Um beijo gay
Inácio Araújo
Cada vez que se anuncia, no Brasil, que haverá um beijo gay na TV é aquela comoção nacional, com gente contra e a favor, discussões sobre se deve ou não deve, uma patacoada sem fim.
E o que se pode esperar do beijo gay da novela é sempre aquilo: iluminação completa, escancarada. Porque o tal beijo, aconteça ou não, será sempre um manifesto e não um gesto dramático.
Por isso mesmo ele pode acontecer ou não, tanto faz. Trata-se de saber se o bispo vai gostar e se ele tem mais influência do que o movimento gay, essas coisas. No fundo, estamos testando um pouco mais essa tremenda capacidade de invasão de privacidade que a TV reflete, demonstra e incentiva, tanto nas novelas como em programas tipo BBB.
Já o que acontece em “J. Edgar” é de outra ordem. Sabemos hoje que Hoover era homossexual e teve uma longa ligação com Clyde Tolson. Eram inseparáveis e Clyde era uma das poucas pessoas em quem o paranóico Hoover confiava inteiramente, ou quase.
Bem, era quase impossível elidir o início da relação sexual entre eles. E isso se vê no filme, mas de forma tão natural (e, no mais, discreta) que nunca pensamos no “beijo gay”. É um beijo apaixonado que marca o início daquela relação para a vida.
Há outros momentos fortes em “J. Edgar”, poucos tratando da sexualidade do personagem. Mas o momento em que, após a morte da mãe, ele coloca seu vestido é uma obra-prima, até porque não se trata de expor um travesti, mas de demonstrar a força da ligação entre Hoover e a mãe.
Um momento, mais no final, especialmente belo pela ternura é aquele em que Hoover beija um já velho Tolson na testa. É muito forte porque, embora assexuado, o beijo é carregado de sentimentos que atravessaram uma vida (isto é, duas).