Blog do Inácio Araújo

Arquivo : May 2011

No silêncio do cinema
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Inácio Araújo

O que acontece nas telas? Pouca coisa. Restam sempre os DVDs para nos salvar. Por exemplo, essa bela edição de “Alma em Suplício” da Versátil.

Um desses filmes que mostram não apenas o quanto Joan Crawford podia ser carismática, como o quanto era competente Michael Curtiz. O húngaro não era propriamente um autor, mas o artesão mais representativo da Warner. Tudo em que tocava dava certo, não importa o gênero, e tinha a cara da Warner.

E ver pela televisão o Barcelona, que coisa absurda!

Mas, melhor ainda: pegar, no intervalo do jogo, um fragmento de “O Bagunceiro Arrumadinho”. Um grande Jerry Lewis, sem dúvida.

Mas dá para perguntar: e o que é feito de Frank Tashlin? Onde andam seus filmes?

(A propósito: Milton Leite é um desses locutores à parte. Não transmite apenas o jogo, transmite também sua alegria de estar lá.)

A DVD World anuncia que volta ao estoque “A Batalha de Burma”. Que batalha de Burma? O filme do Samuel Fuller, “Merril’s Marauders”, no Brasil teve o nome cem vezes mais poético de “Mortos que Caminham”.

Seja como for, a edição não é repulsiva e o preço é de colher: R$ 12,90.

Quem leu o artigo do Paulo Coelho sobre pirataria, na Folha de domingo?

Não tenho o menor interesse pelos livros dele, mas o artigo me pareceu decente demais, sobretudo por partir de um cara que vende livros às pilhas.

Mas ele diz que ninguém escreve para ganhar dinheiro. Que o cara russo que denunciava as atrocidades do Stalin não só não ganhava nada como ia para a Sibéria. E no entanto continuava a escrever.

Saiu um novo Filme Cultura. A vanguarda como tema central. Passei batido. Acho que a vanguarda é uma preocupação um tanto obsessiva nossa. Mas há coisas boas a ser lidas, sim.

O melhor, no entanto, não tem nada de vanguarda. É o perfil apaixonado de Rubem Biáfora por Gustavo Dahl.

Dahl é possivelmente o único cinéfilo de sua geração que conseguiu juntar os pólos contrários, Biáfora e Paulo Emilio, e compreendê-los devidamente.

Havia ali um conflito de Patrícios e Plebeus, é claro. O terno parisiense de Paulo Emilio contra o terno Lojas Garbo de Biáfora. O quatrocentão vs. o italianinho.

Bem, há outras questões: Paulo Emilio, o cara de uma visão ampla sobre a sociedade e o cinema nessa sociedade.

Já o Biáfora, para quem a única nação parecia ser aquela que acontecia dentro da tela. Sua nação, sua religião.

Quem tomou Biáfora por um cara meio maluco estava certo. Ele era mesmo. O que não o impedia de ter um olho extraordinário.

Paulo Emilio era homem de esquerda. Biáfora odiava os “esquerdinhas”.

Paulo Emilio partia do mundo para chegar ao cinema. Biáfora, partia do cinema para enxergar o mundo.

Podiam ser opostos, não deixavam de ser complementares.

Uma vez sugeri a Calil, há muitos anos, uma mostra em homenagem a Biáfora (na época, Calil era um indispensável diretor da Cinemateca).

Ele disse que não podia fazer isso por fidelidade a Paulo Emilio. Disse que Biáfora chegou a ir ao Dops (ou correlato) para denunciar Paulo Emilio. Bem, ainda assim me parece que o Calil estava errado no episódio.

Porque uma delação de um maluco como o Biáfora equivalia a um salvo-conduto. E depois porque uma coisa não tem nada a ver com outra.

Eram, por todos os motivos, dois pólos, igualmente necessários a nossa vida cinematográfica.

Mas chega de falar: acho que vale a pena correr atrás do artigo do Gustavo Dahl, que é uma beleza.


