Blog do Inácio Araújo

Em busca do cinema marginal
Comentários Comente

Inácio Araújo

(Essas notas jogadas às pressas, quase com urgência, são idéias muito provisórias, talvez confusas, certamente incompletas – e nem duvido que um tanto primitivas, ainda em busca de apoio para o que talvez seja a idéia central. Ficam aí, em todo caso, esperando que eu um dia as organize, as aperfeiçoe, ou de que algum amigo o faça).

Cinema marginal, tal como praticado na virada dos anos 60/70 do século passado, não foi um cinema pobre, nem feito por marginais, nem amadorístico, nem anticomercial, nem underground ou ainda menos udigrudi.

Mesmo denominações como experimental (Julio Bressane) ou de invenção (Jairo Ferreira) não me parecem dar conta do que aconteceu naquele momento.

Uma parcela dos filmes marginais podem ser filmes de sucesso, na medida em que não desprezaram o aspecto popular do cinema. Pensemos no terror de José Mojica Marins, nos primeiros Sganzerla, em “O Pornógrafo”, de João Callegaro, até em “A Margem”, de Candeias, ou mesmo no posterior “Liliam M”, de Carlos Reichenbach.

Mesmo “O Anjo Nasceu”, um policial, tinha todas as condições para aspirar a uma distribuição razoável e a um público idem.

Uma parcela dos filmes marginais pautou-se pela obscuridade e ela foi, de certa forma, crescente: “Bang Bang”, de Andrea Tonacci, ou toda a série da Belair existem sob esse signo. Que isso seja efeito da censura, da não distribuição, do momento político – tudo isso pode fazer sentido, mas não é, me parece, o que mais importa.

Tanto os filmes mais populares como os mais resistentes à assimilação pelo público caracterizam-se, no entanto, por se mostrarem refratários ao poder.

2.

O cinema marginal pode ser oswaldiano ou tropicalista, às vezes ou sempre, não importa.

Seu embate se dá ao nível da imagem.

Imagem serviçal do poder desde pelo menos a Primeira Guerra.

Imagem associada ao poder nazista ou russo, americano ou cubano.

Imagem de venda: publicitária. Propaganda.

E refratária, claro, ao poder que se instala no Brasil, militar.

É um cinema que não faz o jogo do poder.

E daí seu desentendimento com o cinema novo. Oposição, guerrilheiro, revolucionário, como pôde ser visto em seus primeiros anos. Ou domesticado, comercial, voltado ao mercado, como pôde ser visto a seguir (justamente nos anos em que o cinema marginal se desenvolve em oposição a ele).

Mas, sempre, um cinema de imagens do poder.

3.

Se nos pusermos a rever esses filmes, ao menos uma parte deles, vamos nos dar conta de que alguns afirmam fortemente a idéia de autoria, ao passo que outros a rejeitam. O próprio “Bang Bang” aspira quase ao anonimato.

Se expressam os impasses políticos do Brasil, e o fazem por vezes de maneira desesperada, como um grito, talvez expressem com mais clareza ainda um esgotamento do projeto moderno no cinema.

Como se a imagem moderna, como se a aspiração ao real que o marcou, como se também o caráter abstrato dos filmes, sua pretensão a criar imagens que fossem ao mesmo tempo idéias se tivesse esgotado.

Daí o marginal ser um cinema voltado à cultura e à linguagem.

É como se as idéias tivessem perdido eficácia. Impunha-se refazer o trajeto. Indagar-se sobre o cinema. Daí o caráter vasto, sempre provisório do marginal, onde um filme não parece ter nada com o outro.

Indagar como forma de não aderir ao poder. De não ceder ao brilho da imagem publicitária. O cinema resiste ao rádio, à imprensa, a uma certa construção de imagens, como no “Bandido”: aquele mixaria é o inimigo público número 1 por causa de alguns assaltos. Mas trata-se de esconder os crimes verdadeiros, os inimigos públicos de fato. E quem os esconde? A linguagem. Tudo se joga na linguagem. E o marginal retira-se do jogo do poder para se colocar no jogo da linguagem. Da busca. Com acuidade maior ou menor, pouco importa, varia de caso de caso.

O marginal se faz fora do jogo das imagens de poder.

Não anuncia nada. É a antipublicidade.


A caminho do Cinema Ritrovato
Comentários Comente

Inácio Araújo

Um dia em Lisboa

Para começar, uma parada rápida.

Ha algo de estranho em sair de São Paulo para a Europa.

Tudo aqui está atrapalhado, e no entanto existe um ar de civilização inequívoco.

Paira uma tranquilidade no ar que convive com certa segurança da própria civilização.

As pessoas não se matam correndo, batendo nos outros, essas coisas.

