Ao redor do som
Inácio Araújo
Belo material na Folha, Ilustríssima, puxado por uma análise da Lucia Nagib. Há também uma reportagem alentada da Fernanda Mena, que situa bem as coisas (o filme, Pernambuco, o autor, etc.) e uma análise mais sociológica do Mauricio Puls.
Em uma palavra: o filme está vivo.
O mais interessante na visão a Lucia, me parece, é o detalhamento do espaço arquitetônico do filme.
Ele me parece de fato central. Há um enclausuramento dos personagens, só rompido pelo som, porque o som desconhece grades, essas coisas.
No mais, não é um filme que se passa em qualquer lugar, que podia se passar em um lugar outro, qualquer.
Ele tem uma precisão muito grande. É uma ''nova Recife'', nova rica, cheia de prédios que ele está observando.
De prédios horríveis.
Não consegui entender muito bem como a Lucia enfiou lá o Glauber e essas coisas. Como se houvesse uma necessidade de vincular tudo ao Glauber, ao cinema novo. Acho coisa de quem vive fora do Brasil.
Ainda na questão espacial me parece importante ver aqui um filme de deslocamentos.
Ò título do ensaio do Puls fala em fim do coronelismo.
Não estou convencido de que seja o caso.
As coisas se transformam, mas não há propriamente um fim.
Certo, o engenho é ao mesmo tempo um fantasma e um produtor de fantasmas.
Ao mesmo tempo ele é terreno na capital, terrenos que viram prédios, prédios que se vendem.
Daí a situação de deslocamento dos personagens. Um deslocamento geral, em que no entanto a permanência das relações hierárquicas é fundamental.
O rapaz, o corretor, o primo bom, que ao primeiro olhar parece apenas um condutor de história na verdade é o mais perverso produto dessa loucura escravagista.
Ele é o bom senhor de engenho, por um lado: o que presta atenção nos calçados dos seus servos.
Mas é também o cara das boas intenções: que defende a causa do porteiro que pretendem despedir, mas na hora H se manda para encontrar a namorada.
É um pouco como essas pessoas que reconhecem o quanto é necessário promover justiça social, mas, claro, desde que não saia um tostão do seu bolso.
No mais, um cara que estudou por sete anos na Alemanha, o que faz vendendo apartamento em Recife?
É sinhozinho.
Todos os demais personagens da família passam por esse tipo de deslocamento. Há entre eles mesmos, inclusive, isso, como o avô, velho senhor de engenho, que vai tomar banho de mar à noite ali onde estão os tubarões. Sem medo. Tubarão não tem medo de tubarão…
E o filho, o dono da casa, bem filho de senhor poderoso: fraco, impotente, incapaz.
E o primo, playboy, correlato urbano do avô, aquele que faz o que quer porque pode e fim.
E nesse deserto, deserto urbano de linhas retas, delimitantes, janelescas, existem no entanto os buracos secretos, as áreas de escape: ali onde a empregada vai transar em grande estilo em cama de patroa.
Quanto ao final: não sei se existe passagem, transformação. Reafirma-se o mundo nordestino da vendetta.
Algumas restrições que aparecem na reportagem da Fernanda me parecem descabidas. Alguém quer tirar 20 minutos do filme. Como dizia o Truffaut: que tire do seu. Por que não manda tirar 100 páginas do romance do Dostoiévski? Para com isso…
E alguém fala de interpretações abúlicas… Alguém responde brechtiano… Isso não entendo. Nem uma coisa nem outra. Não vi isso. Apenas não há essa febre de interpretação psicológica, tipo Greta Garbo anos 30 (século: XX). E se fala de desencontro de gerações… Não. Esse filme não é um fenômeno isolado. Há um trabalho pernambucano que precisa ser observado e mesmo imitado.
Espero que do ''Eles Voltam'' se volte a falar tanto quanto desse, a conversar, a discutir.
Ah, para não dizer que esqueci: o Calil diz que precisa de 100 mil espectadores para existir no mercado. Mas o que vem a ser existir ''no mercado''?
Há que dar uma clareada nesse tipo de coisa, senão fica muito vaga.
Ah, claro, há muito mais coisa lá. Fora os filmes que vão entrando. Fora a nova lei dos motoboys. E o papa…
Eu sou um só e hoje domingo.