O Homem ao Lado
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Inácio Araújo

Há filmes que provocam impacto, mas, uma hora depois, a gente é incapaz de lembrar do que viu: não marcam.

Há outros que não impressionam na hora. Mas, depois, as imagens não saem da cabeça. O filme cresce. É esse o caso, comigo, do filme argentino “O Homem ao Lado”.

Fui revê-lo no fim de semana e confirmei a boa impressão. Não é um filme perfeito. Mas é essa coisa que vem se tornando rara: é intrigante. Termina a sessão, você vê todo mundo conversando, trocando idéias…

A trama é mínima. Leonardo é um designer de sucesso internacional. Vive em La Plata numa casa desenhada por Le Corbusier (um personagem assegura, no filme, que é a única dele na América; alguém cá fora sustenta que existe outra no Chile). Uma casa magnífica, claro.

Esse homem se crê acima do mundo, ou antes, livre dos importunos que o mundo pode causar a nós, mortais. Mas eis que seu vizinho, um tipo grosseiro chamado Victor, decide abrir uma janela bem para a tal casa.

O incidente se torna motivo de mortificação para Leonardo.A mulher (uma chata, na verdade) o pressiona. Ele tem de abandonar seu casulo de proteção e se relacionar com o homem ao lado. Exigir que tape a janela, etc.

O filme é o questionamento de Leonardo, mas não o promove pela psicologia, pelo drama. Isso vem, em parte, pela comédia (a cena em que Leonardo e o amigo pedante escutam música é das melhores).

Vem também por certos procedimentos formais: a hiper-estetização da casa, por um lado, e por outro a desconexão entre os ambientes da casa (nunca chegamos a formar uma idéia de conjunto) são dos mais marcantes.

Um filme que lembra um tanto o trabalho de Anna Muylaert aqui no Brasil, inclusive pelo humor e pela forma indireta de abordar o aspecto social da história (que não é o único, longe disso).

Mas não deixa de lembrar “O Invasor” do Beto Brant, embora neste o terror não esteja ao lado, e sim venha da periferia (nesse sentido, a solução do filme argentino me parece mais intrigante).


Lars von Trier nazista?
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Inácio Araújo

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Assisti ao vídeo inteiro da conferência de imprensa de Lars von Trier em Cannes.

Von Trier nazista? Admirador da estética nazista? De Albert Speer?

Só quem não viu filme dele pode levar isso a sério.

Se estivesse no nazismo e ele fizesse um filme com a câmera balançando daquele jeito ia se entender com a Gestapo direto.

E que maluquice é essa do Festival exigir desculpas dele?

Está certo, o tempo todo ele sacaneou a imprensa. Sacaneou as atrizes. Deixou a Kirsten Dunst envergonhada.

Enquanto se desenrolava a entrevista ele, visivelmente, bolava na sua cabeça um outro filme. Uma comédia, evidentemente.

Dito isso, há uma outra coisa:

Lars von Trier é um gênio da publicidade.

Quando inventou o Dogma 95 havia uma enorme presença, quase um paredão que a indústria americana havia montado, não passava nada.

Pois bem, ele inventou essa história e a Dinamarca se impôs ao mundo.

Fez todos aqueles mandamentos, que aliás foram para o espaço já no primeiro filme…

Ele faz publicidade e gozação ao mesmo tempo.

Acho que foi a última pergunta da entrevista, que já estava completamente maluca, o cara perguntou se ele achava que Melancholia era um blockbuster.

Ele enrolou um pouco e depois disse algo como: acho que é, sim, sabe, nós, nazistas, gostamos de coisas grandiosas.

Ah, que belo nazista foram me arrumar.


As raparigas do Manoel e outras histórias
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Inácio Araújo

É fantástico “Singularidades de uma Rapariga”, o Manoel de Oliveira que acaba de entrar em cartaz. Já tinha passado na Mostra, na penúltima, mas a gente vai correndo ao cinema, assim que pode, para rever. É um gesto quase automático.