Mas dizer que as coisas vão bem…. Não vão, isso é evidente.

Está na cara. Esta nos pedintes, que me lembram que não os tenho encontrado no Brasil com a mesma intensidade. Esta nos músicos diante das pastelarias…

Na Cinemateca

E na régia, notável Cinemateca Portuguesa encontro o gentil Antonio Rodrigues, que me fala das dificuldades da instituição nesta época de corte de gastos.

A cultura é sempre quem paga o pato primeiro, nos cortes de orçamento.

E o cinema antes de todos. O cinema parece que não produz um filme ha um ano.

A Cinemateca está na tanga.

E no entanto, em sua sede, que fica na rua do hotel Ibis Liberdade, na parada Liberdade da av. da República (parada de ônibus, estou certo, de metrô não sei), bem, lá há duas belas salas de cinema que funcionam todo o tempo.

Assim como a biblioteca e a sublime livraria, com os catálogos notáveis que produzem e vendem a preço de custo.

Para nos o problema maior é o peso na hora de levar as malas… Porque vale o investimento nos livros.

Para fechar, um café agradabilíssimo, no segundo andar, onde fica também uma pequena sala de exposições.

Não fica no mesmo lugar o acervo e o laboratório, onde a Luiza, especialista em cores e filha do Zetas Malzoni, que está aqui em Bolonha, lembra que fez um estagio extraordinário pela Cinemateca Brasileira.

Por falar nisso: acho que a nossa Cinemateca cuida bem desses aspectos técnicos. O que nunca compreenderei é seu autismo. Voltarei a isso, que me parece importante.

2. Em Bolonha

Em relação ao ano passado, Bolonha tem uma diversidade que me parece até excessiva de temas.

Chegarei aos filmes.

Mas o retorno à cinefilia é um deles, e não dos menores.

Varias mesas as respeito, uma delas quase um quebra-pau, mas muito informativa, entre Jean Douchet (Cahiers du Cinéma) e Michel Ciment (Positif).

Entre outras sumidades que estiveram nessas mesas, como Jonathan Rosenbaum e Kevin Bronlow.

Bem, a idéia de Gian Luca Farinelli, o diretor geral do festival, é que hoje existe uma nova geração de cinéfilos. E, com efeito, a olho nu, percebe-se uma presença forte de uma garotada interessadíssima nos filmes, desde os de 1912 aos restauros mais recentes.

É em grande parte um trabalho deste festival e desta Cineteca de Bolonha.

Aí entra minha questão: essa nova cinefilia não sai do cinema, nem da TV, mas da internet. Dos filmes baixados e vistos… Bolonha é um ponto de encontro, como certamente será a Cinemateca Francesa.

A questão é: como fazer essas pessoas, eruditas (ao menos em cinema), espantosamente por vezes, se aproximarem, se conhecerem, desenvolverem idéias comuns e diferenças, discussões, em suma.

Apresentar filmes já não basta. O trabalho universitário é importante, mas nunca será suficiente. O CCBB faz um trabalho extraordinário, mas numa sala ínfima, onde não dá para marcar um encontro, porque é impossível saber se vai haver lugar…

Enfim, as pessoas se encontram, nas revistas, na Mostra, onde dá. Ou seja, o trabalho de uma Cinemateca hoje é muito mais complicado (não a burocracia; essa se tira de letra).

Preservar é importante. Mas preservar para quê? Para que as pessoas possam ver e pensar a partir disso, não é?

Difundir é essencial. O cinema é minoritário, tudo bem. Mas, como bem lembrou Michel Ciment, certa vez Stalin perguntou ''E quantas divisões tem o Papa?'', para se referir à força bélica do Vaticano.

Bem, o Papa não tem divisão alguma, mas está aí. Stalin, com todas as suas divisões, blindados e bombas A, já era.

O cinema tem função, não pode ficar nas mãos dos comerciantes, das Globos e das majors, e das pipocas…

As cinematecas tem um papel nessa história…

(Lembro que esse foi o meu tema único nos anos em que, a convite do fabuloso Thomas Farkas, participei do Conselho da Cinemateca. O assunto nunca foi visto como urgente. Talvez não fosse. Mas cada vez mais se torna. Eu, com toda franqueza, preferia que no Conselho se fizesse um pouco menos de orações a Paulo Emilio e se tentasse imitá-lo um pouco, a ele, que foi fundamental na difusão do cinema como modo de conhecimento. Desculpem o parênteses, mas, caramba, estar lá no sábado aas 9 da matina para ver que pouco se caminhava naquilo que mais me interessava… era duro).

3. Uma sessão para não esquecer: Viagem à Itália restaurado

Restaurado em digital. Restaurado até demais. Falta aquela incerteza, aquela imprecisãozinha do grão. Isso o digital não tem. E inteiro, uniforme, até duro, límpido demais, claro demais…

Mas que importa? Ai está ele. Impecável. Difícil entender como esse filme possa ter fracassado inteiramente.

