormente.
Quando escrevia o roteiro já imaginava Irandhir como o personagem Clécio. Ele só veio a saber disso quando o convidei para o papel. A partir daí estreitamos nossa amizade, nossas conversas, nossas intenções. Ele foi uma peça bastante importante na preparação do filme. E peça fundamental, junto com Amanda Gabriel – que nos ajudou na preparação do elenco – a excitar o resto do elenco em busca de uma tomada de posição sobre o que fazíamos. Ele provocava a ação do gesto na construção desse corpo político. Apesar de se passar no fim dos anos setenta, tinha uma discussão sobre pós-gênero que ele entendeu muito rapidamente. Parte importante de nosso projeto da corrupção do olhar.
Ainda a propósito desses momentos: o musical está bem presente em “Tatuagem”, não? Mas não como instituição familiar. É uma espécie de musical a serviço da subversão, ou de subversão do musical, talvez… Ou ambos?
Desde o início do “Tatuagem”, quando ele ganhou uma forma em torno de um grupo de teatro, o musical estava rondando nosso projeto. Claro que um musical subvertido, repensado como processo narrativo, mas que essa junção não tivesse uma leitura fácil. E que bebesse em alguns filmes brasileiros que tocassem nessa questão. E aí é bom lembrar, de maneira muito pessoal, como foram importantes o “Sem Essa Aranha” (Sganzerla) e “A Lira do Delírio”* (Walter Lima) na busca dessa atmosfera. E assim, subvertendo um gênero o colocamos a serviço da subversão.
DJ Dolores, parceiro de longa data, foi acionada para dar musicalidade às idéias que estavam no roteiro. A maior parte da trilha teve que ser composta para ser interpretada nas filmagens. E todas foram gravadas ao vivo, no set. A única dublagem que temos é a da música Álcool, interpretada por uma transformista (Diego Salvador, integrante da trupe).
* apesar de Mair Tavares ter montado meus dois curtas e o “Cartola”, não é a toa que ele também assina a montagem do “Tatuagem”.
Existe, ainda desse lado da subversão, alguns momentos bem fortes, em que chocar parece ser o objetivo final, como no número final, o das bundas, ou no da transa entre dois homens. Parece que o filme, nesses momentos, visa de maneira explícita tirar o espectador de sua letargia de espectador, de seu conforto. É mais ou menos isso?
O que pode ser chocante para alguns talvez não esteja em meu rol de preocupações. Mas tenho a dimensão daquilo que demove um olhar mais conservador. E não pela violência. Acredito que nos dois casos que você cita, o da Polka do Cu e as cenas de sexo entre Jesuíta Barbosa e Irandhir Santos – com certo grau de ingenuidade no número musical e de afetividade nas cenas de sexo – existe o propósito de provocar o espectador a sair da letargia e do conforto. Podemos lançar mão de várias artimanhas para atingir um alvo, um interesse. E em cinema sempre me pareceu interessante como podemos nos constranger pelo outro. Como temos vontade de fechar os olhos para não sermos atingidos por determinada imagem. Mas aí duas conflituosas forças entram em cena. Uma mais reativa, que é a moral quando colocada em cheque. A outra mais provocadora, que é nossa ética, quando colocada à prova. A tentativa do campo de batalha.
“Tatuagem” foi realizado com uma intenção bastante política no sentido de provocar, de estabelecer discussão que não esteja na superfície do que você vê.