Blog do Inácio Araújo

Arquivo : December 2011

Outra corrida no Táxi Driver
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Inácio Araújo

por Juliano Tosi

“O importante é rever”, costuma dizer Julio Bressane. Revisitar um filme é estar livre para ver o que importa: menos o desenvolvimento da intriga, a narrativa (o que acontece), e mais o fluxo de imagens (como acontece). E aí está “Táxi Driver” – revisto em tela grande e numa cópia nova em folha – para fazer relembrar esta verdade: os grandes filmes são feitos para serem revistos.

Por exemplo: como são fantásticas as imagens de Travis (De Niro) em seu táxi, circulando por uma Nova York fétida e decadente. Está tudo lá – as luzes da cidade (predominando um vermelho infernal), a sujeira, as prostitutas, os poeiras e os inferninhos, a fumaça que exala dos bueiros – em travellings descritivos, a câmera fixada no carro, observando o mundo ao redor com os olhos de De Niro.

Para o meu gosto, o filme bem poderia ser todo assim (algo parecido com o “Dez” do Kiariostami, todo filmado dentro de um carro). A cidade e o táxi que corta as ruas. Os passageiros eventuais e o motorista. Já haveria mais do que o suficiente para satisfazer os olhos.

E aqui entra um notável senso de observação típico do melhor cinema americano. Isso não é fácil de alcançar, claro: requer rigor, mas talvez sobretudo repertório, um público que saiba ver algo além de novelas, um modelo de produção que possa premiar (mesmo que minimamente) o talento (e não seja refém de gerentes de marketing), etc.

Pois “Táxi Driver”, de certo modo, é um filme que poderia facilmente passar-se em São Paulo. Penso num taxista admirador (não apenas eleitor) do Maluf e que circularia pelo bas-fonds da cidade a praguejar contra o governo e tudo mais – quem nunca viu um personagem como este?

*

Mas, é claro, o filme mostra muito mais – não há estúdio americano que produzisse um filme assim. Então há Cybill Sheperd, como que saída de um sonho: um “anjo de branco”, como diz Travis. Seu ideal de pureza encarnado em belos olhos azuis. A salvação, enfim, de sua Sodoma e Gomorra pessoal.

Mas eles pertencem a mundos diferentes, para não dizer antagônicos. Só um atrevimento para fazer possível o encontro entre os dois. Mas o mal-entendido é evidente. Ela, além de linda, é razoavelmente tolerante, liberal e culta. Ele, um bronco que desconhece Kris Kristofferson, e que a leva para assistir um pornô-educativo sueco: “É um bom filme, muitos casais vêm assistir!”.

É uma das últimas frases que ele irá lhe dizer, claro. Ou antes, há um reencontro, no belo epílogo, quando tudo se inverte. Agora, ela o admira, o “vigilante” noticiado pelos jornais, mas ele já está curado de sua busca doente. Seus olhos tristes são os de um homem conformado.

*

Pois Travis Bickle, com 20 e tantos anos, já passou pelo que há de pior.

Desde o início, ele é um homem cansado, cansado demais para conseguir dormir. Depois de experimentar a guerra do Vietnã (é dito rapidamente apenas que ele foi marine, mas gosto de pensar que passou pela guerra), resta-lhe viver num mundo talvez ainda mais hostil.

Ele precisa, portanto, de algo novo: a tentação do mal é evidente. E aí surgem os espelhos: a famosa cena em que De Niro, possuído, olha para seu reflexo e, repetidamente diz “You talkin’ to me?” (Você está falando comigo?) antes de sacar o revólver. O mergulho no inferno está engatilhado: o homem dá vida plena a seu duplo maligno.

Não é melhor cena do filme (eu teria pelo menos uma meia dúzia de momentos que me agradam mais). Mas é a mais forte, logo, a imagem pela qual nove em dez pessoas irão se lembrar de “Táxi Driver” (quando eu ainda não tinha idade para ver o filme, já “conhecia” a cena de tanto que meu irmão mais velho já a descrevera).