Oliveira cria, a rigor, várias raparigas. A garota por que Macário se apaixona ao ver através de uma janela, protegida por um véu, a imagem de sonho da linda garota, Luísa.
Rapariga ficcional: personagem de um quadro, ou de um filme visível pela janela indiscreta de Macário.

Aos poucos, Luísa deixará o reino da ficção para se tornar palpável. A encontraremos na loja do severo tio de Macário, Diogo. Mais tarde, no estranho círculo literário onde enfim será apresentada a Macário.

Haverá ainda mais uma Luísa. Não se pode falar dela. Seria estrepar com quem ainda não viu o filme.

Mas pode-se dizer que ela será tão surpreendente que deixará de ser real ou realista para assumir uma terceira natureza. Ou terceira personalidade, acho que no caso dá no mesmo: esta última vai atirá-la num registro de franca irrealidade.

Essa última personalidade de Luísa existe, fiquei com a impressão desta vez, em relação com o tipo de trabalho de Oliveira sobre o tempo.

Num momento estamos no Portugal moderníssimo da União Européia: um trem belíssimo a embalar a história que Macário conta à mulher (Leonor Amarante).

De repente, chegamos à loja. À austeridade quase demente do tio Francisco (Diogo Dória). À idéia de uma viagem a Cabo Verde como se fosse o exílio (não conheço o original, não sei se é assim que as coisas se passam lá). O círculo literário criado por um ministro da Informação de Salazar!!! Luís Miguel Cintra declamando O Guardador de Rebanhos, nesse jogo que vai do literário e o teatral.

Enfim, é como se o filme revolvesse várias camadas de tempo, várias histórias, várias sensibilidades portuguesas a partir da saga de Luísa, que é, no mais, bem esquiva, bem Capitu.

É impressionante como Oliveira enfileira filmes insubstituíveis, um atrás do outro.

* * *

Faz-me rir

Não assisto programas de humor na televisão. Quando sintonizo, mais para saber que existem, tiro um minuto depois, tal a barulheira, tal, em suma, o que me parece falta de humor.

Minha filha uma vez falou daquele Pânico como uma coisa dadaísta. Pode ser que seja uma sensibilidade contemporânea que já não acompanho. Pode ser.

Mas não creio que seja. Não creio que esses caras saibam do que se trata.

Tudo isso me parece horrível, mas talvez seja isso mesmo: você vai envelhecendo, tudo que está ao lado começa a parecer hostil, decadente, desprovido de sentido. Pode ser.

Agora, o que Marcelo Coelho escreveu na Folha é coisa de outra ordem. Diz ele que o tal sujeito pediu desculpas. Como desculpas?

A referência a Metrô, velhinhos judeus, Auschwitz ultrapassa, evidentemente, qualquer limite do racismo. É simplesmente abjeta.

Não sei, fico com a impressão de que, por serem esses arremates de humanidade (não raro travestidos de jornalistas) esses caras acham que podem falar tudo que a boçalidade possa lhes sugerir.

Marcelo pensa num caso de fascismo. Acho que nem chegamos a isso.

Não estamos diante da banalidade do mal: trata-se mais de cretinismo elevado à condição de livre direito de pensamento.

A TV tem muito a ver com isso.

A TV mais a internet pode ser uma mistura que ainda vai dar rolo.

* * *

Nóis e a língua

Como todo mundo sabe ou suspeita, nós, jornalistas, temos a língua pátria como ponto de honra.

Não que sejamos mestres nela. Até onde vai minha experiência não somos lá grandes coisas nesse particular.

Vivemos pendurados no prof. Pasquale ou outro. Ele ensina uma coisa e na semana seguinte a gente vai lá e fica encaveirando a ignorância alheia – que é tão nossa.

Bem, na sexta passada a bancada do Jornal Globonews ficou em pé de guerra por um livro, licenciado ou comprado pelo MEC, “ensinar errado”.

