Blog do Inácio Araújo

Arquivo : January 2011

Filmes que ninguém compreende
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Inácio Araújo

Não sei como alguém pode enxergar tanta coisa no filmeco de Apichtapong. Fiz a besteira de assisti-lo e não aguentei ficar até o fim. E olhe que entrei “na ponta dos pés”. Por que será que é tão difícil para um crítico de cinema dizer que um filme ruim, de um diretor renomado, é apenas um filme ruim? Nota-se um certo mal-estar em Inácio Araújo ao dizer que não é fanático pelo diretor e que é difícil dizer se esse filme mereceu a Palma de Ouro. Difícil por que? Falar de animais, pássaros e macacos-fantasmas ao invés de dizer o óbvio? Ora, tenha paciência! O filme de Apichtapong lembra os de um outro embuste chamado Abbas Kiarostami, um diretor chatíssimo mas com fama de “profundo”. E depois ainda falam mal do cinemão de Hollywood…

Começo por esse comentário, feito recentemente. Não importa quem o fez. Retrata uma atitude muito freqüente no espectador eu diria deste século.

Não sei como alguém pode enxergar tanta coisa no filmeco de Apichtapong.

Ou seja: só o que eu vejo pode ser visto. Sou o centro do mundo. Qualquer entendimento que não o meu é falso ou de má-fé.

Eu queria dizer que, no caso do cinema, esse “euísmo”, para usar o termo de Celine a respeito dos artistas, essa atitude não é assim tão pessoal: ela foi cuidadosamente construída como um antiintelectualismo fim de século, que confere ao sujeito a ilusão de que só o imediatamente compreensível a seus olhos pode ser apreciado.

Nota-se um certo mal-estar em Inácio Araújo ao dizer que não é fanático pelo diretor e que é difícil dizer se esse filme mereceu a Palma de Ouro. Difícil por que? Falar de animais, pássaros e macacos-fantasmas ao invés de dizer o óbvio? Ora, tenha paciência.

Que mal estar? Com a mesma presteza com que despacha um filme ele entende que pode, no seu absolutismo personalista, me atribuir estados de espírito. Ora, o que eu disse é cristalino e não vou nem explicar. Está lá. O misterioso, o incompreensível, no caso, é a frase seguinte: “falar de animais, pássaros e macacos-fantasmas ao invés de dizer o óbvio?”. Ok. O que é óbvio? Por que não se pode falar de pássaros ou animais? Existe alguma lei proibindo? E o que há de errado com macacos-fantasmas? Centenas de filmes nos trazem fantasmas, por que por uma vez eles não poderiam ser macacos? O que tem contra macacos?

E será que a Fera de “A Bela e a Fera” é tão diferente desse macaco? E será que o ogro do Shrek é também incompreensível? Ou será que ele “diz o óbvio”? Ah, será que ele é “apenas” uma fantasia? Ok. Mas porque o macaco-fantasma não pode ser? Por que pode haver aparições em “Além da Vida”, digamos, mas não aqui? Um é “óbvio” e o outro não? Bem, nesse caso, será “óbvio” o que acontece em “A Origem”, por exemplo, tido e havido como o fenômeno intelectual do século pelos adeptos do “dizer o óbvio”. Que dizer de pessoas que entram e saem de sonhos como se sonhos fossem um supermercado? É “óbvio”? É mais compreensível do que um macaco-fantasma, por exemplo?

O filme de Apichtapong lembra os de um outro embuste chamado Abbas Kiarostami, um diretor chatíssimo mas com fama de “profundo”. E depois ainda falam mal do cinemão de Hollywood…

Passemos pelo fato de que Apichtapong não tem nada a ver com Kiarostami. O passo seguinte dessa operação consiste em dizer: se eu não entendo esse objeto absurdo colocado à minha frente, mais ninguém entende. Não é que me faltam elementos para entendê-lo. É que ele só pode ser “um embuste”. Como o cara que diante do quadro abstrato recusa-se a compreender que ali exista algum tipo de raciocínio, de continuidade. Ele diz: o meu filho faz igual.