Em todo caso, a espiral de demência está agora em pleno funcionamento: não basta mais uma chuva bíblica para “limpar toda aquela sujeira”; só o sangue para purificar. Travis Bickle é um profeta degenerado (um pouco como na música do Kris Kristofferson).


Táxi Driver, como deve ser visto
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Inácio Araújo

por Juliano Tosi

Táxi Driver (1976) reestreia esta semana no Cine Olido, em linda cópia em película (ainda não há digital que se iguale a uma bela projeção 35mm). É talvez ainda hoje o melhor filme do Scorsese: uma bela descida ao inferno. A primeira imagem, do táxi passando sobre um bueiro que exala uma fumaça estranha (enxofre?) é das mais formidáveis dos anos 1970. Algo que o resto do filme só irá confirmar: onde termina a busca do belo e começa a pura e simples patologia?

O roteiro, notável, é do Paul Schrader. A trilha sonora é assinada por Bernard Herrmann, o maior dos compositores de cinema. E Robert De Niro é um fenômeno.

O ingresso custa apenas um real. E, ao que parece, a ideia dos programadores é relançar de tempos em tempos outros belos filmes como este, também em película cristalina.

Cinéfilo que se preza, portanto, não pode perder. Sessões às 19h30.


Um belo filme, sim, de Jafar Panahi
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Inácio Araújo

por Juliano Tosi

A certo momento de seu “Isto Não É um Filme”, Jafar Panahi se questiona, com um olhar cabisbaixo e perdido: “Se pudéssemos contar um filme, por que filmá-lo?”.

Lá se passou uma boa meia-hora de seu não-filme. E, de fato, muito pouco que nos foi dado ver parece com o senso comum do que seja cinema. A ação é pouca; a produção inexiste: o não-filme foi todo feito em seu apartamento, e basicamente assistimos a gestos cotidianos (seu café da manhã, a iguana da filha que circula pela casa, etc.) e algumas conversas que só escapam ao trivial por tratarem de algo demasiado grave.

Mas a seriedade do tema (a censura, a arbitrariedade de um governo) é limitada a algo muito mais pessoal (mas não menos político): a prisão de Panahi e a proibição de fazer novos filmes e mesmo conceder entrevistas.

E aqui começa todo o dilema: como fazer cinema sem os meios para isto? Como fazer um filme sem cenários ou grandes equipamentos, sem atores nem técnicos – ou seja, sem tudo aquilo que, resumidamente, chamamos de produção?

Pois um filme é, em grau zero, algo essencialmente material: não apenas uma ideia, mas esta ideia mais sua concretização, sua “fabricação”.

Não por acaso Godard dizia que um filme é, também, um documentário sobre a sua filmagem. Isto é, um filme é uma imagem do mundo, ao mesmo tempo que um reflexo de si mesmo – algo que o próprio Panahi reafirmara no seu mais belo filme, justamente chamado “O Espelho”.

O que fazer, então, quando se está alienado do mundo, alheio ao que se passa ao redor? Contar o próprio filme que se tem imaginado na cabeça?

É o que o próprio Panahi irá fazer em alguns momentos: descrever algumas cenas de um roteiro não filmado (ele não foi autorizado pelo governo iraniano a produzi-lo) sobre uma garota presa em um apartamento, quase sem contato com o mundo exterior. E aqui temos, de fato, alguns momentos mais belos do filme: o cineasta não apenas narrando ações, mas sobretudo descrevendo dados concretos.

Pois sua matéria-prima essencial de trabalho está naquilo que só pode ser mostrado e visto: no espaço físico, por exemplo (na arquitetura do apartamento, na disposição de uma janela, etc.). Naquilo que está nos gestos, no rosto sofrido de uma atriz, num sotaque específico – e que, a princípio, pode parecer pouco significativo. Ou, ainda, naquilo que é, de certa maneira, imponderável (a reação incomum de um ator amador, na cena que nos mostra de “Ouro Carmim”), que foge ao controle do artista-criador. Tudo isto é cinema, e apenas cinema, pois um filme não é simplesmente um roteiro contado ou mesmo ilustrado.

Será o próprio Panahi, portanto, que irá conscientemente desmentir, imagem a imagem, a questão feita: por que filmar? Porque mostrar algo e saber vê-lo é também uma forma de revelação, tanto quanto qualquer outra arte.