Ali o casal Ingrid Bergman e George Sanders, em crise, vai a Napoli cuidar de negócios.
A crise se agrava, o tédio é total. Sanders detesta museus. Vai a Capri tentando se divertir. Mulheres, claro. Não pega tchongas.

Ingrid fica em Napoli e só a levam a ver mortos: catacumbas, túmulos, Pompéia.

Morte e crianças. Criança para ela é meio igual à morte, porque ela não tem filhos…

E assim vai. Até que veremos uma magnífica procissão, em que os dois se perdem, tal a multidão, tal a força da multidão e de sua fé.

É então que veremos um milagre…

Bem, Rossellini era católico. Esperavam o que?

No fim a platéia chorava. Impossível não se comover diante da beleza do filme. Impossível.

Mas, para além da beleza, como sempre é Jean Douchet que vem em nosso socorro, explicar Rossellini.

E porque não era aceito, nem compreendido: porque o cinema trabalha a ação em função de um futuro… Daquilo que virá… Do objetivo, como diria um roteirista.

Enquanto Rossellini filma o presente. Não pensa no que virá depois. No resultado da ação de cada personagem. O ato é um ato, fim.

A pensar: por contemporâneo que seja, isso não tem muito a ver com o presentismo detectado por François Hartog. Para Rossellini existe uma utopia. Ela se chama, eventualmente, Jesus Nazareno.


Como Fazer um Filme de Amor
Comentários Comente

Inácio Araújo

Ou como falar de amor sem ser uma coisa totalmente tola e fora do mundo.

É mais ou menos o que propõe “A Febre do Rato”.

Pois ali existe um poeta e sua poesia. Ele vive, anárquico, numa Recife pobre e vital.

Há bons versos e, sobretudo, bons diálogos.

Aspira-se à liberdade com libertinagem.

Publica-se um jornalzinho de mimeógrafo para quase ninguém, mas que importa?

Tudo isso, o poeta trocará por uma renitente musa.

Sua alegria, seu espírito, suas palavras, sua rudeza e doçura deixam praticamente de ser compartilhadas com os amigos.

Tudo é para ela.

Mas ela mantém-se renitente.

Talvez porque as musas devam ser enigmáticas. Ou porque esse seja o destino do nosso poeta.

Não importa: eis aí um belo filme de amor, esse de Claudio Assis (como o francês “Um Verão Escaldante”, diga-se), em que não é preciso ser alienado ou bobo para ser de amor.

Só uma coisa: essa imagem em branco-e-preto, esse maneirismo hanekiano, essa péssima herança que vai nos deixando “A Fita Branca” e a Palma de Ouro que lhe deram, isso atrapalha, sim. Primeiro porque não deixa ver direito, de tanto que uma coisa se interpõe entre nosso olhar e a cidade, e o cenário, e os personagens. Segundo, porque esse toque esteta não combina com o agreste (e nos filmes anteriores de Assis, também com fotografia de Walter Carvalho, tudo andava junto).


O silêncio do cinema por Carlos Reichenbach
Comentários Comente

Inácio Araújo

Desculpe, Sara,

Você pede que eu escreva alguma coisa.

Mas houve quem escrevesse lindamente sobre nosso querido amigo: o Daniel Caetano, o Valente, o Barcinski publicou um belo artigo também…

Eu não…

Não sei o que dizer.

Não sei dizer nada que resuma tudo o que vivi, aprendi, ri, partilhei com ele.

Eu lamento por mim, por você, pelo Eder, pelos tantos amigos.

Lamento pelo cinema, porque Carlão era o cinema, mais que um cineasta.

E muito mais pela Lygia, pelos meninos, pela Nora.

E pelo jovem Vebis, que ontem parecia que tinha sido abandonado…

Agora é essa outra hora. Um homem, só se conhece o sentido de sua vida depois que morre.

Carlão é muito querido, porque era absurdamente generoso, absurdamente gentil, mas, desculpem, não sei se foi bem conhecido.

Em torno do seu cinema havia certa condescendência. Como se aceitassem os filmes por causa da pessoa. Eu posso entender. Seu cinema parecia fácil, simples. Mas era a decantação de seu enorme conhecimento, de cinema, de música também, de literatura também.

Agora será preciso conhecê-lo. Ele conhecia o grande segredo. Ah, eu vi tontos dizendo que botar o Cauã Reymond no “Falsa Loura” era comercialismo… Ah, esses não sabem nem o começo da história. O que eu vou falar aqui? Responder? Nada.

Sim, Carlão sofreu porque seu cinema não foi, afinal, compreendido. Mas isso faz parte.

