Entrevista Marcelo Lordello
Inácio Araújo
Às vezes acontecem surpresas boas. Conhecer “Eles Voltam”, o filme de Marcelo Lordello, no Festival de Tiradentes de 2012 foi uma delas: um filme de estréia com um olhar original, consciência perfeita do que espera dar com o cinema, rigor, originalidade…
Mas já não tinha esperança de que ele seria distribuído, com as telas reservadas, quase todas, ao cinema conformista (quando não incompetente).
A segunda surpresa boa foi saber que o filme seria distribuído. Pela Vitrine Filmes, que é uma das coisas importantes que aconteceram também.
A terceira foi esta entrevista, onde Lordello se detém com muita lucidez no próprio trabalho, mas também fala do cinema em geral e dos colegas pernambucanos.
Ao contrário do que muita gente pensou, aquele post com o título “Pirocas ao Vento” não era o último. E foi apenas impressão de que “o Inácio está chutando o pau da barraca”, como se falou. Não, quem viu o filme sabe que aquele era um título realista para o belo filme “Um Estranho no Lago”.
Esta aqui, sim, é a última postagem que faço para o UOL, do qual me despeço com lembranças muito boas. A entrevista é longa, espero que dê tempo para todo mundo ler tranquilamente.
Feliz 2014 e vamos lá.
1. Seu filme foi concebido originalmente como um curta-metragem. Quando você sentiu que seria mais conveniente ampliá-lo?
Quando entendi que o roteiro do curta não representava mais quem eu era no momento que pude realizá-lo. Eles Voltam inicialmente foi um roteiro que escrevi em 2006. Basicamente o curta seria o prólogo do longa-metragem que o filme se tornou, mas com algumas diferenças. Os protagonistas do curta seriam ambos homens e o filme seria sobre como esses pré-adolescentes lidam com o abandono, a solidão, a sobrevivência e uma compreensão nascente de autonomia. Ganhei um prêmio de realização pelo roteiro, mas demorei 3 anos para realizá-lo. Nesse ínterim muita coisa aconteceu. Fiz outros filmes que ampliaram minha visão sobre cinema e minha vontade de pesquisa de linguagem e temática. Me casei, tive um filho. Vivi. Quando retomei o roteiro do curta, sentia que ele não me representava mais. Me coloquei num desafio de reescrevê-lo para ver no que dava. Em pouco tempo tinha um calhamaço de quase 110 páginas, que precisava passar por uma pesquisa in loco para poder se sustentar como roteiro de um longa-metragem.
2. Os tempos longos do filme nos ajudam a desenvolver hipóteses e mesmo estabelecer uma ligação com o filme. Detestamos os pais por desaparecem, em certo momento. Depois, detestamos o irmão, que também desaparece. Da mesma forma, o menino de bicicleta, que parece ameaçador no primeiro momento depois se mostra diferentemente. Como você pensou nessa organização dos sentimentos do espectador, que afinal é o que cria vínculos com o filme?
Sempre acreditei muito na força do tempo/duração do cinema. Me alegra muito ver filmes de cineastas que sabem nos conduzir temporalmente suas imagens e criar vínculos entre o espectador e seu universo particular. Um ato de “esculpir o tempo” para que possamos senti-lo, valorizá-lo e nos abrirmos pra ele. Quase um ato político de nós, que trabalhamos com o tempo, num mundo em que a duração e a sensação do tempo é por demais negligenciada. Sabia que era importante criar esse elo entre a experiência de Cris e o público. E o que basicamente ela vivencia durante toda sua jornada é compartilhar momentos com outras pessoas, em fugidios mas representativos encontros. Os filmes de Ozu, entre outros, me ensinaram muito sobre isso.
3. Ao mesmo tempo, não chegamos a sentir na menina, mesmo quando passa a noite sozinha, uma sensação de desamparo. É como se ela estivesse entregue à situação. No entanto, parece haver ali uma opção sua por evitar a todo custo uma, digamos, solidariedade excessiva com a garota.
Acho que dois pontos foram importantes quando intuitivamente pensava o filme enquanto o fazia. Pra mim Eles Voltam tem um caráter narrativo fabular. O filme nada mais é que a história de um ser em formação despreparado para o mundo que surge em sua frente. Ela passa por esse desafio enorme de ter que sobreviver enquanto volta pra casa. Cabe a ela tirar proveito dessa situação ou ficar estagnada, sofrendo e esperando, sem perceber a potência do mundo que a convida a se jogar nele. Optei pelo primeiro caminho. Nunca quis fazer um filme que apelasse melodramaticamente para a situação de abandono daquela garota, achando que ali criaria um vínculo com o público. Acho que se esse vínculo surge entre Cris e o público no decorrer do filme, é porque ambos compartilham a mesma vontade interiorizada de se arriscar e buscar sua própria jor nada.
