Blog do Inácio Araújo

Outra lição argentina

Inácio Araújo

Assim como tratamos com leniência (quando não com entusiasmo) nossos torturadores, tratamos com desprezo (quando não a marretadas) a cultura, e na cultura, o cinema em particular.

Já os argentinos, que encanaram não só pequenos torturadores, como os dementes que tomaram o poder no país a horas tantas (os Videla, Gualtieri e que tais) estão lutando para dar um golpe na absurda desconsideração com que é tratado o cinema.

Como informa hoje Sylvia Colombo, agora correspondente da Folha na Argentina, eles estão baixando uma norma (quem faz isso é o INCAA – Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais) segundo a qual o filme que entrar em mais de 40 telas terá de pagar uma taxa de exibição. A progressão é geométrica. Com 40 paga o equivalente a 300 ingressos, com 80, a 1200 etc. Isso em Buenos Aires. Nas demais províncias a taxa será menor.

Não entendi se a taxação é por filme, por semana, por mês. Mas entendo que, na pior das hipóteses, instaura uma maneira de a produção de blockbusters fomentar a de filmes locais.

Não seria pouco. Mas o peso moral da medida me parece bem maior.

O cinema, como eu disse acima, tem sido tratado como um assunto “de mercado” (inclusive, ou sobretudo, no Brasil). Isso é quase mundial. Foi uma vitória da nova Hollywood: fazer o espectador esquecer que aquilo ali significa mais do que o peso das moedas no caixa da lojinha (que, claro, tem sua importância). Cinema passou a ser uma coisa para “esfriar a cabeça” no fim de semana. Que nem ver programa de variedades na TV, só que fora de casa, para variar.

De quebra, come-se aquele balde indecente de pipoca, acompanhado por um copão indecente de Coca e alimenta-se a obesidade nacional.

Bem, cinema não é só isso, concordará quase todo mundo, ao menos quem acompanha o blog.

Mas o hábito de ver blockbusters e 3D em profusão acaba por confundir mesmo cabeças capazes.

À força de não esperar nada do cinema, quando aparece um “A Árvore da Vida” pela frente, confunde-se tudo. E a criação de tudo é confundida com imagens da National Geographic. Mas não é. Reclama-se (repito: não são tontos, são pessoas que considero) que podiam cortar aquilo tudo, reduzir aquilo tudo a umas poucas imagens.

Ok. Podiam. Mas se não cortaram deviam ter algum motivo.

O primeiro deles, me parece, é que a principal diferença entre as imagens daquele filme e os da National Geographic é, justamente, de “timing”. A TV nos ensinou que as coisas devem ser “entendidas”. Você viu uma paisagem o bastante para entender do que se trata, fim. Corta.

Bem, só que no filme do Mallick se trata da criação do universo. Não basta estender uma faixa e dizer: “e o mundo apareceu”. Não é bem assim. Deve-se sentir, experimentar a coisa em sua duração.

Isso é uma digressão, mas não à toa. Quero dizer que uma medida como essa da Argentina nos serviria muito, nos desviaria dessa dieta intragável de filmões raramente interessantes.

E mostraria, como querem os argentinos, que existe outra coisa no mundo das imagens em movimento além de super-heróis. Acredite: existe.

Nosso problema, aqui no Brasil, é que a Ancine, agência de regulação do cinema, está de mãos e pés atados aos blockbusters.

O cinema é objeto de eterna desconfiança. Ele precisa fazer sucesso. Se o filme não faz um montão de ingressos é porque é feito por uns vagabundos e, pior, esquerdistas.

Então, filme bom é aquele que faz sucesso. E filme que faz sucesso é, geralmente, aquele distribuído pela Globo Filmes, porque tem os atores famosos e anúncios na Rede Globo.

Então o nosso padrão virou essas coisas muitas vezes repugnantes, não só esteticamente, mas eticamente também, como aquela besteira sobre um sex shop, que é sem dúvida um dos pontos mais baixos do imaginário nacional desde os tempos de José de Anchieta (o padre, não o cenógrafo).

Então, a Ancine, na hora em que a cobrança aumenta, apresenta os números. Números. Está aqui. Não sei que filme, tantos milhões. Não sei qual outro, tantos milhões. O cinema merece existir. Substituição de importação. Essa besteirada toda.

Mas o espectador que se estraga no mau filme estrangeiro não se estraga menos no mau filme nacional. Se ele acha que o sumo da arte cinematográfica é A Mulher Invisível ou O Divã não adianta na semana seguinte entrar um bom filme, um Mallick, um Cronenberg, um Oliveira – ele simplesmente não reconhecerá aquilo, verá naquilo uma coisa estranha.

É por isso que essa medida é mais uma lição argentina. É por isso que o cinema argentino conta para a cultura do país e para o nosso o brasileiro é quase sempre insignificante (para recordar Gustavo Dahl). O brasileiro ou, sejamos francos, o mundial.

Correspondência

Não, ao contrário do que possa parecer, não abandonei o hábito de responder aos comentários. É que o novo sistema do blog se mostrou bem complicado, por um lado.

Por outro, andei usando dados errados nas respostas e essas nunca chegaram a seu destino.

Sofro de falta de tempo crônica, mas gosto que o blog seja um lugar de correspondência, de troca. Desculpem de todo modo.

Foi implantado um sistema novo e parece que a coisa vai melhorar.