Azar de quem não entendeu. Azar de quem “não soube apreciar”, como diria o Jairo.

E como vamos ficar agora?

Quem vai descobrir os filmes mais improváveis para mostrar na Sessão do Comodoro ou para me dar de presente?

Quem vai pensar o cinema, recusar os brilharecos, xingar o cinema de roteirista, chamar o pessoal às falas?

Fim.

Chega de me intrometer no recolhimento de que, agora, todos precisamos.

Luto. Luto. Luto.

Luto e silêncio, querida Sara.

Carlão durante as filmagens de ''Amor, Palavra Prostituta'' (1981)

CPI: o espetáculo
Comentários Comente

Inácio Araújo

Não, desde que a TV se tornou onipresente, não há CPI que investigue qualquer coisa.

A CPI é um espetáculo.

Nas perguntas, nas respostas, nos silêncios de alguns inquiridos, na atitude de inquisidores impolutos de outros.

Mas quem pode acreditar nesses canastrões?

Pois a atual CPI não foi desencadeada por um desses grandes inquisidores?

.999

Quem tem uma explicação razoável para a gasolina ser vendida por preços com divisão em milésimos (milévos?), quando a divisão da moeda é centesimal (por centavos)?

Não consigo explicar.

Direita, a ver

Houve um tempo em que todo mundo se reclamava de esquerda.

O cinema novo, claro.

O cinema marginal, ou tropicalista, claro.

E o Biáfora dizia que a verdadeira esquerda eram ele e o Khouri.

Não quer dizer que isso não faz sentido: havia os mais nacionalistas, os internacionalistas, os oswaldianos, os marioandradinos, os candidistas e os concretistas. Visões diferentes discutem e discutiram o cinema, a arte, a política. Mas nunca se falou de direitismo. Se isso começar a existir defenderá, francamente, o quê? O coronelismo? Tem que inventar alguma coisa se quiser dizer alguma coisa.

 


Mistérios de Ozu a Kiarostami
Comentários Comente

Inácio Araújo

Ozu é um mistério, e dele acredito que o único a ter dado conta realmente é Kiju Yoshida em seu livro “O Anti-Cinema de Yasujiro Ozu”.

Entre outras coisas, ali ele postula que Ozu rompe a tradicional identificação entre público e personagem devido ao uso da câmera baixa, que ergue o queixo dos atores e impede que a direção dos olhares seja fixa, direta. Os olhares passam a fazer parte de um sistema de flutuação, de imprecisão, que não permite que nos vinculemos aos personagens.

Mas o que então nos liga ao filme?

Penso que pode ser a tremenda capacidade de observar os fatos do cotidiano, de maneira que nos identificamos aos acontecimentos, aderimos a eles, sentimos sua verdade. Por exemplo, a dificuldade dos namorados de falarem a verdade (ou seja, que se amam) em “Bom Dia” é algo de que qualquer um partilha porque já passou por acontecimento semelhante. Ou quem é o filho que nunca sentiu vergonha do pai sem razão? Isso é o que se vê em “Viagem a Tóquio”.

Não é preciso que tenhamos experiência dessas situações, basta que saibamos de sua existência, claro. Talvez não sejamos como o médico que esconde da mãe que vem de longe visitá-lo o fato de não ser o homem de sucesso que ela imaginava (aí é o filho que tem vergonha de si mesmo). Talvez nem tenhamos conhecimento de alguém nessa situação. Não é necessário. O fato de ela ser possível nos vincula a ela e ao filme, embora não haja necessidade de nos sentirmos engajados no destino do médico.

Ozu é um inovador do cinema como poucos.

Há dias vi em um documentário Kiarostami dizer que havia visto seus filmes nos anos 1970 e gostado.

Mas só muito tempo depois percebeu o quanto eles o haviam influenciado.

Abbas mente muito nas entrevistas (no que faz bem, um dia falarei sobre isso). Despista. Mas esse era um documentário, acredito que tenha sido verdadeiro.

De certa forma, o sistema revolucionário que produziu com seus filmes tem em Ozu um elo forte.


Xingu, o Brasil e seu Outro
Comentários Comente

Inácio Araújo

Não sei se estou de acordo com Fernando Meirelles, quando diz que o público brasileiro não gosta de índio, e por isso “Xingu” não foi nenhum estouro de bilheteria.

Talvez o problema maior esteja em imaginar que todo filme precisa ter 2 ou 3 milhões de espectadores para dar certo.

Estamos mais preocupados com o espetáculo do cinema do que com o cinema. Mais com os festivais do que com os filmes.

Aliás, não me parece que a questão sejam os índios.

