Blog do Inácio Araújo

Nunca mais

Inácio Araújo

Eu devia estar falando de Roterdã, de como com uma palavra (“Você!”) o Mojica galvanizou uma platéia, de como Gabe Klinger falou sobre a felicidade de apresentar “O Império do Desejo”, o filme do Carlão Reichenbach que foi programado em pessoa pelo mítico Hubert Bals, mas nunca exibido, porque não havia cópia legendada. De como, aliás, “O Império” teve sessão lotada, sold out, na linguagem universal dos vendedores de ingressos, de como o “Oh! Rebuceteio” do Claudio Cunha foi visto sem nenhum preconceito e com atenção pela platéia. E houve ainda, para muitos convidados, a felicidade e surpresa de descobrir, numa tacada, as muitas virtudes de “O Pornógrafo” do João Callegaro (Júlio Bressane entre eles), a radicalidade de “Orgia” do João Silvério Trevisan, a poesia do melhor Candeias, o de “A Margem”. Quase todas coisas desconhecidas fora do Brasil (e mesmo no Brasil).

Mas o que eu tenho de falar, primeiro, e infelizmente, é da viagem de volta.

Posso começar pela de ida, pela KLM, com suas sete horas de atraso. KLM que, talvez nem todo mundo saiba, hoje pertence à Air France. Quatro horas, primeiro, sob a alegação de que o avião teve de ser trocado em Amsterdã. Ok. Mas depois que todos já estavam dentro do avião, mais três horas de atraso, porque o comandante detectou um problema técnico que, caso não fosse resolvido, a gente ficaria em São Paulo mesmo.

Acabou que fomos.

Mas perto da volta isso parece brinquedo. Saí de Amsterdã num voo para Paris, de onde sairia o avião para o Brasil. Saiu. Com uns 20 minutos o comandante avisa que teremos de voltar por problema técnico. A isso se segue um monte de voltas perto de Charles De Gaulle, para jogar gasolina fora e um pouso bem pouco ortodoxo que, garanto, não se deveu a inabilidade do piloto.

Bem, para encurtar a história: voo no dia seguinte, no mesmo avião, prometido para 14h30. Saiu três horas depois, e não sou eu que vou acusar o comandante de frescura. O cara deve ter checado até a calibragem dos pneus, porque se o avião sai para uma viagem de 12 horas e o motor estoura em 20 minutos, não entendo nada disso, mas me parece que há algo preocupante no sistema de manutenção da companhia, não?

Ainda mais quando se recorda que essa companhia, ainda outro dia, teve um desastre horroroso, cuja culpa conseguiu jogar nos ombros do comandante, como se esse não conseguisse entender os comandos, e não como se os comandos tivessem se tornado ilegíveis.

Bem, a Air France é uma tradicional companhia e me parece incompreensível que esteja sendo sucateada dessa maneira. Será que eu tive azar?

Bem, de sorte eu não creio que dê para chamar isso, embora eu esteja aqui e isso não seja assim tão pouco.


Mas o passageiro francês que viajou, as duas vezes, ao meu lado, um simpático passageiro que eu quase chamo de engenheiro (mas não lhe perguntei a profissão), porque vem aqui com frequência trabalhar com energia eólica. Um cara que viaja tanto que viaja até sem bagagem, bem, ele me disse que é raro subir num avião da Air France e não dar algum atraso, algum galho assim.

Culpa da França inteira? Arrisco dizer que sim.

No meu voo, o original, havia um grupo de doze ou quinze homens visivelmente pobres, escoltados pela polícia. Os simpáticos garotos ao meu lado achavam que eram traficantes… O que a TV não faz a nossos cérebros (e à nossa informação)! É quase inacreditável, pois não eram meninos com jeito de tontos, não.

O que eu quero dizer é que a França que eu conheci, que eu amei, onde eu vivi, era uma terra de liberdade, um refúgio dos perseguidos, dos banidos etc. Hoje é a terra que manda imigrantes ilegais embora debaixo de escolta, que nem era a Inglaterra.

Para mim uma coisa vai junto com a outra. Não esticarei o assunto: mas vai até com certa decadência das Ciências Humanas na França atual e seu “fading” no sistema internacional de produção intelectual, onde passou de líder a satélite em uma ou duas gerações.

No mais, para a França restou um grupo de políticos absolutamente lamentável. Ah, é lamentável vê-los fazer uma declaração qualquer. A fascista do Front Nacional me parece, incrível, a única que sabe o que fala (mesmo que seja detestável). Enfim, quem reclama de Lula & Fernando Henrique não sabe o que está perdendo. Não mesmo.

Me pergunto se essas coisas da Air France não têm a ver com isso. Num daqueles hotéis suntuosos onde as companhias nos botam quando dá algum galho, hotéis onde passamos noites terríveis (o pijama foi despachado, entre outros), com cafés da manhã magníficos que simplesmente não se tem vontade nem de olhar, perguntei à moça do balcão se ela teria um comprimido para dor de cabeça.

Em vez de dizer que não ela se pôs a me alertar que eu devia ir ao médico, pois dor de cabeça podia sinalizar o risco de um problema vascular.

Bem, eu ouvi aquilo aturdido. Ela deve ter aprendido isso na televisão. Antigamente os franceses liam Montaigne na escola. Agora assistem os cretinos da TV a falar besteira. Então eu virei as costas, porque não ia lhe dizer que os médicos, eles justamente, recomendam aspirina contra o risco de problemas vasculares.

Bem, desculpem, isso foi longo e, suspeito, chato. Com esse ar final de sermão de igreja. Que fazer? Eu não me sentiria bem se não falasse disso, embora quisesse é dizer o quanto me agradou bem “O Som dos Outros”, do Kleber Mendonça. E ganhou o prêmio Fipresci, vulgo prêmio da crítica.

Voltarei também a ele. Mas, caramba, eu precisava falar dessas coisas. Entre outras coisas porque li aqui e ali coisas como “princípio de pânico” e aeromoças assustadas etc. Não sei. Não vi tudo. Onde eu estava (no poleiro, bem entendido), não houve pânico algum.

A simpática moça ao meu lado, aliás, que veio para o casamento de um parente em Curitiba, nem se deu conta da emergência, só depois do pouso eu lhe contei: ficou mergulhada no livro que lia.

Enfim, uma das razões que eu tenho para falar disso é que a tripulação, os comandantes em particular, me pareceram muito profissionais e competentes, enquanto a companhia me pareceu uma bagunça, cheia de não-ditos, de mistérios e, para resumir tudo, de informações erradas e/ou mentirosas (não me refiro nem ao incidente em si: às vezes é melhor que certas coisas não sejam mesmo ditas).

Mas tenho de dizer essas coisas porque, entre outras, a Air France conseguiu emplacar a idéia de que o avião que caiu por “erro humano”. Bem, tenho a impressão hoje de que erro humano, nas circunstâncias atuais, é subir em avião dessa empresa.

Desculpem dizer: todos lá foram muito gentis, na medida do possível, e todos se desculpavam o tempo todo. Não é isso. Mas o que mais se ouvia, do Oiapoque ao Chuí do avião era isso: Air France nunca mais.

Não conto isso porque, vingativo, gostasse de ver a empresa na falência. Nada disso. É lá que tem, ainda, de longe, a melhor seleção de filmes da aviação mundial. Mas, caramba, os caras estão pegando pesado.