O passo seguinte dessa operação mental consiste atribuir falsidade ao outro, ao leitor que eventualmente sinta prazer diante desse objeto incompreensível, tortuoso, portanto monstruoso, que deve ser objeto de destruição, não de entendimento – já que embustes só podem ser entendidos como tal. É como dizer: se eu não senti prazer diante disso, ninguém sentiu. Quem diz que sentiu está, claro, mentindo. O Inácio mente, está constrangido de dizer isso ou aquilo, etc.

Aí entramos num mundo conspiratório que envolve o festival de Cannes, o júri de Cannes, o distribuidor do filme, os críticos e espectadores que gostaram do filme. Eles formam uma corrente de pedantes que, como numa conspiração, parecem trocar senhas, sinais secretos, apenas para desorientar o gosto pelo “óbvio”. Óbvio que nem é tão óbvio assim, como a gente viu no caso de “A Origem”. Ou que pode ver no caso de “Benjamin Button”: o que há de óbvio em alguém nascer centenário e morrer nenê? Ou em… Enfim, talvez o mundo não seja tão óbvio assim.

Faltava a palavra inevitável: chatíssimo. Essa espécie de condenação à morte simbólica. Há duas maneiras de um filme ser chato: ou porque nós não o compreendemos ou porque o compreendemos demais. Talvez o nosso amigo do óbvio se divirta à beça vendo, digamos, “De Pernas para o Ar”. Lhe parecerá perfeitamente compreensível que uma mulher frígida descubra a sexualidade não fazendo psicanálise ou procurando um outro parceiro (o marido a abandonara, no mais): parece perfeitamente óbvio que ela descubra a sexualidade com um vibrador, que se sinta realizada abraçando um coelho movido a pilha etc. Isso lhe parece compreensível, assim como os de “A Origem”, até porque são filmes que vêm com bula, sobretudo o segundo, isso é, com essas explicações prévias que os estúdios destilam pela mídia.

E para esses leitores o único conhecimento aceitável é o das bulas de remédio. E, como se trata de fenômenos de conhecimento, é bem mais fácil imaginar que não existe desconhecido, que não existem campos a desbravar. Apenas o óbvio. O mundo já está decifrado. Quem não professa o óbvio é, obviamente, um impostor. O quê? Freud com o inconsciente? Um impostor. Picasso? Não sabia pintar, era um idiota, por isso pintava tudo torto. Godard? Nem se fala. Esse é tão óbvio que é melhor nem falar. Beckett? Como não sabia desenvolver histórias, inventava essas coisas que não vão nem pra frente nem pra trás. E todos esses, claro, contam com o beneplácito dos intelectuais, dos críticos, esses parasitas infatigáveis, sempre dispostos a dizer que se deleitaram com essas monstruosidades, mas que elevam aos céus esses impostores tipo Manoel de Oliveira, Antonioni, David Lynch… Que não compreendem que só queremos ver “uma boa história”.

Ora, o que são boas histórias? A do Homem-Aranha? Eu adoro. Mas não me parece nada “óbvio” um cara que atravessa uma cidade pulando com sua teia. O que há de óbvio nisso? Francamente, o macaco-fantasma do Apichtapong às vezes me parece bem mais acessível. Ah, mas o Homem-Aranha é cheio de aventura, não é chato. Concordo. Mas por que todo filme teria de ser cheio de incidentes, aventuras? Será que não podemos admitir – já não digo apreciar, mas ao menos admitir – que existam outras formas de narrar, outras histórias a contar que não aquelas “óbvias”, isto é, que nos parecem familiares por uma razão ou outra?

Ou seja: por que devemos exigir que o cinema nos traga sempre “o óbvio”, aquilo que já sabemos ou pensamos saber previamente? É claro que isso também tem sua função. Mas o mundo não pode ser feito apenas de faroestes, ou dramas, ou comédias. Ele precisa ser feito de faroestes e dramas e comédias e muitas coisas mais.