Talvez se tenha cultivado nos últimos anos um público que aprecia “Cilada.com”. E esse público com toda certeza terá dificuldade para ver “Xingu” ou qualquer outro filme que não seja irremediavelmente cretino.

Os 400 mil de “Xingu”, ao contrário, me parecem animadores: eis aí um filme narrativo, acessível, mas com sentido de dignidade do cinema, que busca elevar o seu espectador, mostrar alguma coisa que, afinal, é uma velha questão brasileira: a Marcha para o Oeste.

Isso é: o Brasil e seu outro. Esse que os Villas-Bôas buscam compreender, mas que, sabem, permanecem um outro irredutível à nossa cultura branca.

Mas esse outro também é tudo o que nossa sociedade de castas torna invisível, inatingível: o pobre, em grande medida, mas o próprio Brasil

DVD e  Tv  cabo

A temporada cinematográfica não está lá muito animada, mas a de DVDs está me enlouquecendo.

Outro dia, a Versátil lançou “Os Deuses Malditos”, um Visconti belíssimo, onde a indústria de armas na Alemanha, Segunda Guerra, produz armas, claro, mas produz antes de tudo o inferno de seus deuses.

Não fica atrás, porém, o belo, delicado “O Mensageiro”, de Joseph Losey, da Lume.

Só que agora a Lume me sai com um pacote que pelo amor de Deus. Lá estão “O Último Magnata”, de Elia Kazan, “O Homem dos Olhos Frios”, Anthony Mann, “Nathalie Granger”, de Marguerite Duras. Quer dizer, um pouco mais fraco mesmo só o no entanto bem simpático “Quando É Preciso Ser Homem”, de Ralph Nelson.

Estava nisso, nessa em que a gente nem consegue falar de cada filme e entrega ao gosto de quem ler essa notícia buscar o seu preferido, quando aparece aqui um pacote do Telecine com 15 filmes de Marilyn.

Ok, acho que quase todos estão aí em circulação. Mas é de supor que esses filmes estarão agora na TV paga, e a ocasião de revê-los é tentadora. Não sei se vale a pena destacar algum, mas os de Billy Wilder com ela estão todos  lá – e eles se davam bem. Há ainda os dois Hawks que ela fez, sobretudo “Os Homens Preferem as Loiras” (“O Inventor da Mocidade” é fantástico, mas ela é coadjuvante só). E o faroeste com o Robert Mitchum, “O Rio das Almas Perdidas”, do Otto Preminger.

Bem, essa é uma parte dos 15. Há umas coisas meio chatas, mas como passar ao largo delas?


Confissões de Xuxa e etc.
Comentários Comente

Inácio Araújo

Marcelo Rubens Paiva manifestou o sentimento de que Xuxa poderia ter sido menos expansiva na manifestação feita no “Fantástico” sobre abusos sexuais de que teria sido vítima na infância.

Tenho a impressão, pelo meu lado, que pessoas como Xuxa só existem no mundo do espetáculo, ou antes, na sociedade do espetáculo: sua vida parece só fazer sentido se exibida na TV, se produzir audiência.

Li que confessar ter sido abusada por um treinador foi motivo de relançar a carreira de uma nadadora famosa.

A confissão de Xuxa pode ter o mesmo efeito. Em todo caso, já há um senador disposto a faturar em cima dela e querendo sua presença no dia em que será aprovada (ou assinada, não sei) uma lei contra abusos sexuais.

Que, ao menos por enquanto, leva o nome da nadadora.

Os dois lados ou Os Assassinos da Verdade

É tão frequente ler que é preciso investigar “os dois lados” na  Comissão da Verdade que começo a me inclinar para esse lado.

Como disse um agudo leitor, o direito a levantar-se contra a tirania é o fundamento de todo terrorismo. Não se pode apoiar uma coisa dessa.

Portanto, devemos investigar, sim, todos os crimes cometidos pelos terroristas brasileiros, ainda que tenham sido devidamente investigados a seu tempo por agentes torturadores.

Devemos, acredito até, ir mais longe. É preciso investigar  “os dois lados” da Guerra da Argélia. Não apenas os franceses torturadores como os argelinos que se insurgiram pedindo liberdade.

Também os terroristas, como Menahem Begin, que lutavam pela fixação dos judeus na Palestina têm que ser investigados.

E, claro, é preciso uma devassa nas diversas resistências aos nazistas e fascistas, durante a Segunda Guerra: esses caras eram um perigo para a ordem instituída, sem dúvida.

Acho que em nosso afã de imparcialidade devemos ir ainda mais fundo e investigar os criminosos pelo infame levante do Gueto de Varsóvia, que tanto traumatizaram as famílias nazistas de Varsóvia.

Enfim, a verdade tem que ser contada…

(Mas a esses defensores da verdade imparcial aplica-se bem a fórmula de Pierre Vidal-Nacquet: são esses os assassinos da verdade.)


