Muitas coisas (tolas) a dizer
Inácio Araújo
1. De uma vez por todas, estou ficando velho.
Chego ao cinema para ver um filme iníquo e o porteiro me indica a fila da “melhor idade”. Ali, umas cadeiras enfileiradas e nenhum velho, que os velhos são sábios, fora eu, e nenhum se dispôs a ver “De Pernas para o Ar” (será preciso voltar a ele).
Devia haver algum limite legal para o uso de eufemismos. “Melhor idade” já não é delicadeza, parece ironia. Melhor em quê?, tive vontade de perguntar ao rapaz. Só o pessimista deve achar melhor, porque está mais perto do túmulo.
“Terceira idade” já estava ok. Pelo menos não tem esses horríveis juízos de valor que carregam velho ou melhor idade.
2. “De Pernas para o Ar” muda mais ou menos todos os critérios de valor cinematográficos conhecidos. Perto dele, “O Divã” é um Shakespeare, “A Mulher Invisível”, a Pietà.
3. Mas, não há dúvida, de um lado, de outro, está lançado um novo cinema popular brasileiro. Pornográfico ou espírita, tanto faz.
4. Cresce o público dos cinemas, conforme a nota que chega do Sindicato dos Distribuidores do Rio de Janeiro, via João Beltrão.
O público total passa dos 137 milhões de espectadores, aumento de 22% em relação a 2009, que por sua vez já tinha crescido 25% em relação a 2008.
Considerando que o aumento do número de salas foi de apenas 6%, o crescimento do público é real, realíssimo. Jorge Peregrino, presidente do sindicato, sustenta que estamos num momento propício ao surgimento de novas salas. Me parece inevitável o raciocínio.
5. Quanto a nós, os filmes brasileiros: saltaram de 10% em 2008 a 19% em 2010.
Pode ser que não seja episódico, isso. Parece que descobrimos a fórmula do blockbuster: lançar grande com anúncio a toda hora na Globo, de preferência filmes execráveis.
Que importa? O gosto do público foi mesmo arrasado pela televisão. A pior das pornochanchadas dos anos 70/80 tinha mais dignidade do que “De Pernas para o Ar”.
Talvez seja possível ir melhorando, aos poucos, distinguindo TV de cinema… Enfim, se não houver um pouco de esperança o que sei vai fazer?
6. A propósito, a Globo anuncia “O Bem Amado” em minissérie, com 25 minutos a mais que o filme original. Como se o que se via não fosse suficiente. Cinecirco.
7. No cinema, o anúncio da CBN: “O Brasil tem a oitava economia do mundo. Mas nenhum aeroporto entre os melhores do mundo. Pense nisso.”
Por que eu deveria pensar? Por que a CBN manda? Até onde eu consigo perceber, a CBN é muito boa para lamber as botas do Kassab.
Por que deveríamos ter um dos 100 melhores aeroportos do mundo? Que importância tão grande isso tem? Posso pensar em mil outras coisas, sempre sem o auxílio da CBN. No pior calçamento do mundo, que é aqui em São Paulo. Posso pensar que aqui é a única grande cidade do mundo com fios elétricos passando sobre as nossas cabeças (quem me lembra disso é Vladimir Safatle, numa sala da TV Cultura). Em suma, posso pensar em mil coisas, se a CBN não atrapalhar já está bom.
Porque às vezes é profundo demais. Não consigo acompanhar. Caso deste outro anúncio da CBN, este no rádio, tem uma mulher dizendo que as ditaduras nos dão o direito de ser iguais, só a democracia nos dá o direito de ser diferentes. Não entendi onde ela quer chegar com isso. Igual a quê? Diferente do quê? Não compreendo. Olho para cima, para baixo, em cada lugar o Big Brother (não o programa de TV) me espreita. A vida é toda vigiada. Não carregar o RG é crime quase tão grave quanto assassinato. Diferente do quê? De quem?
8. Uma parte do Rio desabou horrivelmente. O resgate começou de imediato, junto com a caça aos culpados. O “poder público”, como se diz. A inteligência mesmo sobre o assunto veio de Janio de Freitas, como de hábito. Não me lembro mais se é fato ou é lenda que o Paulo Martins do “Terra em Transe” foi inspirado por ele. Mas devia ser. O que ele disse? Falou do “nosso consenso de 500 anos”.