E depois ainda falam mal do cinemão de Hollywood…

Quem fala mal, cara-pálida? O fato de gostar de Godard ou Apichtapong ou Kiarostami não nos impede de gostar de Hollywood, ou ao menos de James Cameron, de John Carpenter, de Clint Eastwood, de Coppola (pai e filha), de George Romero, de Wes Craven, de Brian de Palma, de Martin Scorsese, de Paul Schrader, de Joe Dante…

Porque esse é o último estágio da operação (pode ser o primeiro): atribuir ao outro algo que não lhe passa pela cabeça, para melhor poder delirar em cima disso.

Para quem, sinceramente, pretende entender alguma coisa quando entra num cinema, que seja adolescente ou inculto ou o que for, eu diria que o que não compreendemos é o que ainda temos a compreender, a desbravar, a aprender. Ninguém nasce sabendo. Vivemos para aprender. Não é vergonha procurar compreender as coisas.

Para esses arremates de humanidade para quem a ignorância é o estágio máximo de humanidade, bem, segue um boas festas e um “não tem papo” à moda do Jairo Ferreira.

Chega por enquanto. Isso é uma introdução a duas ou três coisas que quero escrever a respeito de “Os Residentes” e “Santos Dumont – Pré-cineasta”, exibidos em Tiradentes.


Bela surpresa: “Remições do Rio Negro”
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Inácio Araújo

Uma vantagem irrecusável de Tiradentes é que o festival traz coisas que passariam despercebidas sob o nariz dos demais festivais brasileiros.

“Remições do Rio Negro”, documentário amazonense, é um exemplo. A diretora que estava aqui se chama Fernanda Bizarria.

O que está tocado ali? Primeiro um velho padre salesiano, Casimiro, bem velho. Um lituano. Lamenta seus predecessores na missão: não entendiam nada.

Com efeito: mandavam os índios se livrarem de seu passado como coisa do diabo. A Igreja é perversa, amigo. Não é pouco, não. Nem sempre. Mas a base é essa.

Depois do padre, vamos aos índios. Ruínas. Há aquele revoltado por ter sido separado de sua cultura, há o que tenta entender o branco por sua essência de exploradores (ou capitalistas, tanto faz). Em vista disso ele quer é a parte dele.

Há aquele que tenta desesperadamente se integrar ao mundo branco. Talvez seja o mais feliz deles. Mas é uma felicidade tão torta que dá vontade de chorar.

São desterrados. Os filmes de época (governos Vargas e Juscelino) são quietamente eloquentes: aqueles indiozinhos separados. Homem pra cá, mulher pra lá, cabelos cortados. Uniformes escolares. Alguém notou: parece campo de concentração.

Nenhuma expressão feliz.

Mas o filme não é mera condenação dos salesianos. Existe a fatalidade do encontro com o branco e o desarranjo que causa. Existe uma parte de ignorância e outra (é a mesma) de prepotência cristã. Existe a violência de todo contato, a necessidade de ocupação das fronteiras, as riquezas, o diabo a quatro que fazem do índio “uma questão”.

No fim, o filme propõe o encontro do índio mais bem aculturado com o padre Casimiro. Encontro terrível.

Notável figura, o padre. Ele carrega nas costas toda a brutalidade salesiana, de que não partilha muito, não hoje em todo caso.

Encontro constrangido da parte do padre. Tanto mais que o índio se derrama todo.

Mas o padre sabe que tudo é ruína. Estamos sobre ruínas. As missões salesianas, os índios, a vida dele próprio.

Fantástico: não há tom crítico. Só mostrar. Mostrar.

Um triunfo que nunca mais veremos, porque as TVs do Brasil são o que são e só mostram porcaria.

Uma pena.


Um achado em Tiradentes
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Inácio Araújo

Em Tiradentes a sala de debates está sempre abarrotada. Ninguém sabe até hoje se os debates são um sucesso ou se o pessoal vai lá para fugir do calor. Mas tudo bem: o calor está de arrebentar e ninguém tem a menor esperança de raciocinar fora do ar condicionado.

Cheguei ontem, arrebentado. Vi uma boa animação e fui dormir direto.