Douglas Sirk Universal
Comentários Comente

Inácio Araújo

Segue, abaixo, a íntegra da preciosa entrevista de Eduardo Simantob com Matthias Brunner, feita em 19/4/2012 e editada na Ilustrada, da Folha, no dia da inauguração da Mostra Sirk no CCBB.

Eduardo Simantob – Como você conheceu Douglas Sirk?

Mathias Brunner – Foi no início dos anos 70, 1974 se não me engano, no Festival de Locarno. Ele vivia em Lugano na época e sempre reclamava de que nada acontecia no Ticino (cantão italiano da Suíça) a não ser o festival de cinema, que ele e sua mulher Hilde frequentavam todos os anos incógnitos, misturando-se ao público normal sem sequer pedir credenciamento. Alguém que nem me lembro nos apresentou e eu não era nada estúpido e logo imaginei que poderíamos fazer algo juntos no futuro. Logo comecei a preparar uma retrospectiva Sirk e começamos a nos encontrar com frequência em Zurique, que eles adoravam visitar, ficavam sempre no mesmo hotel, iam sempre ao mesmo restaurante vegetariano, muito modesto, o que era muito conveniente para mim na época, pois além de vegetariano, eu também não tinha dinheiro sobrando para jantar fora o tempo todo. Mas as visitas deles eram sempre uma ocasião festiva, fosse para jantares em minha casa ou na casa de meu parceiro na época, (o galerista) Thomas Amman.

ES – Isso então se passou bem quando a obra de Sirk estava sendo reavaliada e revalorizada por uma nova geração de cineastas…

MB – Exatamente. Foi quando Fassbinder escreveu aquele maravilhoso artigo sobre Sirk; Godard, Truffaut e os outros franceses também começaram a citá-lo como influência, e também quando saiu o livro de Jon Halliday (Sirk on Sirk). Kathryn Bigelow e eu então fizemos uma grande entrevista com ele para a revista Interview, de Andy Warhol. Na época também conheci Elisabeth Leufer, que se tornou uma grande amiga do casal, quem escreveu a primeira biografia de Sirk em alemão, e ontem mesmo recebi um telefonema de um historiador do cinema de Hamburgo que está escrevendo uma nova biografia de Sirk que deverá ser lançada agora em setembro/outubro.

ES – Esse processo de reavaliação da obra de Sirk dava-se da mesma maneira entre os jovens cineastas alemães e americanos, ou havia alguma diferença de abordagem?

MB – Na verdade ele era muito mais apreciado na França, os franceses de fato são os primeiros a merecer o crédito pela “redescoberta” de Sirk, especialmente o pessoal da Cahiers du Cinéma, mas também da Positif, e só depois vieram Fassbinder e Jon Halliday, antes que essa onda se espalhasse por toda a Europa, incluindo aí a Itália, onde Bertolucci e Bellocchio eram os grandes entusiastas.

ES – Só Hollywood que levou mais tempo para apreciar a obra de Sirk…

MB – Hollywood definitivamente levou muito mais tempo, até porque Sirk deixou lá uma imagem de diretor caprichoso. Para Hollywood, a obra de Sirk era considerada como “filmes de choradeira” (handkerchief films), melodramas para as tardes das donas-de-casa.

ES – Por acaso Sirk expressou em algum momento seus rancores em relação à Hollywood?

MB – Não, jamais. Era mesmo muito esquisito, pois ele tinha dezenas de motivos para reclamar de sua experiência nos EUA. Ele foi mesmo abusado pelo sistema e nem ao menos foi remunerado decentemente. Ele realizou um sucesso após outro para a Universal e eles, em algumas situações, pagaram-no com ações da empresa, e quando ele deixou o estúdio – e esse foi o seu grande erro – Sirk acreditava que algum novo gênio iria tocar a Universal e valorizar as ações, mas o que se sucedeu foi a grande crise dos estúdios de Hollywood nos anos 60. Não havia mais Minelli nem Sirk nem uma nova geração brilhante, e o que Sirk havia guardado não deu nem para sustentar a casa que ele mesmo construiu no Ticino, e que logo depois teve de vender para comprar um apartamento super modesto em Lugano onde ele e Hilde viveram até o fim da vida. Claro que dava para perceber que ele não estava contente com essa situação, mas ele ainda tentou dar um jeito. Lá pelos idos dos anos 70 o video-cassete começou a ficar popular e ele tentou, junto com outros diretores, como Martin Scorsese, fazer alguma coisa para ganhar algum dinheiro com essa nova mídia, mas no fim não deu em nada. Isso certamente o incomodava, mas ele não se deixava amargar. Ele era nobre demais para isso; talvez em seu íntimo ele sofria com isso, mas nunca deixava transparecer nada.