Foi uma espécie de êxtase, porque a hipótese do erro alheio, sobretudo de um erro de quem deveria ensinar – a professora que escreve o livro, o Ministério da Educação – revelava um pouco a superioridade dos jornalistas. Somos os que conhecem a norma culta.

É óbvio que ninguém tem obrigação de conhecer linguística ou a questão das particularidades.

Mas é um vício dos jornalistas, nosso, a precipitação. Me ocorreu às vezes. Não quero falar de ninguém.

Mas é algo que a TV potencializa, porque o jornalista é revestido de certa autoridade.

Então ele não diz: eu quero entender tal coisa. Não. Ele imagina que sabe e o mundo inteiro é composto por idiotas.

Quase sempre não é bem assim.


Nossos documentários
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Inácio Araújo

A pergunta-afirmação que mais se faz é:

“Nossos documentários melhoraram muito, não é?”

Não estou muito de acordo com a idéia de que “melhoraram”, porque parece que antes eram ruins.

Tanto não eram que o melhor documentarista dos anos 80 (Eduardo Coutinho) é o melhor documentarista hoje.

Mas parece evidente que, na média, o documentário se sobressai hoje como um gênero essencial no cinema brasileiro, apesar de sua bilheteria, na média, ser pequena.

Há uma média de uns 10 documentários ao menos muito interessante, todos os anos.

Tenho a impressão de que nenhuma categoria de filme se beneficiou da passagem ao digital mais do que o documentário. Algumas razões para isso eu consigo ver:

a) O que custava caríssimo, o negativo, foi praticamente eliminado sem deixar saudade. Ganhou-se tempo, um tempo inestimável, o tempo a ser jogado fora, das coisas que não dão certo, do que acaba sem interesse, etc. O documentário precisa desse tempo livre, não é uma coisa que se decupa antes (nem se roteiriza, a bem dizer, apesar dos concursos…).

b) Ao mesmo tempo, o documentário chega com muita agilidade a mais ou menos todos os assuntos de interesse e não investigados da vida nacional: políticos, sociais, culturais – o que se quiser.

c) E tenho a impressão de que as pessoas querem, hoje, conhecer essas coisas: pode ser a Portela, o lixão, a trajetória do cantor, do grupo teatral, o que se quiser. Aliás, que bom que seja assim.

d) Por outro lado, existe um desgaste da ficção, que por sinal não é só brasileiro. Basta ver o número de filmes que se dizem “baseados numa história real”.

Ora, se é história já devia ser real. Ou a ficção nasce das pedras? A cabeça do ficcionista seria irreal? A fantasia seria irreal?

Enfim, existe essa crise da ficção, como se ela fosse o que não acontece.

A não ser que seja em 3D, claro. Aí pode mandar chumbo. Mas, no cinema, parece que a condição da ficção é a terceira dimensão.

e) Por fim, é preciso admitir, o documentário com frequência depende muito mais do mundo exterior do que de outra coisa.

Digamos aquele documentário sobre a Velha Guarda da Portela. Eu tenho a impressão ali de um caos visual, parece que vai para um lado a cada sequência, etc. e tal.

No entanto, existe a música, existem os personagens. Ponto final: a gente assiste e sai feliz. É isso que importa, não?

Há os equívocos completos, como o filme do Simonal. Mas, ainda assim, temos a sensação de estar sendo informados de alguma coisa (ainda que informados tortamente: na verdade, esse me parece o rascunho de um doc a ser feito, sobre o Simonal, sobre O Pasquim, sobre o Dops. E também sobre o doc.).

Do outro lado há os filmes pernambucanos, sobre os quais não vale falar: seja Cartola ou Humberto Teixeira, eles estão bem acima do que se faz hoje em Rio-SP, tirando fora os suspeitos de sempre.