Nosso consenso: os pobres que se virem. Não tem lugar pra eles. Tinham que morrer. Que ocupem as encostas no Rio. Que ocupem as várzeas em SP. E, sobretudo, que não nos aborreçam.
Mas, de repente, vem tudo abaixo. E eles nos lembram que existem. Ou que existiram. Então é preciso achar um culpado. O governador foi alertado. O prefeito não tirou ninguém de casa. O presidente não deu verbas. Etc. Bem: chega lá e tenta tirar alguém de sua casa pra ver o que é bom. Não é essa a questão. A questão é o consenso. 500 anos de consenso.
Imagine que o povo de Higienópolis não quer uma estação de Metrô porque não quer pobre chegando de trem, às pencas, por lá. É fantástico. Pobre que venha andando, se precisar vir da Vila Brasilândia até Higienópolis. Ah, mas daí o trânsito fica ruim. Culpa do prefeito, do governador, do presidente…
E o povo de Higienópolis e dos Jardins culpa os pobres que estragam suas praias do Litoral Norte porque atiram o esgoto na água. Sim, os pobres. Porque o esgoto os ricos, aparentemente, não polui o mar. Não lhes passa pela cabeça que a ocupação da praia foi feita sem nenhum planejamento urbano, pensando apenas na possibilidade de expropriar as terras e casas dos caiçaras a preços vis. Culpa desse, daquele, daquele outro.
9. E o Belas Artes? Vai se safando com esse tombamento, que é meio fajuto, mas pode atrapalhar a vida de quem pretendia fazer uma loja ali durante anos.
Francamente, não entendo essa choradeira toda. Vou lá de vez em quando, tudo bem. Mas não tem mais Riviera na frente, nem muito menos Ponto 4, não tem Bernardo Vorobow, nem os amigos. Nem ao menos aqueles letreiros bonitos na porta do cinema. Foram asseptizados pela “cidade limpa” (sim, parece gozação o nome da lei: a cidade é porca, todo mundo sabe). Mas é bom que continue a existir. Antes assim. E o movimento em torno é, pelo menos, um movimento. O que as pessoas reivindicam de verdade? Que seu passado seja preservado? Que nossos pontos de referência não se percam com tanta facilidade? Apoiado.
10. Ah, sim, onde quer que você ande tentam te tapear. É muito cansativo. Fui comprar um carro que o meu está ficando velho. Um Citroen C3, que nem o antigo. Fui lá porque a Citroen era o único lugar em que os vendedores não insultavam a tua inteligência (lembrança do final do “Poderoso Chefão”).
Agora insultam, e como. A porta não bate direito. Tem que bater forte. O cara me explica que é porque a borracha é nova. Então você pergunta: mas como em todos os outros carros novos do mundo isso não acontece? Não adianta: ele inventa uma desculpa qualquer. A vendedora agora é como as de todos os outros carros: quer que a gente resolva o problema dela, como se isso fosse minha função ao comprar o carro. Pede que assinale, num questionário, que o serviço foi ótimo, excelente, extraordinário, “senão os meninos perdem a cesta básica”. Eu boto lá: ótimo, ótimo. Uma pinóia. Serviço vagabundo, tendência quase irreprimível a tratar o comprador como idiota. O espírito de arapuca triunfa.
11. Desculpe, mas há pouco a falar de cinema. Fico pensando em outras coisas. Há o Apitchtapong, é verdade. Não sou fanático, mas acho que é pra ver. É respeitável. Voltaremos a ele.
12. Jean-Thomas, da Imovision, do Reserva Cultural, protesta contra a prisão de cineastas iranianos. Não adianta nada. Ou antes, adianta tanto quanto o protesto que eu fiz. Os caras não estão nem aí. Quanto ao Jean-Thomas, francamente, Jean-Thomas, você acha que eu te odeio? Você disse isso à nossa amiga Flávia? Só porque eu reclamei que você não trouxe o “Bellamy”? Mas a quem eu ia reclamar? À Warner? À Paris? Mas você tem crédito: o Godard, o Kiarostami, o Coppola, o Bellocchio… De todo modo, não te odeio, longe disso, exceto pelos doces que tem na lanchonete do cinema e que, se eu comer como quero, vão me deixar com uma tonelada.
13. E, olha, não voltaremos ao “De Pernas pro Ar”, não, que tudo tem limite nessa vida. O cara não sabe enquadrar, não sabe dirigir atores, pede o pior do fotógrafo. Não dá pé.