Hoje, no debate da manhã, o produtor de “Enchente” me pareceu o grande personagem. Chama-se Cavi Borges. Bela versão de cavador moderno. Um produtor na escola do Roger Corman, do Galante, se se quiser. Um cara que produz sem condições de produzir.

Difícil de explicar. Mas vão aí uns exemplos: ele fez um filme e deu ao camelô, pediu para que o cara pirateasse. O camelô vendeu uns bons filmes, veio a fama de ser “o novo Tropa de Elite” (acho que se chama “Mateus, o Balconista”). No fim, o Canal Brasil comprou o filme. O lucro ele reinvestiu em outro filme.

Outra be m Roger Corman. Os diretores fizeram um filme de 45 minutos. Precisava de mais metragem para fazer um longa e ter algo minimamente comercial nas mãos. Acabou que ele entrou em contato com a Liv Ullman e, melhor, ela topou entrar no filme.

Com essa concordância em mãos, ele levantou com o Canal Brasil uma grana para terminar o filme. Só que a Liv Ullman deu pra trás. Ele fez com outro ator. Não Liv Ullman. Mas entregou o filme.

Não vi o filme, não sei se é bom ou não. Mas como quase todo o cinema que se anda fazendo é, como definiu o Sérgio Alpendre, “bundão”, aí está um cara com imaginação, iniciativa, generosidade e versado na arte da gambiarra: é assim que cinema é legal.


“Tio Boonmee” pede que entremos nas pontas dos pés
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Inácio Araújo

Estou longe de ser um fanático de Apichtapong Weerasethakul, cujo “Tio Boonmee” está em cartaz no Brasil e que garnhou a Palma de Ouro em 2010. Também, devo admitir, sou apenas um pobre ocidental. Não morro por nenhum desses chineses e assemelhados que apareceram nos últimos anos. È terreno em que meu amigo Cassio Starling se move melhor do que qualquer outro. Tirando o King Hu e uns caras de Hong Kong, ali da tradição do kung-fu, quem me impressionava mesmo era o Edward Yang, que morreu desgraçadamente jovem.  Mas pode ser que eu já esteja ficando meio velho e, quando isso acontece, a gente vai também se tornando desconfiado, porque a indústria (a de autores inclusive) precisa inventar nomes novos

Nos filmes de Apichtapong convém entrar na ponta dos pés. Tudo ali convida o espectador ao respeito – não a esse respeito que pede “a arte”, e sim aos seres que lá se encontram. Quem são eles? Podem ser animais, árvores, pássaros, homens, fantasmas, macacos-fantasmas, vento, sombras, cavernas.

E se podem ser chamados de “seres” é porque de certa forma todos existem numa igual dimensão. Como se o cinema de Apichtapong, como já se disse, rompesse com a tradição antropocêntrica. O homem é aqui apenas uma parte das coisas, e entretém com a natureza, com as lendas, com o tempo e os objetos em geral uma relação perfeitamente horizontal.

O encanto de “Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” pode ser resumido em apenas uma cena. Aquela em que está sentado à mesa com a cunhada e, na outra extremidade, surge o fantasma de sua mulher. Um rápido espanto. Nada demais: como se um conviva familiar tivesse aparecido inesperadamente.

Pouco depois, outra presença igualmente marcante entra em cena vindo de outra dimensão: o filho fotógrafo que, após copular com um macaco fantasma, se vê transformado em um deles. Estranho personagem, com ar da Fera de “A Bela e a Fera” e olhos vermelhos de raio laser. E todos conversam em torno da mesa.

O assunto em torno do qual tudo gira é a morte de tio Boonmee, cujos rins já não funcionam. Mas o aspecto anedótico, a “história” quase não tem importância, já que o homem que vemos integra-se à natureza, ao passado, aos demais seres. Não há balançar das folhas ao vento que não deixe a impressão de que tudo vive, de que tudo vibra.