4. A menina, sobretudo ela, executa um percurso para chegar a si mesma. A idéia de uma grande aventura. É um caminho de Ulisses, de “The Searchers”, de certa forma. Você pensou em uma aventura que, além de física fosse espiritual?
A Odisséia, de Ulisses, foi uma referência muito forte quando escrevi o roteiro do longa-metragem. Por trabalhar com um cinema calcado também na narrativa, acaba sendo natural que os livros que li surjam de alguma forma nos roteiros que escrevo. E gosto também de pensar estruturalmente os meus filmes baseados em formas/gêneros narrativos presentes em obras que li durante minha vida. Sobre esse lado espiritual, acho que se ele existe (isso vai da interpretação de cada um) ele é consequência de algumas escolhas da forma de realização do filme. Quando revejo o filme (e aqui te falo enquanto público do próprio filme, que pra mim só aconteceu meses depois de ele ter sido parido) em alguns momentos sinto uma energia que excede qualquer tipo de concepção criativa ou intenção racional do filme. Descubro coisas nele que me surpreendem . E acho que isso se deve ao fato dele ter sido quase todo interpretado por atores não profissionais. Pessoas das realidades que o filme tenta representar, que colaboraram e muito com o filme, encenando e expondo corpos, falas, gestos, histórias, vivências na construção de seus personagens e de Eles Voltam. E essa energia, que disse há pouco, aparece pra mim justamente nas cenas dos encontros que o filme propiciou pras personagens/pessoas. Um tipo de sinceridade.
5. O que é a família? O que é a vida familiar? Esse conjunto de silêncios e afetos, em que medida fez parte das tuas preocupações no filme?
A família é uma instituição que permeia todo o filme. Os pais que somem, o irmão que foge, as famílias que acolhem Cris, a família renegada ou hiperprotetora. Pra mim o ambiente familiar é um ambiente formador do ser humano, com seus prós e contras. Digo “contras” porque é natural na nossa trajetória querermos expandir ou nos libertar de determinadas amarras familiares: preconceitos, limitações, imposições, agressões ou proteções. Mas o que me interessa também é o paradoxo relacionado com o conceito de amor dentro da família. Um amor que cria, que educa, mas que às vezes quer ter pra si e não permite o pleno desenvolvimento do outro e sua autonomia, como é o caso de Cris. E que às vezes não percebe o mal que faz, a partir dos seus equívocos e erros, camuflados de amor.
6. Ao mesmo tempo, a família é um grupo perverso. Ela fecha as pessoas em si mesmas, num círculo restrito. Os pais, sem querer naturalmente, ofereceram à menina (sobretudo) a oportunidade de se abrir para o mundo. Até que ponto você considera isso necessário?
Acho essencial darmos oportunidade aos nossos filhos de se jogarem no mundo. Descobri-lo descobrindo-se. O ideal é que sejamos responsáveis, no que podemos ser e fazer, com a formação de nossos filhos, prepará-los. Mas o ideal não existe e eles sempre vão descobrir o mundo ainda incompletos. Isso é fato. Eles vão quebrar a cara, vão sofrer, vão errar. E é assim mesmo, isso é a vida. Foi assim comigo e acho que com você. É o risco de viver. Minha mãe sempre repetiu: “Criei os meus filhos pro mundo”. Acho que tive sorte. Mas um complicador deste ato de desprendimento é o medo. Medo que sempre acompanhou a humanidade e vai sempre estar presente. No caso do Brasil esse medo está relacionado à violência. Pais temem que os filhos sejam assaltados, agredidos, violentados, assassinados por Outros. Que não voltem pra casa. O que o filme propõe a esse público que teme é começar a entender as razões desse medo e que contrastes sociais são esses que em certo ponto criam essas tensões sociais. Começar a entender essa Alteridade através desse painel pincelado com tintas sutis sobre o Brasil que o filme propõe. E como Cris se mobiliza pra temer menos, entender mais e agir sobre esse mundo. E era óbvio que tinha que dedicar o filme ao meu filho, Joaquim. Que mesmo pequenininho já tinha me feito pensar e refletir tanto sobre isso tudo.
7. Algumas perguntas de cinema: os filmes que chegam de Pernambuco parecem feitos com pouco dinheiro e muita solidariedade. Parece que dá para ouvir vozes atrás de você dizendo “vai fundo”, “arrisca o plano longo”, “aposta no rosto da menina, no jeito dela”, “foge das convenções”, essas coisas… Será que isso é só uma impressão minha?
Ajudei muitas pessoas daqui a fazerem seus filmes sem concessões. Criando junto com elas. E fui ajudado por uma infinidade de amigos a fazer o Eles Voltam. Sem eles o filme estaria ainda na minha cabeça. Acho que o que rola aqui, e já está rolando há um bom tempo (desde de Claudião, Kleber, Lírio, Paulo, Hilton, Gomes e outros tantos) é uma vontade de fazer cinema, sem amarras, se arriscando mesmo, e sem dever nada a ninguém. Principalmente as expectativas de mercado, público e lucro. Um cinema que acaba respeitando o público.
