Rossellini em Bolonha (e Woody Allen em Roma)
Inácio Araújo
Para quem já não acreditava, para quem perdeu a fé, aqui vai: chegamos afinal aos filmes de Bolonha.
Desculpem pela demora. Não levo laptop em viagem. Dependo dos cybercafés, que hoje começam a se tornar raros. E o tempo era pouco: sempre aparecia alguma coisa entre os filmes e o texto: a cinefilia, os arquivos…
Quanto aos cybercafés, em Roma tinha um que era uma lavanderia! A lavanderia ficava atrás e na frente. Os computadores, num corredor, no meio. Não era lá que eu ia escrever sobre “Viagem à Itália”. Não dá.
Foi a comoção do ano em Bolonha. O único filme, à parte os da praça, onde havia mais gente para ver do que lugares. E o Arlequino é um cinemão, às antigas, grande, confortável.
Houve uma só projeção. E, ao final, um vale de lágrimas.
A história, conhece-se: casal em crise vai a Nápoles para resolver alguns problemas. Cada passo desdobra a crise. A mulher, Ingrid Bergman, se vê como alvo das flechadas britânicas, sutis e mortais, do marido, George Sanders. Ela parece se decompor a cada cena.
George Sanders se atira para toda garota que aparece. Alguma que já namorou. Outra que pretende namorar… Viaja a Capri enquanto Ingrid vê obras de arte e cemitérios. Tudo que ela vê remete à morte. Toda Nápoles dela parece feita para a morte.
Mas o que fez toda a plateia, a feminina mais ainda, chorar no fim do filme? Um milagre. Uma espécie de milagre é o que acontece, talvez?
Pode ser. Não vou contar o que se passa no final, em todo caso é bem especial. Mas o final não é destacável do conjunto, não é plantado ali: é um fecho, embora vá em direção contrária a tudo que estamos vendo.
É de uma compreensão profunda sobre o que sejam as mulheres, como sentem as coisas, como se veem no mundo. E os homens também.
Há uma coisa formidável que diz Jean Douchet a respeito de Rossellini e que permite compreender o que ele tem de tão especial e único: Rossellini é o único cineasta que filma o presente sem ter o futuro em vista.
Todo filme visa um futuro, tem o fim como seu Norte. Com Rossellini não funciona assim. Cada momento tem um em si. Não se projeta para o futuro. Sua existência se justifica em si.
Daí, talvez, RR ser um cineasta tão desconhecido. Nós, espectadores, talvez não saibamos desfrutar de cada cena. Queremos ver onde toda a coisa vai dar. Enquanto RR não se incomoda com isso, mesmo porque ele se entrega ao acaso, não sabe direito como tudo vai acabar, embora o fim decorra do que veio antes, é solidário, não é uma coisa que aparece do nada.
Isso que talvez tenha dado a José Lino Grunewald, certa vez, a impressão de que RR não conhece o ritmo do cinema: o ritmo que não conduz a um fim, o ritmo de cenas que, cada uma, se impõe sozinha, parece perda de ritmo.
A cópia apresentada era restauro digital. Notável. Penso que talvez notável até demais. Uma cópia sem imperfeição nenhuma. E o restauro digital de hoje, por melhor que seja, não substitui o celuloide, porque desconhece as oscilações da granulação. A regularidade é sua marca. Excessiva.
Mas não estou reclamando, não. Ficou lindo o filme.
Houve muitas outras coisas. De algumas vamos falando aos poucos, aqui.
Woody Allen
Para quem, como eu, chega via Roma, via Trastevere, “Para Roma com Amor” é meio decepcionante, ainda que Woody, em particular tenha momentos muito bons.
Mas o filme parece um guia turístico. Passa por todos os clichês romanos possíveis. Mente desbragadamente sobre alguns deles (a Fontana di Trevi vazia, só à espera dos namorados? Fala sério).
Faz clichês dos próprios clichês alleniescos (ah, a história da atriz que chega, da femme fatale despertando a sensualidade do cara… Dá pra dar um tempo, já).
Há também coisas assustadoras de tão bobas, como a história do Caruso de banheiro.
A articulação das histórias é frouxa, e parece que às vezes até Woody se enche delas. Eu não o censuraria por isso.
A parte do Benigni, sobre as celebridades, poderia ser um achado. Mas não se desenvolve bem, murcha, não dá muito em nada. E Benigni está bem.
No entanto, vejo defesas quase ferozes do filme.
E entendo. Quando a gente não tem nada para ver, um filme menor, bem menor, preguiçoso até, de Woody Allen parece uma obra-prima.
Mais do que isso, acho que Woody tem essa característica de fazer o espectador se sentir inteligente, esclarecido. Ele nos consola, afinal, deste mundo de celebridades.
Rossellini não consola, não faz a gente se sentir mais sabido ao ver o filme, nada. Não tem signos, tem coisas, pessoas se movendo, agindo, chorando. Apenas matéria. E essa materialidade do cinema parece que às vezes é quase monstruosa.