Na Estrada, aos tropeções
Inácio Araújo
Eis um filme onde não existe propriamente uma questão crítica. O problema é mais de tato.
É um projeto pelo qual a gente torce, embora eu não morra de amores pelo livro de Jack Kerouac.
E “Na Estrada” é um filme onde, de certa forma, não se economizaram riscos, desde que se leve em conta a caretice da produção atual. Os caras puxam fumo, roubam carro, se drogam, têm relações sexuais e há mesmo uma homossexual bem explícita. Coisa que se evita filmar hoje em dia, ou que se filma cheio de dedos e tal.
Há locações belíssimas (como no filme do Walter Salles sobre Guevara) e os atores estão muito bem dirigidos.
Ainda assim, não deu nada certo. Garanto. Nada.
Talvez o problema venha do livro (e talvez por isso ninguém o tenha filmado). Tenho dele uma vaga lembrança e nenhuma disposição para saber no que o filme foi fiel ou não. A vaga lembrança coincide em linhas gerais com o filme. O importante é que “On the Road” talvez não seja um grande livro, mas um livro de grande impacto, pelo que representou em termos de liberação nos anos 50 e para a geração beatnik em particular. A aproximação entre vida e literatura, vida e arte, é um dado essencial dessa geração, e o livro está mergulhado nisso.
Ao mesmo tempo, a trajetória de Sal era uma errância, um improviso jazzístico, um sair sem destino. Já o filme é uma adaptação literária, um filme de tema, de prestígio. Isso muda tudo. Percebe-se que existe ali um controle, um plano… É bem diferente, por exemplo, de quando Monte Hellman rodava “Corrida sem Fim”, para ficar num filme de estrada.
Mas me parece que o filme representativo dessa atitude de Sal é, no fim das contas, “Sem Destino”. Havia ali esse espírito libertário, a busca da estrada, a recusa da linha reta, tudo conectado com a guerra no Vietnã, que era outra circunstância, mas, que importa? A resposta foi um impacto correlato ao de “On the Road”, um sucesso, as pessoas viram e entenderam.
Em todo caso, esse ainda é o menor dos problemas do filme. Fiquei com a impressão de que ele empilha acontecimentos, eventualmente recheados de frases espirituosas ou de menções a personagens da geração, mas apenas empilha, entre uma estrada e outra. Isso não corresponde a um produto, é uma soma permanente onde coisas iguais se adicionam a coisas iguais: roubo, drogas, sexo, estrada, um guarda na estrada e depois mais do mesmo. Mudam as pessoas, mas tudo continua igual. O duplo emprego, no roteiro, é mais ou menos permanente.
De tal modo que, quando os caras resolvem ir para o México e aparece uma paisagem belíssima, cheia de cactos, eu me afundei na cadeira: não, não, chega de viajar, se estabelece, abre uma lojinha, um lava a jato, qualquer coisa.
Apesar do roteiro, tenho a impressão de que o academismo da mise-en-scène é o que há de mais decisivo nesse tipo de sentimento que o filme deixa. Ela não apenas não tem nada de inquieta. Ela é incapaz de criar uma cena memorável que seja. Sequência após sequência elas se alinham, sem hierarquia, sem relevo: parece uma fieira que vai se abrindo quase indiferente, aos nossos olhos. Se me pergunto: qual a experiência essencial de Sal ao longo do filme? E a do grupo? Não sei dizer. Todas se equivalem. Alguém dirá: mas no livro também (tenho um pouco essa lembrança da remota leitura), a experiência essencial são todas as experiências.
Ok, entendo o ponto de vista. Mas ele não ajuda nada a criar uma cena memorável, um momento insubstituível, marcante.
Nada disso. E, claro, estou dizendo tudo isso exclusivamente por mim, mas o que se pode dizer senão aquilo que se pôde ver e sentir ao longo da projeção e depois, refletindo sobre ela?
Por fim, Walter Salles. É curioso que este seja um filme proclamadamente sobre o autoconhecimento e nunca tenha sentido WS tão perdido em seu projeto cinematográfico. Ao sair do filme, e pensando no conjunto de seus filmes, não consigo imaginar o que ele quer: ora parece que busca entender o Brasil (“Central do Brasil”), ora parece que quer a glória mundial e Cannes, ora aspira à pessoalidade, ora ao sucesso… Talvez seja agora um momento para introspecção, para repassar o que tem sido seu trabalho e se ressituar nas coisas.