ES – Sobre quê vocês costumavam conversar?

MB – Sobre tudo! Ele se interessava por gravuras chinesas e japonesas, assim como por poesia alemã, política, e, claro, filmes, e fenômenos sociais, a única coisa que o entediava mortalmente era fofoca. Ele era extremamente intelectual, extremamente ligado nas coisas do seu tempo, lia jornais do mundo todo, era membro da Sociedade de Museus da Suíça (Museumgesellschaft), e adorava vir à Zurique onde podia achar todos os jornais e revistas do mundo.

ES – Ele comentava também sobre a sua experiência de retorno à Europa?

MB – Sim… dizia-se que ele voltou à Europa porque em Hollywood ele estava estafado (burnt-out), no fim de suas forças físicas e mentais, e sair de lá era a única saída para salvar sua vida. Mas Fassbinder me disse, e outra pessoa confirmou a tese, que ele tinha uma outra mulher em Hollywood, alguém bem dentro do sistema, e que trabalhava na produção de seus filmes. E por isso Hilde quis tirá-lo de lá… mas vai saber, essa história até hoje não foi provada.

ES – Você tem aqui nos arquivos caixas e caixas de manuscritos originais, mas Sirk chegou a publicar alguma coisa em vida, ou postumamente?

MB – Não, nada. Ele não tinha nenhuma ambição literária, senão ele certamente teria dado um jeito de publicar. Escrever para ele era uma coisa muito pessoal, uma satisfação para a alma. Como você pode ver, os manuscritos estão em estado bem cru, ele não se preocupava em retrabalhá-los ou reescrevê-los. Mas Hilde escreveu um roman à clef sobre suas relações, e ela bem que queria publicá-lo, mas você viu o manuscrito, e ele é muito difícil de entender, mesmo apesar de estar datilografado. É um tanto tedioso, confuso, não está muito bem escrito. Eu creio que ela começou a escrevê-lo tarde demais.

ES – Como foi que esse material acabou em suas mãos?

MB – Eu era tamanho fã deles, toda vez que ia à Hollywood – e eu ia pelo menos duas vezes por ano – eu procurava e comprava toda e qualquer memorabilia sobre Sirk. Fotos, cartazes, posters etc, e eles um dia me perguntaram se eu não gostaria de abrir uma Fundação Douglas Sirk. Isso foi uns dois anos antes da morte de Sirk, e Hilde  me deu dez mil francos suíços para começar, e depois a Cinemateca Suíça e a Prefeitura de Zurique também contribuíram.

ES – E há ainda mais material em algum outro lugar?

MB – Não. Há certamente cartas pessoais, mas elas são propriedade dos destinatários.

ES – E que você pretende fazer com o arquivo?

MB – Alguma hora vou passar tudo para a Cinemateca Suíça, mas no momento ela passa por uma grande reforma e estou esperando as coisas se definirem lá – assim como certas garantias quanto ao uso e conservação do material – para realizar a doação.

ES – Alguma vez ele discutiu com você as razões de haver parado de filmar?

MB – Sim. O estúdio o espremia tanto, Sirk realizava dois a três filmes por ano… se ele fosse um Godard, filmando de improviso, tudo bem. Mas Sirk era um perfeccionista, e a máquina de Hollywood também era, é, muito exigente. Assim que em um certo momento ele se deu conta que estava exausto. Sirk tinha outros interesses, Hilde também temia pela sua saúde.

ES – Quem você considera, entre os então jovens diretores, os mais significativos na revalorização da obra de Sirk?

MB – Kathryn Bigelow, John Waters e Todd Haynes, Claude Miller, George Cukor e mesmo Vincent Minelli… mas também não podemos esquecer de Almodovar, e aquele diretor turco, Isbedek (????). Todos eles adoram Sirk, e Sirk de fato pode ser considerado como o pai de toda uma geração de jovens diretores que amam o melodrama e que reconheceram que ninguém conseguiu trabalhar esse estilo melhor que ele.

ES – E quem deles teve um contato pessoal com Sirk?

MB – Bigelow, Bertolucci, Fassbinder, Daniel Schmidt, Tavernier, Scorsese…

ES – Godard também?

MB – Não, apesar da proximidade geográfica (Godard vive na Suíça francesa), ele nunca procurou Sirk.

ES – Pessoalmente, como você descreveria Sirk? Ou melhor, o que mais lhe impressionava em sua personalidade?