A partir dessa estrutura tão pessoal de filme fantástico, “Tio Boonmee” se permite absorver digressões, como a notável lenda da princesa, que ao ver sua imagem refletida na água, enxerga sua beleza passada – porque o que se vê na água é ilusão. Mas a lenda (com desdobramentos fascinantes) impõe a pergunta: e o que não será ilusão? O que distingue o imaginado do acontecido? Ou, para ficar com uma imagem que “Tio Boonmee” desenvolve: o que distingue a parede de uma caverna da imagem noturna do céu?

E o que é o céu, aliás? Num dos momentos mais memoráveis do diálogo, Huay (a mulher de Boonmee) esclarece, respondendo a uma indagação do marido: “o céu é superestimado”.

Me parece muito difícil dizer se este filme tailandês mereceu a Palma de Ouro ou, mais ainda, se permanecerá ou vai virar uma dessas obras-primas que ninguém se conforma em rever a que se referia Borges. É inegável, no entanto, a originalidade e a força das imagens. Apichtapong é, na pior das hipóteses, um nome a considerar entre os cineastas que se afirmam no século 21.


Muitas coisas (tolas) a dizer
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Inácio Araújo

1. De uma vez por todas, estou ficando velho.

Chego ao cinema para ver um filme iníquo e o porteiro me indica a fila da “melhor idade”. Ali, umas cadeiras enfileiradas e nenhum velho, que os velhos são sábios, fora eu, e nenhum se dispôs a ver “De Pernas para o Ar” (será preciso voltar a ele).

Devia haver algum limite legal para o uso de eufemismos. “Melhor idade” já não é delicadeza, parece ironia. Melhor em quê?, tive vontade de perguntar ao rapaz. Só o pessimista deve achar melhor, porque está mais perto do túmulo.

“Terceira idade” já estava ok. Pelo menos não tem esses horríveis juízos de valor que carregam velho ou melhor idade.

2. “De Pernas para o Ar” muda mais ou menos todos os critérios de valor cinematográficos conhecidos. Perto dele, “O Divã” é um Shakespeare, “A Mulher Invisível”, a Pietà.

3. Mas, não há dúvida, de um lado, de outro, está lançado um novo cinema popular brasileiro. Pornográfico ou espírita, tanto faz.

4. Cresce o público dos cinemas, conforme a nota que chega do Sindicato dos Distribuidores do Rio de Janeiro, via João Beltrão.

O público total passa dos 137 milhões de espectadores, aumento de 22% em relação a 2009, que por sua vez já tinha crescido 25% em relação a 2008.

Considerando que o aumento do número de salas foi de apenas 6%, o crescimento do público é real, realíssimo. Jorge Peregrino, presidente do sindicato, sustenta que estamos num momento propício ao surgimento de novas salas. Me parece inevitável o raciocínio.

5. Quanto a nós, os filmes brasileiros: saltaram de 10% em 2008 a 19% em 2010.

Pode ser que não seja episódico, isso. Parece que descobrimos a fórmula do blockbuster: lançar grande com anúncio a toda hora na Globo, de preferência filmes execráveis.

Que importa? O gosto do público foi mesmo arrasado pela televisão. A pior das pornochanchadas dos anos 70/80 tinha mais dignidade do que “De Pernas para o Ar”.

Talvez seja possível ir melhorando, aos poucos, distinguindo TV de cinema… Enfim, se não houver um pouco de esperança o que sei vai fazer?

6. A propósito, a Globo anuncia “O Bem Amado” em minissérie, com 25 minutos a mais que o filme original. Como se o que se via não fosse suficiente. Cinecirco.

7. No cinema, o anúncio da CBN: “O Brasil tem a oitava economia do mundo. Mas nenhum aeroporto entre os melhores do mundo. Pense nisso.”

Por que eu deveria pensar? Por que a CBN manda? Até onde eu consigo perceber, a CBN é muito boa para lamber as botas do Kassab.

Por que deveríamos ter um dos 100 melhores aeroportos do mundo? Que importância tão grande isso tem? Posso pensar em mil outras coisas, sempre sem o auxílio da CBN. No pior calçamento do mundo, que é aqui em São Paulo. Posso pensar que aqui é a única grande cidade do mundo com fios elétricos passando sobre as nossas cabeças (quem me lembra disso é Vladimir Safatle, numa sala da TV Cultura). Em suma, posso pensar em mil coisas, se a CBN não atrapalhar já está bom.

