Lovelace & os outros
Inácio Araújo
Dos filmes em cartaz, nenhum me parece mais interessante do que Lovelace. Não é uma maravilha, mas, a partir da biografia da Linda Lovelace, a estrela do Garganta Profunda, há várias coisas que se observam.
Seja o submundo da então nascente ou quase nascente indústria da pornografia, seja a América de Nixon (Nixon, derrubado em boa medida pelo garganta profunda, o cara que municiou os repórteres do Washington Post no caso Watergate).
Tal como o filme coloca as coisas, não se pode falar de pornô como algo instrutivo, longe disso. De todo modo, Garganta Profunda, que por sinal é de uma chatice histórica, não deixa de ser um episodio da liberação feminina (bem mais que De Pernas para o Ar, pode crer), porque a história da garota que descobre ter o clitóris na garganta não deixa de ser, em tom de chanchada pornô, um sintoma de transformações que estavam ocorrendo naquele momento.
Por fim, o filme deixa muito clara a questão do moralismo puritano (católico, na verdade, nesse caso) na América. Porque lá há dois extremos: o puritanismo e a pornografia. Eles convivem em baias separadas, mas convivem perfeitamente.
& os outros
É digno, mas meio decepcionante, o Elysium. É do mesmo cara que dirigiu Distrito 9e começa lançando a mesma questão. Lá há a favela, a pobreza insuportável, que é a Terra, o Jardim Angela da história. E há Elysium, o planeta artificial dos ricos, o Jardim América do século 22.
Ou seja, o filme está bem no neoliberalismo, no enriquecimento absurdo de uns e no empobrecimento de muitos.
A proposta política não é ruim, continua sendo original, mas o limite do filme é ela. Porque depois o que temos é uma aventura mais para o comum, com uma ficção bem banal, nada do nível do Robocop, embora o Matt Damon vire uma espécie de Robocop.
Wagner Moura está bem como o chefe do submundo. Não sei se foi ele que criou o lance de mancar de uma perna, de usar bengala, mas é bom.
Alice Braga segue seu destino hollywoodiano: a mocinha latina simpática, mas sempre secundária.
Já falei aqui do Dose Dupla? Em todo caso: ali temos uma boa ficção, sim.
Ozu
A caixa Ozu me lembrou de uma coisa. Há, me parece, 3 tempos no cinema do Ozu.
1. O da aparência. Esse mundo japonês, todo codificado, todo marcado pelas convenções, é o que vemos primeiro. Não se age conforme a subjetividade, mas conforme um código.
2. A trinca. No segundo momento, o que se mostra é a trinca desse sistema. O quanto ele comporta de não-ditos, de hipocrisia, de insustentável.
3. A recomposição. O momento final é da aparência, de novo. Mas da aparência recomposta, quando ela se justifica, mostra porque existe, como todo um modo de vida se articula a partir dela.
A trinca já aconteceu, é irrevogável, mas ao menos precisamos compreender a natureza desses códigos.
& os curtas
Eu vivo pegando no pé dos filmes paulistas porque vejo que em geral o negócio (the business ou a grana) parece contar mais do que o cinema.
Mas é porque a gente pega no pé daquilo ou daqueles que ama.
Então, para deixar muito claro, acho o pessoal do Filmes do Caixote o máximo. E o ''Trabalhar Cansa'', que num primeiro momento não me impressionou eu vejo, com o passar do tempo, que era sim um bom filme, muito bom.
Agora vejo três curtas de Thiago Bandrimarte Mendonça onde a invenção está sempre presente, mas nunca coloca em surdina o tema.
E os temas são sempre originais, marginais.
A Guerra dos Gibis trata dos introdutores do mangá no Brasil (usa bem recursos de animação).
Piove – O Filme de Pio, revisita a Boca do Lixo ciceroneado por Pio Zamuner, o fotógrafo e diretor (usa bem o gosto de Pio por colocar a câmera, por dizer como devia ser o filme).
O Canto da Lona é sobre circo (circense, e bem afetivo).
Tenho medo de falar bem de curtas, porque a passagem do curta ao longa é que é questão. Mas gostei mesmo desses, em parte por isso que falei acima: a modéstia (não humildade) diante do seu assunto e dos seus personagens.
& em Minas
E Minas, que é mais da escrita, produziu alguns belos curtas.
Também é produto de grupo. Grupo que significa conversa, amizade, discussão, troca.
É o ''vamos conspirar'' com que nos incitava à conversa Claudio Willer.
De lá já tinha visto ''Contagem'', de Gabriel Martins e Maurílio Martins.
Agora vejo Pouco Mais de um Mês, de André Novais Oliveira.
E o espetacular Dona Sônia Pediu uma Arma para Seu Vizinho Alcides, de Gabriel Martins.
Também um pessoal que dá para esperar por longas, porque essa história de Pernambuco é legal, mas não pode ficar como uma espécie de gueto.
& a propósito
Continuo a esperar que seja lançado em circuito o belo ''Eles Voltam'', de Marcelo Lordello.