8. Quando você filma pensa em algum modelo? Tipo: “vou filmar como Hitchcock”, “vou fazer parecido com Kiarostami?”
Não. Sou cinéfilo desde que me conheço por gente. Quantas vezes não ouvi: “Sai da frente dessa TV e vai brincar, menino.” Rato de locadora, Marcelo Cineminha eram alguns dos meus apelidos. Vi tanta coisa (mas tão poucas ainda), descobri tantos autores que se arriscavam em suas formas de fazer cinema que acho que acabei incorporando esse desejo de descobrir que forma se adequa melhor ao tipo de filme que estou me propondo a fazer. Acho que existe um estilo particular de cada autor. Mas esse tal estilo é fruto da vontade de descobrir as potencialidades da linguagem do cinema e da descoberta de como essa linguagem consegue interpretar em imagens e sons pra aquilo que você quer expor na tela. Quando faço meus filmes vou pelo caminho mais difícil: da intuição, advinda da bagagem dos filmes que vi, optando por formas que sejam as mais sinceras possíveis àquilo que realizo.
9. A propósito, quais seriam os cineastas de quem você se sente mais próximo? De repente penso que os cineastas do suspense te atraem, como Hitchcock, Ozu, Kiarostami. Por exemplo, é bem forte a maneira como você introduz um desastre automobilístico via TV e nos leva à suspeita de que talvez algo mais sério tenha acontecido aos pais…
Hitchcock, Ozu, Kiarostami me agradam muito. Estão realmente entre meus favoritos. Mas lembro que pra Eles Voltam também revi muito Orlando Senna, Bresson, Truffaut, Rossellini, Hsiao-hsien Hou, Naomi Kawase, entre outros…
10. E os cineastas de certa espiritualidade? Te marcam? Penso nesses que citei, mas também em Dreyer, Rossellini… Quero dizer, o percurso dessa menina me lembra filmes desses autores. Há uma espécie de milagre em tudo isso.
Engraçado que durante a primeira conversa com Caçapa, o compositor da Trilha Original do filme, logo depois dele ter visto um dos cortes do filme, ele me falou muito de Rossellini. Que via Rossellini ali. Achei estranho. Rossellini, pô…um tremendo de um elogio!!! Corei. Primeiro pensei que ele falava dos filmes do pós guerra e da maneira que o Neo realismo soube retratar a realidade local da Itália com as ferramentas e métodos que tinha. Aí parei pra pensar nos filmes que vi dele. Lembrei de Alemana Ano Zero, e aquele menino galego a deriva naquela cidade destruída, e lembrei principalmente dos filmes que Rossellini fez com Ingrid Bergman: Stromboli, Europa ’51 e Viagem à Itália. Aí pensei comigo mesmo: ”é realmente tem alguma coisa aí. A mulher e sua jornada de compreensão do mundo.” Acho que isso tem a ver com essa tal espiritualidade que o Eles Voltam carrega. Mas acho também que isso corrobora o que falei anteriormente sobre a cinefilia e a mistura de referências que gestam algo novo e antigo ao mesmo tempo. Infelizmente nunca vi muito Dreyer. Tá aí um cara que preciso conhecer…
11. Claro que existe também um conhecimento do outro, e esse outro é pobre, vive à margem da estrada. Gostaria que você falasse do contato com esse povo, aliás, como você os viu e como eles te viram.
Viram-me da forma mais natural possível. Acho que só estranharam esse “doidinho” perguntar tanto sobre a história de vida deles, das coisas do lugar em que eles vivem e ainda por cima convidá-los pra fazer um filme. A questão da abertura dos colaboradores pelo filme está intimamente relacionada com a forma de aproximação que eu e minha equipe tivemos com eles. Todo o processo de Eles Voltam foi o mais simples possível. Fizemos um filme independente, de orçamento baixíssimo, com uma equipe reduzida e, acima de tudo, com uma vontade de entrar “nas casas alheias” da forma mais respeitosa possível. Acho que por isso que o assentamento Chico Mendes, Gercina, Dona Mara, os avôs de Mallu, nos recebiam tão bem quando íamos filmar em suas casas e nos “dengavam” tanto. E a forma como vi eles faz parte do filme que fiz com eles .
12. Da primeira vez que vi o filme fiquei com a impressão de que algo faltava ali, o percurso do menino, porque e como ele desaparece etc. E você disse que era uma história tão complexa que era melhor nem mencionar. Hoje estou mais convencido de que você estava certo, mas ficou a curiosidade: o que houve afinal com o menino para ele desaparecer como desapareceu.
