“Habemus Papam” e o espetáculo papal
Inácio Araújo
É preciso ter passado anos e anos perto do Vaticano para investir seu imaginário com tanta precisão nesse que é o momento mais espetacular da Igreja Católica: a eleição de um novo papa.
É preciso ser um cineasta, também.
Tudo no Vaticano é uma questão de mise-en-scène, de criar um grande espetáculo, capaz de submeter os fiéis, de fazê-los se sentir pequenos diante da magnitude “divina” do que lhes é dado ver.
Ver e não ver, aliás.
Porque uma parte essencial do espetáculo papal é o que não vemos: tudo que ocorre antes que a fumaça branca apareça e anuncie que, enfim, existe um novo papa.
Ora, em “Habemus Papam” o que Nanni Moretti imagina é uma anomalia: o cardeal indicado aceita o papel, mas pouco depois é vítima do “trac”, essa espécie de pânico que por vezes toma conta dos atores antes de entrar em cena.
Mas o “trac” que vitima o cardeal não é de ordem psicológica, ou não apenas, ou não sobretudo psicológica. Trata-se de outra coisa: da necessidade, para cumprir suas funções, de compreender um mundo que, doravante, se mostra fechado à compreensão. Da percepção de que muita coisa precisa ser mudada no mundo (e a Igreja interfere nisso), mas não se sabe o quê.
Ainda quanto ao teatro, duas cenas fantásticas: uma, a da loucura do ator, que se põe a recitar todas as réplicas de uma peça. Aqui ele se parece muito com o cardeal, que nada tem de louco, mas percebe que sua função o obriga a dar todas as réplicas, representar todos os papéis ao mesmo tempo, ser um e ser todos. Outra, aquela em que o Teatro do Vaticano invade e toma um teatro e impõe seu espetáculo.
Um retorno forte de Nanni Moretti, este. O filme tem muito humor na parte, justamente, em que comparece como ator, fazendo um psicanalista. Mas o tratamento à crise do novo papa evita qualquer deboche: por mais anticlerical que um romano possa ser, não é hora para isso.