Porque às vezes é profundo demais. Não consigo acompanhar. Caso deste outro anúncio da CBN, este no rádio, tem uma mulher dizendo que as ditaduras nos dão o direito de ser iguais, só a democracia nos dá o direito de ser diferentes. Não entendi onde ela quer chegar com isso. Igual a quê? Diferente do quê? Não compreendo. Olho para cima, para baixo, em cada lugar o Big Brother (não o programa de TV) me espreita. A vida é toda vigiada. Não carregar o RG é crime quase tão grave quanto assassinato. Diferente do quê? De quem?

8. Uma parte do Rio desabou horrivelmente. O resgate começou de imediato, junto com a caça aos culpados. O “poder público”, como se diz. A inteligência mesmo sobre o assunto veio de Janio de Freitas, como de hábito. Não me lembro mais se é fato ou é lenda que o Paulo Martins do “Terra em Transe” foi inspirado por ele. Mas devia ser. O que ele disse? Falou do “nosso consenso de 500 anos”.

Nosso consenso: os pobres que se virem. Não tem lugar pra eles. Tinham que morrer. Que ocupem as encostas no Rio. Que ocupem as várzeas em SP. E, sobretudo, que não nos aborreçam.

Mas, de repente, vem tudo abaixo. E eles nos lembram que existem. Ou que existiram. Então é preciso achar um culpado. O governador foi alertado. O prefeito não tirou ninguém de casa. O presidente não deu verbas. Etc. Bem: chega lá e tenta tirar alguém de sua casa pra ver o que é bom. Não é essa a questão. A questão é o consenso. 500 anos de consenso.

Imagine que o povo de Higienópolis não quer uma estação de Metrô porque não quer pobre chegando de trem, às pencas, por lá. É fantástico. Pobre que venha andando, se precisar vir da Vila Brasilândia até Higienópolis. Ah, mas daí o trânsito fica ruim. Culpa do prefeito, do governador, do presidente…

E o povo de Higienópolis e dos Jardins culpa os pobres que estragam suas praias do Litoral Norte porque atiram o esgoto na água. Sim, os pobres. Porque o esgoto os ricos, aparentemente, não polui o mar. Não lhes passa pela cabeça que a ocupação da praia foi feita sem nenhum planejamento urbano, pensando apenas na possibilidade de expropriar as terras e casas dos caiçaras a preços vis. Culpa desse, daquele, daquele outro.

9. E o Belas Artes? Vai se safando com esse tombamento, que é meio fajuto, mas pode atrapalhar a vida de quem pretendia fazer uma loja ali durante anos.

Francamente, não entendo essa choradeira toda. Vou lá de vez em quando, tudo bem. Mas não tem mais Riviera na frente, nem muito menos Ponto 4, não tem Bernardo Vorobow, nem os amigos. Nem ao menos aqueles letreiros bonitos na porta do cinema. Foram asseptizados pela “cidade limpa” (sim, parece gozação o nome da lei: a cidade é porca, todo mundo sabe). Mas é bom que continue a existir. Antes assim. E o movimento em torno é, pelo menos, um movimento. O que as pessoas reivindicam de verdade? Que seu passado seja preservado? Que nossos pontos de referência não se percam com tanta facilidade? Apoiado.

10. Ah, sim, onde quer que você ande tentam te tapear. É muito cansativo. Fui comprar um carro que o meu está ficando velho. Um Citroen C3, que nem o antigo. Fui lá porque a Citroen era o único lugar em que os vendedores não insultavam a tua inteligência (lembrança do final do “Poderoso Chefão”).

Agora insultam, e como. A porta não bate direito. Tem que bater forte. O cara me explica que é porque a borracha é nova. Então você pergunta: mas como em todos os outros carros novos do mundo isso não acontece? Não adianta: ele inventa uma desculpa qualquer. A vendedora agora é como as de todos os outros carros: quer que a gente resolva o problema dela, como se isso fosse minha função ao comprar o carro. Pede que assinale, num questionário, que o serviço foi ótimo, excelente, extraordinário, “senão os meninos perdem a cesta básica”. Eu boto lá: ótimo, ótimo. Uma pinóia. Serviço vagabundo, tendência quase irreprimível a tratar o comprador como idiota. O espírito de arapuca triunfa.