“Isto Não É um Filme” é, portanto, um título mais do que apropriado: não uma imagem do mundo (algo que lhe é interditado), mas um objeto que é como uma imagem desta imagem (como o quadro de Magritte é uma imagem do chachimbo). E, no entanto, este é um belo filme – um dos mais belos que se pode ver nos últimos tempos.

Trailer legendado de “Isto Não É um Filme”


Cultura da delação
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Inácio Araújo

Em princípio eu deveria me sentir satisfeito com uma bem documentada notícia do UOL a respeito de agentes da CET, publicada há alguns dias. Eles são flagrados em infrações de trânsito ora elementares, ora dando conta de o quanto podem ser autocomplacentes esses caras mesmos que nos infernizam, inventando multas, fazendo-se de intransigentes etc.

Mas não me sinto de modo algum entusiasmado. Esse é um sintoma a mais da cultura da delação que estamos já não criando, mas aperfeiçoando. Controle e delação!

A gente pode até pensar que coisas tipo facebook nos oferecem uma maneira de resposta aos controles e à opressão cada vez mais evidentes do Estado. Mas não é bem assim que as coisas se passam.

Cada crime denunciado por câmeras de segurança parecem alegrar os apresentadores de telejornais, como se a vigilância permanente fosse uma solução para os problemas do mundo.

E, ninguém duvide, até dá para ferrar com um ou outro agente da CET com esse tipo de estratégia. Mas não vai resolver nada, nem (ou sobretudo) a histórica estupidez da CET .

Da mesma forma, as vozes gravadas das companhias com as quais a gente tenta falar de tempos em tempos (bancos, NET, telefônicas em geral) nos diz cinicamente que “para sua segurança este telefonema está sendo gravado”.

Para minha segurança por quê? De que isso me assegura? De nada. É apenas uma maneira de dizer que, se você perder a calma falando com os atendentes-parede do outro lado, eles podem te ferrar de algum jeito.

O poder (que não é só o Estado) será sempre muito mais forte. Internalizar os mecanismos de controle e eventualmente replicá-los me parece uma forma de aceitá-los carneiristicamente.

Cultura dos faróis

São Paulo implantou uma nova cultura dos faróis de trânsito. Agora, aqui, os pedestres têm preferência, em qualquer circunstância, na travessia das faixas das ruas transversais.

Primeiro problema: num país com maioria de analfabetos funcionais quem é que vai entender o que é uma transversal?

Segundo problema: fizeram uma bela campanha pela TV, aquelas coisas que queimam dinheiro à toa etc. e tal.

No entanto, os faróis de pedestres continuam na luz vermelha nas transversais. Ou seja, não se tomou a providência mais elementar caso se tivesse realmente a intenção de que a coisa funcionasse.

Hoje, o pedestre tenta atravessar a transversal apesar do farol estar vermelho (pois é o seu direito, isso é que foi dito), enquanto o motorista tenta entrar na transversal do mesmo jeito, pois vê o farol vermelho para os pedestres.

Nessa altura os pedestres já estão sabendo, acho, do risco que correm. E os carrões já sacaram que a lei não vai pegar.


O que é “buzz”?
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Inácio Araújo

É preciso ler a crítica de Cássio Starling Carlos (aqui) sobre o mais recente exemplar da saga “Crepúsculo”, na Folha de sábado, 18/11 e depois respirar com alívio pensando que a crítica ainda está viva.

Cássio não dedica ao filme propriamente mais do que cinco ou seis linhas. Mas por que o faria? Trata-se do enésimo exemplar de uma série cujo único efetivo mistério consiste no seu sucesso. O que cabe a um crítico nesse caso? Dizer que a fotografia está boa? Que os atores são bons ou maus? Que os efeitos especiais são adequados?

De certo modo é o que se espera. É o que espera a instituição cinematográfica. Essa corporação silenciosa que reúne os interesses econômicos em torno de filmes e similares.