Acho que Peu, o irmão, descobriu sua forma de voltar pra casa. Mas como a energia dele, que tem a ver com a maneira como age e está construindo sua afirmação masculina, fizeram que o caminho dele fosse mais pedregoso. Lembro que escrevi algumas anotações sobre a trajetória do irmão e o que aconteceria na jornada dele depois do final do filme, mas isso é outro filme. Assim como Elayne, Jennifer, Pri e Geórgia e suas jornadas particulares dão outros tantos filmes.
13. Como você trabalhou a direção de atores, especialmente da menina? Como eles se prepararam para o filme?
Quando estava escrevendo o roteiro do longa-metragem, mudei o personagem principal para uma menina. Isso tinha a ver com o tipo de filme feminino e de encontros que queria fazer. E aí vieram outros tantos personagens femininos. Acho que isso tem a ver também de me colocar numa posição de ter que lidar com uma relação de Alteridade de gênero, tinha me colocado num desafio de ter que entender mais o universo feminino. Outra coisa foi que sempre quis que Eles Voltam fosse interpretado por atores não profissionais. Iracema, uma Transa Amazônica, filmaço doOrlando Senna e do Jorge Bodanzky e Os Incompreendidos, de Truffaut, me deram muita confiança nesse caminho. Mas a chave virou mesmo quando conheci Mallu. Foi ali que tive certeza de todas essas vontades, por que encontrei nela a encarnação disso tudo e a confiança de que mesmo sem experiência anterior ela seguraria a onda.
Mas pra tanto eu também precisava da força de uma profissional que me ajudasse a preparar esse elenco e que fosse uma mulher pra intermediar questões do feminino que fossem surgindo no caminho. Convidei Amanda Gabriel, atriz e preparadora de elenco de Recife, com quem já tinha trabalhado em outros filmes e fizemos um trabalho intenso com o elenco. Leitura de texto, adequação de falas e conteúdos para que soassem mais sinceros, jogos e atividades para deixar o elenco mais a vontade, ensaio, ensaio e ensaio. Descobrimos as particularidades dos talentos de cada um, seus pontos fortes e fracos e trabalhamos muito com eles. Lembro que Amanda falava muito que o mais importante do elenco de Eles Voltam era a vontade de todos em fazerem o filme acontecer e a inteligência e perspicácia de todos que havíamos convidado para colaborar com o filme. Foi um processo de aprendizado pra mim que não tenho muita formação de trabalho com atores ou estou começando a fazer filmes de ficção narrativos, que sempre demandam um trabalho profundo com o ator.
14. Qual o tempo de filmagem? Qual o orçamento? Quais as fontes de financiamento do filme?
Filmamos quase um mês e meio entre janeiro e fevereiro de 2010. Mas como o filme foi feito na raça com equipe reduzida e dependente de muitos apoios, algumas locações foram negadas ou o tempo de filmagem foi muito curto. Sobraram umas 4 sequências, que foram filmadas no decorrer de 2010. Tínhamos um grande problema: o dinheiro tinha acabado e Mallu estava crescendo a olhos vistos. Mas “aos trancos e barrancos” a gente conseguiu filmar tudo.
O orçamento total foi de quase 400 mil reais. 50 mil pra produção (prêmio do roteiro do curta – Firmo Neto/Ary Severo da Prefeitura do Recife, 180mil pra finalização e 180 mil pra distribuição (ambos através do Edital do Audiovisual FUNDARPE do Governo de Pernambuco)
15. Você, como o Kleber Mendonça, participam de uma, digamos, nova geração de cineastas pernambucanos. Como se sentem diante do grupo dos mais antigos? Existe solidariedade entre vocês? Existem diferenças que os separam ou algo assim?
Sinto-me muito a vontade em trabalhar e produzir num Estado cheio de gente em busca de um cinema tão autoral e afim de se arriscar e ser sincero na tela. Conheci Cláudio e Lírio mais a fundo há pouco tempo. Tive conversas bem interessantes sobre as experiências deles no cinema enquanto trabalhávamos numa pesquisa de um projeto novo dos dois. Hilton e Gomes já conheço há mais tempo, e os ajudei um pouco numa fase inicial de projeto deles. Trabalho mais com meus amigos e sócios da Trincheira, Leonardo Lacca e Tião (temos 3 longas quase prontos pra lançar em 2014). O clima por aqui é de entusiasmo quando sabemos que todos estão de alguma forma conseguindo fazer seus filmes, como Pedroso, Mascaro ou Daniel Aragão. Torcemos uns pelos outros. Às vezes rolam convites pra ajudarmos uns aos outros em filmagens, pra vermos e opinar nos filmes dos outros em fase de montagem, mas isso depende muito de como se montam as equipes e os tipos de afinidades entre os realizadores.