O filme-coisa de Coutinho (1)
Inácio Araújo
Eduardo Coutinho apresenta “Um Dia na Vida” não como um filme, mas como uma “coisa”, “essa coisa”.
Eu gosto da definição (ou indefinição). É diferente de auto-menosprezo, existe ali a percepção de que se trata de algo que rompe uma fronteira, algo como o “Five”, de Kiarostami, que também pode ser chamado de uma bela coisa.
O fato é que quem viu “Um Dia na Vida” teve a impressão de ter visto um objeto estranho, do qual os sentidos afloram com uma generosidade singular.
Tentarei falar de alguns, porque a coisa vai longe.
O primeiro, mais alarmante, é de que o filme possivelmente não tenha mais nenhuma exibição pública consentida. Exibição sem cobrança de ingresso e também sem aviso prévio, senão já haveria alguém tentando proibi-la.
Ou seja, eis aonde chegamos: se os piratas não distribuírem, não haverá distribuição alguma.
A questão, a primeira, é que está cada vez mais difícil ao cinema fazer qualquer registro do mundo real. Se você quer mostrar como funciona uma padaria de manhã tem que se acertar com o dono do lugar, o padeiro, o cara do caixa, os atendentes e os fregueses. Isso se não precisar pagar alguma coisa aos donos da marcas no balcão.
As leis de direitos autorais são um inferno, um absurdo. Qualquer um que já tenha aparecido no mais modesto documentário, num programa de TV do canal universitário às 3h da manhã, sei lá, sabe que, assim que acaba a gravação aparece um fulano com um papel pra você assinar, cedendo direitos e blábláblá.
Claro que isso não vai acabar com o cinema, mas, pior, tende a acabar com a realidade no cinema, o que talvez seja pior. Hoje em dia o cara que atravessa a calçada no fundo da imagem é um figurante, nunca um passante.
Se fosse fazer “Roma, Cidade Aberta” hoje em dia Rossellini teria de pagar direitos até pra os herdeiros do Hitler. Se fosse fazer “Alemanha, Ano Zero”, teria de dar direitos autorais aos caras que bombardearam Berlim. É ridículo, mas também catastrófico.
Todo mundo deve lembrar de uma biografia do Garrincha, que foi proibida porque a família queria direitos sobre a vida do jogador. E levou!!!
Há uma biografia do Roberto Carlos que foi proibida porque não foi autorizada pelo biografado. De maneira que, com a ajuda de nossa justiça catástrofe, daqui a pouco só será possível publicar autobiografias.
Para cinema a coisa é pior porque afeta diretamente nossa percepção das coisas. Uma delas: há décadas não podemos ver “A Hora e Vez de Augusto Matraga” por conta de umas disputas familiares, coisa de herdeiros. É o fim do mundo. Deviam mandar os herdeiros do Guimarães Rosa trabalhar e cuidar da própria vida.
Mas é nesse pé que estamos.
Por que isso acontece com o filme do Coutinho? Por que será esse uma coisa, um filme invisível?
Porque o filme consiste na filmagem de 19 horas de programas de TV ao longo de um dia, das quais extraiu-se a hora e meia que foi possível ver na sessão do cine Livraria Cultura (ex-Bombril, ex-Cinearte, ex-Cine Rio).
Sessão preciosa, porque única. Lamentável também, pelo mesmíssimo motivo.
Então, essa irrealidade do cinema, esse cerceamento brutal da imagem que existe hoje, esse constrangimento abusivo que se toma por direito autoral, não só com esse filme, mas com qualquer outro, é uma das coisas imperdoáveis do tempo atual.
Para não encher muito, volto a falar do filme, do filme coisa, em breve.