Há uma outra função eventualmente insignificante. Consiste em procurar o significado do sucesso de sagas como esta. Para onde elas apontam? A volta do amor romântico? Da virgindade? Combate ao racismo? A preconceitos em geral? Etc.

Bem, tudo isso já pode ter sido procurado nos filmes anteriores (e admito que no primeiro existe, ainda, uma curiosa atmosfera na cidadezinha e na relação meio tortuosa de pai e filha; nada que não se desfaça depois). Não faz sentido. Não há sentido nenhum nisso. Como não há nas imagens, nos atores, nada.

Tudo que importa, enfim, é o “buzz”.

E o “buzz” é, pelo que entendi, esse imperdoável aparato publicitário que invade jornais, televisão, internet para criar um clima de expectativa em torno de um determinado evento. De tal modo que havia 300 mil ingressos previamente vendidos, segundo a publicidade (pois não seria uma obra de publicidade manobrar com certos números e operações como a multiplicação?).

Pode-se argumentar que uma parte relevante do “buzz” consiste em escolhê-lo. Por maior e mais competente que seja o esforço publicitário não comoverá os espectadores a ver um documentário sobre a vida dos esquimós, digamos. Mas, à parte esse dado inicial (que remonta ao início da série, à decisão de produzi-la ou não), tudo o mais remete à publicidade.

Pode-se argumentar, igualmente, que a publicidade sempre fez parte do cinema, o que é verdade. Ainda assim, convém lembrar que a publicidade anterior aos anos 1980 era algo, digamos, artesanal. Rodava em torno dos atores, eventualmente de sua vida privada, e depois tratava do filme. Ele tinha existência para além do fenômeno publicitário. A publicidade existia para impulsionar o filme. Hoje estamos no caso inverso, do filme como motivo a impulsionar a publicidade.

Talvez não seja tão diferente em outros ramos (a política, por exemplo, onde alguém “vende” “a imagem” de alguém), mas o nosso caso basta para dar um idéia de como as piores previsões de Orwell & Huxley sobre um mundo absolutamente controlado estão se tornando um fato do dia-a-dia debaixo dos nossos narizes.

Pode-se argumentar ainda que o fenômeno de filmes tolos e de sucesso existe há muito, como prova, por exemplo, “Love Story”. Aceitemos. Mas aí entramos um pouco na analogia entre o amor e o cinema que Cássio faz. De resto, o cinema sempre apelou ao chamado melaço.

Mas isso era sujeito a uma crítica, a uma contra-corrente a nos lembrar que ao lado disso existia outras coisas. No mundo ditatorial em que entramos agora, em que se adora Steve Jobs como um deus (é outra história, mas não tão distante assim) justamente por criar adoidado novos mecanismos de controle, não existe mais essa contra-corrente, ou ela se torna cada vez menos significativa, existe na universidade e arredores (mas, ah, se você puder pegar uns maconheiros no campus, que beleza!, usa-se todo esse aparato para desmoralizar qualquer busca de conhecimento e ficamos só com o “Crepúsculo” e a novela mesmo).

Bem, desculpem o tamanho disso aqui. No fundo era para agradecer ao Cássio por tão bela, tão ousada, tão crítica crítica. E aproveitar para dizer que cresci numa ditadura (só que era aberta, ao menos sabia-se quem eram os inimigos), não tenho a mínima paciência para agüentar o “buzz”, palavra que substitui, enfim, o Big Brother.


Canudos na Rocinha (e Rocinha na USP)
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Inácio Araújo

Devo estar muito enganado, é quase certo, mas cada vez que vejo imagens da guerra ao tráfico no Rio de Janeiro fico com a impressão de estar vendo um “remake” modernizado da Guerra de Canudos.

Com que então os nossos poderosos inimigos são esses esfarrapados com cara de esfomeados, bermuda e havaianas, que aparecem ora se entregando ora fugindo?

Não faz sentido.

Eu queria escutar essas pessoas. Não por julgá-las simples vítimas, não é isso. Traficantes têm que ser presos. Quadrilhas têm que ser desmontadas. Não pode haver dúvida quanto a isso.

Mas essas imagens, recorrentes, me intrigam. Que inimigo é esse?