Mas coisas muito interessantes acontecem de vez em quando que não seja Coutinho ou João Salles ou Tonacci (admitindo-se que “Serras da Desordem” seja um doc, coisa de que não estou convencido). Casos do filme sobre o carrasco dinamarquês e também do “Uma Noite em 67”, este em menor escala, na verdade. Sem diminuí-lo, longe disso, mas é que o filme do Boilesen é uma aula.

f) Para completar, uma coisa que não compreendo: essa história de auto-ficção;
O que é auto-ficção? Ou por outra: o que não é auto-ficção? Toda ficção, me parece, é “auto”. Toda boa ficção é, à sua maneira, um doc.

E, diria Coutinho, todo bom doc não passa de ficção. Talvez.


Imagens da fé
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Inácio Araújo

Qual será a religião da era internet?

Na era do cinema o catolicismo imperou. Só Dreyer, o protestante, foi exceção, aproximando o natural do sobrenatural, o homem do milagre – Deus e os homens, em suma.

No catolicismo, essas duas esferas são distantes. Existem até os santos para interceder por nós.

Em compensação, o espetáculo sempre foi um forte do catolicismo: procissões, festas, fogueiras (com gente dentro), desfiles com bispo e imagens. Tudo isso sempre foi sua força: a distância entre o nosso mundo e o de lá, o da vida eterna.

O catolicismo produziu Hitchcock e Buñuel, Rossellini e Pasolini, Bresson e Rohmer.
Já para não falar dos coroinhas, como Zeffirelli.

Mas o tempo do espetáculo solene passou.

Veio a televisão e, com ela, o coloquial: os pastores neopentecostais. O natural e o sobrenatural se aproximaram de uma maneira talvez inédita, diferente em todo caso.

Eles vêem o diabo em toda parte. Tudo se explica pela presença do demônio: desemprego, vida conjugal, vida sexual.

Exorcismos em massa. Ah, e o velho professor Lemgruber, do velho “O Povo na TV”, que comeu o pão que o diabo (ele mesmo) amassou por causa de suas curas rápidas!!!!

Eram rápidas, porém leigas.

Agora é diferente. Não há mais doentes: todo mundo está endemoninhado.

Tudo depende de fé. De muita fé. A fé remove montanhas. Tudo depende de cada um de nós, em suma.

Os neopentecostais, pode ser contra ou a favor, tanto faz, fizeram isso: jogaram a responsabilidade nas costas do fiel e em sua relação direta com Deus.

Deus e o homem tornaram-se próximos, quase íntimos.

E também aproximaram o mundo espiritual e o material, que os católicos mantêm solidamente divorciados.

Na TV, o pastor promete que, com fé, você terá casa própria, essas coisas.

Na Rede Vida, às 6 da tarde, um bando de carolas puxa o terço. É uma espécie de anti-marketing, acho…

Há pastores que fogem com dinheiro para o exterior, demonizam a umbanda… Mas ninguém pode reclamar muito do lado católico: em matéria de demonizar outros credos, não há quem tenha mais know how do que a Igreja Católica.

O pessoal da umbanda, claro, poderia reclamar muito.

Os espíritas reagem com filmes. Aqui no Brasil, em todo caso. Mas eles não aspiram, nunca aspiraram a ser majoritários. Querem ser respeitados.

E o catolicismo?

Bem, fez aquele filme lamentável sobre Aparecida.

Milagre de verdade seria a Tizuka fazer um filme bom.

Os católicos estão por fora da TV e, agora, também do cinema.

O pe. Marcelo queria cantar para o papa novo. O papa não quis nem saber. É um aristocrata.

Então, o Vaticano tentou o teatro: a beatificação de João Paulo II.

Para começar, perdeu o timing. Todo mundo estava preocupado é com o espetáculo do casamento real na Inglaterra.

O povo prefere casamento a canonização, está na cara.

O casamento é uma experiência ao alcance de todos, gera identificação. Beatificação gera, quando muito, respeito.

O século 21 não é do respeito. Nem da devoção. É tudo de igual para igual. Tempo da democracia: de cuidado com o Demo. Com Deus é preciso falar de igual para igual.