11. Desculpe, mas há pouco a falar de cinema. Fico pensando em outras coisas. Há o Apitchtapong, é verdade. Não sou fanático, mas acho que é pra ver. É respeitável. Voltaremos a ele.

12. Jean-Thomas, da Imovision, do Reserva Cultural, protesta contra a prisão de cineastas iranianos. Não adianta nada. Ou antes, adianta tanto quanto o protesto que eu fiz. Os caras não estão nem aí. Quanto ao Jean-Thomas, francamente, Jean-Thomas, você acha que eu te odeio? Você disse isso à nossa amiga Flávia? Só porque eu reclamei que você não trouxe o “Bellamy”? Mas a quem eu ia reclamar? À Warner? À Paris? Mas você tem crédito: o Godard, o Kiarostami, o Coppola, o Bellocchio… De todo modo, não te odeio, longe disso, exceto pelos doces que tem na lanchonete do cinema e que, se eu comer como quero, vão me deixar com uma tonelada.

13. E, olha, não voltaremos ao “De Pernas pro Ar”, não, que tudo tem limite nessa vida. O cara não sabe enquadrar, não sabe dirigir atores, pede o pior do fotógrafo. Não dá pé.


Um Colar para 2011
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Inácio Araújo

1. Já que o MinC quer pôr em discussão o projeto da administração anterior, vamos pôr um pouco a colher torta.

2. Que direitos tem o autor?

3. Pode um autor impedir o restauro de uma obra? Ou, sobretudo, podem os herdeiros de um autor impedir a difusão de um filme? É o caso de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, enroscado nos herdeiros (ou herdeira, não sei bem) de Guimarães Rosa.

4. Um criador não tem direitos, só deveres, sentenciou Godard. Não está longe da verdade.

5. A propriedade intelectual devia ser vista um pouco como a propriedade rural: se for improdutiva, se for sobretudo latifúndio improdutivo, deve ser desapropriada e distribuída à população.

6. Eu até posso compreender quando Roberto Carlos impede a publicação de uma biografia sua. Ele está vivo, pode não querer mexer na história da perna mecânica e tal. Mas do momento em que a pessoa morre a questão histórica tem relevância maior. Impedir a circulação de uma biografia de Noel Rosa é, claramente, atrasar o conhecimento do Brasil a respeito de si mesmo.

7. Gosto de Antonio Grassi como ator o suficiente para não querer vê-lo à frente da Funarte. Não é um lugar para bons atores. Ele está notável em “Bens Confiscados”.

8. Pelo jornal leio que o MinC ganhou uma batalha contra Esportes pelo controle de uma nova política de socialização do governo. Fiquei bem impressionado. As praças supõem locais de convivência, bibliotecas, cinemas etc. É terrível esse tipo de empreitada parasitária esportiva, tão brasileira, de se fazer passar por cultura (tudo é cultura etc.) para ficar com as verbas. Cultura é cultura. É leitura, cinema, música, teatro etc. Gosto de basquete, mas é outro departamento e, cá entre nós, se vira muito bem sem o parco dinheiro da cultura.

9. Se essa política vingar será bom, será importante. E também estou de acordo com o Grassi, quando ele diz que MinC e MEC precisam se aproximar.

10. Roberto Bolaño é um baita escritor. Fico sempre de pé atrás quando um novo gênio é proclamado. A indústria editorial precisa promover novidades. Mas um bom escritor a gente nota nem sempre logo, mas a partir de um tipo de consistência da escrita.

11. De um de seus contos, aliás, eu roubo essa idéia do colar. Ele dá um outro nome, mas o resultado é mais ou menos o mesmo.