Será que a mídia o torna maior do que é? Ou será que faltam mesmo alternativas aos pobres e que ser esmagado no cerco da Rocinha ou cotidianamente talvez não faça diferença.

Desta vez, na Rocinha, uma coisa chamou a atenção: a população demonstra que tem medo.

Tem medo da polícia e tem medo dos bandidos.

Ou seja: se é Canudos, está por toda parte. Do lado que está lá, no comando. Do lado que está cá, dos PMs. Já que são esses, a pretexto de diligências, que invadem e roubam as casas dos moradores.

Mas, tudo bem, o importante nisso tudo é manter a ilusão de que existe Brasília, de que lá existe Corrupção, com C maiúsculo, e que no resto da nação tudo vai bem, todos nós somos gente boa.

A propósito:

A PM entra na USP e não sou eu que vou ser contra. Afinal, lá houve assassinatos, estupros e roubos.

Mas a PM não prendeu nenhum assassino, nenhum ladrão, nenhum estuprador. Nem traficante.

A PM prendeu 3 alunos fumando maconha. E para a classe média nacional isso virou o centro do mundo. Eis o que produz a USP (leia-se: o ensino gratuito): maconheiros.

Pronto: invasão de reitoria, expulsão pela PM e tudo mais. Bem, vamos ver o que vai acontecer.

Minha suspeita é que, dentro de pouco tempo, os maconheiros sejam substituídos por traficantes. Devidamente acobertados pela PM, naturalmente. Pela PM subornada, como no Rio, como em SP, em suma: como de costume.


O porvir de uma ilusão
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Inácio Araújo

No mesmo dia em que leio sobre o início da campanha do “Tropa de Elite 2” ao Oscar, o Bope é afastado da operação da polícia do Rio que deu na prisão de um chefe do tráfico.

O Bope era suspeito de vazar a operação. O incorruptível Bope do filme, esse que não faltava quem aplaudisse no cinema quando se espancava alguém.

A primeira coisa que o traficante falou foi que 50% do que lucrava ia para suborno da polícia.

Mais um mito que vai pro beleléu?

Pode ser. O poder de corrupção do tráfico é absurdo, sabe-se.

Mas a questão me parece outra. Quase ao mesmo tempo passou na Mostra “Laranja Mecânica”. E o que me deixa intrigado é: o que leva essa quantidade imensa de brasileiros a acreditar que o mundo visto por José Padilha é mais verdadeiro que o visto por Stanley Kubrick?

O que nos leva a crer que uma solução simples (um batalhão bem treinado, um deputado com boas intenções etc., quer dizer, que o puro voluntarismo), já para não dizer simplória, vá resolver nossos problemas?

Quase ao mesmo tempo, ainda, São Paulo fazia uma megaoperação policial para desalojar alguns estudantes da Reitoria da USP.

A TV fez um fuá em torno disso. Nas cartas dos leitores dos jornais o que não faltou foi gente aplaudindo e com a tal história de dura lex, esses estudantes são privilegiados, e viva a polícia e coisa e tal.

A polícia paulista Ninguém imagina que os traficantes e similares daqui gastem menos de 50% dos seus gastos com suborno de policial. Ou imagina?

E as perdas do patrimônio? Na TV parecia que tinham derrubado a USP inteira.

Muito bem: até onde se sabe, o mesmo reitor da USP envolvido com essa presepada ameaça devolver o prédio do MAC, onde se está fazendo uma reforma colossal, se duas ou três condições envolvendo uma pinimba dele com a Faculdade de Direito não forem atendidas.

Aí ninguém fala de patrimônio? Reformar um prédio de Detran para virar museu, empenhar uma nota nisso e depois devolver o prédio não é ameaça ao patrimônio público?

O que há com a gente?

Bem, posso estar bastante enganado. Mas esse terrível ressentimento que vejo por aqui, aqui em São Paulo sobretudo, me parece resultado de nossa longuíssima ditadura.

Ela não matou tanto como no Uruguai, Chile e Argentina.

Mas a extensão dela é assustadora. Foram, no total, 24 anos. Uma geração.