MB – O que mais me impressionava era mesmo a sua modéstia. E a elegância com que ele se expressava, nunca conheci alguém que falava e discutia de maneira tão distinta, e isso certamente devido ao seu conhecimento extremamente rico e variado. Ele era sempre muito focado nas coisas que lhe interessavam…

ES – Ele parecia ser uma pessoa bastante sóbria…

MB – Sim, bastante sóbria, mas ele adorava dar boas risadas também. Ele não era de beber nem tomar drogas, mas sempre que havia mulheres em volta sobressaía o seu lado galanteador, sedutor. Ele definitivamente gostava de flertar, mas sempre colocava Hilde acima de qualquer outra. Ele não era do tipo de paquerador barato, longe disso, até nisso ele se comportava com uma elegância extraordinária.

ES – E ele falava sobre a Alemanha?

MB – Ele sempre falava sobre a Alemanha, a Guerra era uma coisa que o incomodava muito, pois isso foi a pior coisa que aconteceu na sua vida, especialmente no que se refere ao seu filho que foi mandado para o front com 16, 17 anos e morreu em combate. Sua primeira mulher era nazista, e quando se separaram, seu filho também se tornou um nazista fervoroso. Sirk teve que acompanhar o crescimento do seu filho por meio dos filmes de propaganda nazista, ele assistia a esses filmes para ter uma idéia de como seu filho se parecia. Era um pesadelo. Há um livro recente sobre isso, mesmo sem citar Sirk pelo nome, é um roman à clef de um jovem escritor que aliás trabalha com Scorsese.


Sirk, o essencial
Comentários Comente

Inácio Araújo

Outro dia, passando os olhos rapidamente pela programação da Retrospectiva Douglas Sirk do CCBB disse que era completa.

Meia hora depois lembrei que não havia visto ali “Hitler’s Madman”, que no Brasil tem o título horrível de “O Capanga de Hitler”, que é um filme sobre o assassinato do Heinrich, feito ao mesmo tempo que o do Fritz Lang (“Os Carrascos Também Morrem”).

São filmes interessantíssimos de comparar, porque mostram bem as diferenças estilísticas desses dois diretores alemães.

Ambos essenciais.

Mas a questão é que Sirk filmou pra burro, nos EUA: três filmes por ano. Não é mole.

Tem a fase alemã, na UFA nazista, me parece que completa. O principal é sem dúvida os dois filmes com Zarah Leander, “La Habanera” e “Zu Neun Ufern”.

É bom precisar que Sirk não era nada nazi. Ele era diretor de teatro e foi denunciado pelos próprios atores, quando os nazistas subiram ao poder. Refugiou-se então na UFA.

A questão é que a segunda mulher dele era judia. A primeira, claro, virou uma nazi ardorosa.

O que vem depois é paradoxal, porque seus filmes faziam o maior sucesso, mas ele não podia ter passaporte, o pessoal desconfiava dele, e a mulher ele já tinha conseguido que saísse do país.

Aí ele consegue escapar. Tem um filme na França que, consta, é supervisionado por ele, mas sem crédito. E na Holanda ele faz “Bofje”, que também não está na retrospectiva, eu nunca vi, parece que é bem raro.

A fase Columbia eu conheço mal. Mas “Lured” é um filme bem interessante. Vi mais uns dois outros, mas eu confundo, não vou arriscar os nomes. Acho que vi “Vidocq”, porque assim como “Lured” tem o George Sanders.

Na Universal ele filma a dar com o pau. É a história dos três por ano que o amigo contou ao Simantob, numa entrevista que eu bem gostaria de ler inteira, sem edição. Está ótima! Mas curtinha…

Então faltam alguns menos conhecidos.

Há alguns, como “Agonia de uma Vida”, de 51, acho que o primeiro filme Universal dele. Um melô ótimo sobre umas freiras que acolhem uma suposta criminosa. E chove aos montes.

Gosto muito de “Sinfonia Preateada” (ele tinha mão boa para comédia) e de “Mulher de Fogo”, mais para musical, com a Ann Sheridan arrasadora.

Há um filme muito interessante, que é “Herança Sagrada”, porque é um faroeste, o que sai bem do estilo Sirk, mas com um aspecto melodramático acentuado.

No domínio da aventura, “Sangue Rebelde” é interessante.

E os grandes filmes continuam grandes. As produções do Albert Zugsmith são o melhor, “Palavras ao Vento” e “Almas Maculadas” – esse é menos conhecido, por ser em P&B, mas é espetacular.

As produções do Ross Hunter são aquela coisa. É interessante, o Sirk fazia o pior material virar o melhor filme.

Tem dois que acho bem fracos: “Hino de uma Consciência” e “Interlúdio”.

Vale ir ver.

Cassavetes

Já o Cassavetes na Cinemateca é bem parcial, o que não significa que os filmes não sejam ótimos.

São a ver também. Mas são filmes que estão aqui, bem mais acessíveis.

As estréias

Ah, as estréias. Há o Kore-Eda. Cercado pelo nada.