Isso até agora, claro. O século 21 passa muito depressa. Deverá haver muitos séculos 21 ainda. Não sei nada de teologia, mas pergunto para onde, em termos de comunicação, caminhará a fé.


Sobre Leon Cakoff
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Inácio Araújo

Ainda estava em choque com a mais recente manifestação de leitor do Guia da Folha.

Um engenheiro, ele sugere que, como todos os leitores (que se manifestaram por escrito) gostam de tal filme e os críticos não, suprima-se a crítica.

A idéia geral do homem é mais ou menos a seguinte: se o consenso substitui o raciocínio, por que pensar?

O filme não seria um objeto simbólico que introduz algo no mundo e pede o trabalho de nosso juízo. Ele não tem futuro, nem passado. Esgota-se na “opinião dos leitores”.

Bem, sempre se pode argumentar que os críticos não são bons intelectuais, que se colocam diante do objeto de maneira arrogante e que essa arrogância corresponde à sua ignorância.

Pode ser. Ainda assim…

Nisso estava quando chega o artigo do Leon Cakoff de domingo, na Folha: um belo relato de sua situação de saúde, de que tomara conhecimento há alguns dias e que, para falar a verdade, tentei fazer como se não existisse, tentei negar.

Não foi da Mostra que lembrei primeiro. Foi dele como crítico. Foi de nos ter trazido, mostrado, aberto os olhos para Manoel de Oliveira, Abbas Kiarostami, Amos Gitai e tantos, tantos outros. Sem falar das grandes mostras do cinema iraniano, Roger Corman, Satyajit Ray, Yoshida. Sem falar dos livros que lançou, como aquele, formidável, sobre Ozu (do Yoshida) e tantos outros. Ou daqueles em que teve a gentileza de me convidar para escrever, como “Os Filmes da Minha Vida”.

Um crítico é isso: uma partilha de conhecimento. Leon tem levado a Mostra com força. Não agora, que o vento sopra a favor. Mas quando, contra, tinha a ditadura, a burocracia, a falta de patrocínio, a concorrência do festival do Rio, com muito mais dinheiro.

Mas, diante de todas essas dificuldades, Leon nunca deixou de organizar a melhor Mostra possível, desenvolvendo uma concepção clara do que queria: um cinema humanista, progressista, resistente quando preciso, sempre vivo, sempre ligado à vida.

Leon sempre foi muito acusado de ser um tirano e um chato. Deve ser mesmo. Quando se tem a ambição que sempre teve, quando se tem (mal e mal) os meios de desenvolver uma idéia, não se pode ser diferente. A Mostra de SP sempre foi “a mostra do Cakoff”. Ninguém duvidou disso nunca, nem a Renata, seu braço direito e também esquerdo. E por isso se firmou como um evento dessa importância.

Isso é trabalho crítico. Ele é abrasivo, implica em escolher A ou B, ou ainda A contra B. Não é sua essência, mas passa por aí. Talvez nosso engenheiro ache que André Bazin não vale nada porque gostava de um cineasta pelo qual hoje não se dá grande coisa, como William Wyler. É possível que isso não interesse muito aos leitores que protestam, para quem a divergência é uma espécie de sinônimo de ofensa. Em todo caso convém lembrar dessas coisas. Assim como a curadoria que certos críticos fazem para mostras do CCBB, digamos, ou para festivais. Ou o trabalho de revisão de certos autores. Ou de divulgação de certos livros. Etc. etc.

Alguém poderá dizer que a sugestão foi uma piada, apenas, um lance de humor. Não digo que não: está na linha do humor de TV com que vez por outra me deparo (efeito zapping) e do qual fujo correndo, porque a barbárie chega a jato.

Na outra ponta dessa história existe Alcir Pécora, o crítico literário que ressuscita a crítica literária.

Não gostaria de passar em branco por essa história, não.

Mas, por agora, torço muito para o Leon se safar dessa, produzir belas críticas com que concordarei ou de que discordarei, e, sobretudo, nos dar a Mostra ainda por muitos anos.


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