Tempo para criar uma mentalidade. A crença na lei e na ordem mais cretina, mais limitada. A ilusão de que não havia corrupção (quando o que não havia era liberdade de imprensa). A suposição de que o Congresso só existe para roubar. E por aí.

Na Argentina a coisa foi de uma tal violência, de uma tal sede de sangue que, quando foi finalmente vencida, a ditadura era odiada. É até hoje, aliás.

Talvez por isso eles façam boa literatura e bom cinema e não se iludam com soluções hollywoodianas.

Eles sabem que a vida está mais para “Laranja Mecânica” do que para “Tropa”. Mais para Borges do que para novela de televisão.


O Palhaço – Modo de Usar
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Inácio Araújo

De volta ao mundo dos filmes “normais”, off Mostra.

“O Palhaço” me pareceu um filme digno de toda estima e que merece ser visto. Selton Mello toma a direção porque tem algo a dizer, e não por alguma razão indizível, como fazer bilheteria. Mas ouço dizer que está fazendo, o que é bom, porque não só ele como Paulo José e o elenco estabelecem uma relação forte com o público, que vai simpático ao filme do começo ao fim.

Então digo logo de cara que prefiro mil vezes esse filme cheio de erros, a essas tralhas arrumadinhas, “redondas”, como dizem, mas que a mim soam apenas balofas, que passam por mil revisões até se tornarem devidamente anódinas, insignificantes, lamentáveis produtos de cálculo que parecem televisão, mas é coisa bem pior, porque não tem a despretensão, esse tipo de espontaneidade que nasce do descompromisso, da pressa até.

Dito isso, o papel mais sacrificado do filme é do próprio Selton Mello, o palhaço Pangaré, o renitente. Aquele que carrega o fardo de uma herança, a de seu pai, aquele que não quer ser palhaço ou carregar em seus ombros a administração dos negócios.

O personagem ficaria mais rico e serviria mais ao filme, me parece, se tivesse desenvolvido mais matizes. Ele é depressivo todo o tempo que não está em cena, e isso não ajuda muito as coisas, porque desbalanceia o filme e força o humor a vir todos das vinhetas com os convidados especiais. “Mulheres e Luzes”, o filme que este mais me faz lembrar, tem esse tipo de equilíbrio que, penso, “O Palhaço” ganharia um tanto ao imitar: uma melancolia profunda que emerge junto com o humor.

Não que fosse o caso de imitar todo o filme de Fellini. As melhores cenas do filme de SM são as de estrada, com um sentimento muito forte da paisagem, da errância suposta nos deslocamentos da trupe.

Há um leitmotiv interessante, que é o do ventilador, solicitado por uma moça logo no começo. Aquilo fica na cabeça de Pangaré como um peso insuportável. Mas ninguém mais dá a impressão de precisar tanto do ventilador, de sentir tanto calor.

Se isso configura uma bela homenagem aos atores, aos comediantes sobretudo, como me parece ser o filme inteiro, por outro lado o quebra um pouco. A digressão às vezes se torna dispersão (o exemplo mais claro para mim é o plano de um dos rapazes da trupe diante de um quadro, em que uns chifres adornam sua cabeça; fica meio despropositado), embora alguns desses atores se saiam muito bem (Moacyr Franco e Jorge Loredo sobretudo) .

O terço final me parece o mais bem resolvido em termos de evolução do personagem. Ele se move, e com ele o filme.

Agora, com toda franqueza, não entendi o final com a menininha. Parece que alguma coisa deixou de ser filmada, por falta de tempo ou porque ela não deu conta do papel, não sei. O certo é que sua entrada em cena, a horas tantas, desperta nos demais personagens uma comoção que não ecoa nada que tenha acontecido anteriormente, a menos que eu não tenha notado.

É bom que este filme não passe em branco, porque está aí, junto com Eduardo Valente e uns poucos mais, com filmes decentes na região Rio-São Paulo, tão tomada por filmes que não têm nada a dizer e não querem ter nada a dizer.


O fantasma do cinema brasileiro
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Inácio Araújo

(ou: Contra o establishment ou: O Homem que Não Dormia)

“O Homem que Não Dormia” é o tipo do filme que o establishment cinematográfico gostaria de ver longe das telas.

No mais, acredito que conseguirá; a barragem hoje é muito forte contra tudo que não seja “agradável”.

E, no entanto, como diz o próprio Edgard Navarro, autor do filme, há muitas coisas desagradáveis no mundo “a começar por mim”.

Há alguma coisa desagradável em “O Homem que Não Dormia”, mas não muita, essa é a verdade. O que Navarro fez é um filme da Bahia por excelência, que já começa com um contador narrando histórias fantásticas de lobisomem e mula sem cabeça para uma platéia encantada com aquilo.

Não há distância entre narração e fato.s O narrador diz o que aconteceu e todo mundo acredita.

O que se segue é uma série de aparições de seres misteriosos, de deuses e semideuses, demônios e outros seres malvados, de cartomantes com previsões, procissões, cornos, fofoqueiros, coronéis ameaçadores, o fabuloso homem condenado a viver eternamente, de maneira errante e sem dormir. Aqui o sono se confunde com a vigília, assim como o passado com o presente, os santos com os demônios e o sonhado com o mundo real.

Não há separação entre o mundo de semideuses e figuras fantásticas e o cotidiano da uma cidadezinha: o fantástico está entre os homens e é vivido como realidade, sem diferenciação.

E mais uma vez fica a impressão de que o velho “cinema marginal” dos anos 70 ressurge hoje como fantasma do “Brasil novo”. Naquele momento era rebarbativo, não raro agressivo, porque queria tratar de uma situação em que o feio, o desagradável, o não-dito eram solidamente reprimidos.

Hoje o mundo é outro .

O cinema oficial está aí, feliz, cheio de espetáculos. É importante desafinar o coro dos contentes, o que o filme de Navarro faz não sem desenvoltura.

E às vezes desenvoltura demais, concordo. Esse hábito de investir em imagens escatológicas (desta vez delicadas para seus padrões: não falta gente urinando) parece uma marca pessoal que o diretor acredita caracterizar seus filmes. Eu não acho que seja bem assim.

As idéias acabam alguns minutos antes do filme, e a necessidade de dar fecho às várias histórias já chega num estado de esgotamento. Da mesma forma, me parece meio pueril a solução final (embora plasticamente interessante), referente ao padre: o que até ali vinha sendo levado com ambigüidade e equilíbrio parece de consolidar em um anticlericalismo (ou anticatolicismo, no caso dá no mesmo) que limitam o conteúdo gostosamente fantástico da maior parte do filme.

Mas isso é bem pouco para invalidar um esforço inteligente e mais que talentoso.
Como eu disse: isso não vai para o cinema assim tão fácil, não.

Mas aqui, nesse canto minoritário, também meio marginal, vai existindo, sim.


Argentina arrasa outra vez
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Inácio Araújo

Não se pode dizer que é uma surpresa:“Las Acacias” é argentino e tinha ganho o Câmera d’Or de Cannes para o melhor primeiro filme, um prêmio que costuma dizer alguma coisa.

Mas é surpreendente ver que o filme não tem exatamente nada a ver com outros filmes do país e se impõe com uma segurança que não se espera de um primeiro filme.

Não sei se lá eles são amigos, inimigos, o quê: mas eles têm uma segurança que vem de um modo de conceber o cinema.

O autor deste filme não tem medo de encerrar a carreira por falta de público.

Nem tem que mendigar (não tanto quanto os nossos cineastas) para fazer um filme sobre a viagem de um caminhoneiro e uma moça paraguaia entre a fronteira do Paraguai e Buenos Aires.

Um filme onde nada acontece. Nada dessas coisas que a gente espera que aconteça em filmes, pelo menos.

Mas outras acontecem: uma corrente sutil que passa entre esses dois seres solitários, silenciosos, marcados de maneiras diferentes pelo mundo.

Um filme belíssimo porque sabe captar seus personagens e as coisas com que se relacionam.

Tem força, tem alma.

O pessoal daqui, não é uma questão de talento, pelo menos nem sempre, mas o establishment quer é produzir blockbusters caipiras. Não ajuda a ninguém.

E não leva a nada.