12. Já Ian McEwan: tentei ler pela segunda vez “O Inocente”. Melhorou, mas não deixou de ser vulgar. Essa idéia de que é um dos grandes escritores britânicos acho que é gozação. Mas o cara ganhou até o Booker Prize. No entanto, ele narra a história de tal jeito que, parece, a modernidade nunca existiu.

13. Nem o cinema. Ele descreve o jeito da barba do cara, do cabelo. Mas isso (e outras tantas descriçoes) parece que é só para chegar ao número de palavras correspondente ao contrato que assinou ou ao adiantamento que recebeu. Essas práticas profissionais soam abjetas. O livro até que rola, mas como diversão de fim de ano. Até onde eu li, em todo caso.

14. O profissionalismo em arte costuma estragar tudo.

15. Clint Eastwood, por exemplo, é um amador. Arrisca o pescoço a cada filme. Quem mais tem peito, a não ser crentes, de topar um filme sobre o “au delà”? No entanto, me pareceu soberbo. Até porque existe um outro tema, menos explícito e mais importante, que é o dos encontros, encontros únicos, necessários, insubstituíveis, que fazem a vida aqui e não em qualquer além possível.

16. Será preciso voltar a “Além da Vida”.

17. O que me desagrada nos colunistas de direita é o hábito de vampirizar o pensamento de esquerda, ou que atribuem à esquerda. Seus raciocínios são sempre reativos, nunca correm o risco de uma proposição. Existem em função da esquerda (ou do que acreditam ser esquerda). São estéreis. De modo geral não produzem coisa alguma. Mas acusar o outro de perneta não faz ninguém andar melhor.

18. As imagens do Rio desmoronando, de Franco da Rocha naufragando são terríveis e eloquentes o bastante. Silêncio.


Será Battisti uma vergonha nacional?
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Inácio Araújo

Isso é mais ou menos o que insinua um prof. Guillon, de Relações Internacionais, ou pelo menos assim creditado pela rádio CBN. Diz ele que o Brasil perde respeito e credibilidade internacional quando acolhe esse cara e desagrada a Itália etc. etc.

Bem, eu não tenho a menor opinião sobre o caso. Só conheço terrorista italiano pelo filme do Marco Bellocchio e os caras me parecem o ó do borrogodó.

Não sei se este Cesare é culpado ou inocente ou o quê. Mas, caramba, vamos com calma.

Se é para dizer que perdemos respeitabilidade ou o que seja por conta dessa história, convém mencionar o que perdemos quando deixamos nossos torturadores impunes.

Disso o tal professor não fala nem uma mísera palavra.

E, por favor, eu não conheço muito disso, mas estive na Itália há seis meses. Posso garantir que o prestígio do governo brasileiro por lá é muito maior que o do governo italiano. Aliás, o prestígio, nacional ou internacional ou interplanetário do governo do Berlusconi é nulo.

Então vamos parar com esse espírito de lambe-botas. A Itália não está no Renascimento. Para falar a verdade, parece mais perto de estar agonizando.

Esse professor (mas não é o único) deve estar de gozação.


Um novo começo
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Inácio Araújo

Vamos partir do zero. Presidente nova. Em SP governador novo. Esperemos pelo melhor.

Torço para que aos poucos se introduza uma cadeira de cinema nas escolas. Poderia se chamar Educação Visual ou qualquer outro nome que faça a coisa parecer séria.

Mas é algo importante e simples. Num mundo de imagens é preciso educar não usando imagens (que é um apêndice, pode até se usar mas não é o essencial), mas para a imagem, para a leitura desse mundo novo, para sua decifração, pois somos muito indefesos diante delas.

O governo de SP, na administração passada, começou um bom programa nesse sentido. Espero que não pare agora.
Se possível seria interessante dar um pulo na França onde se ensina Cinema no secundário. Não por espírito colonial, mas porque eles têm uma tradição formidável no trato com as imagens.

Quanto ao governo federal, acho que não tem muito a fazer nesse particular. Acho eu. Mas me parece notável a  disposição da presidente de abrir uma sala de cinema em cada cidade. Não vai conseguir, claro, mas isso é menos importante do que constatar de que se trata de algo importante seja como sociabilidade, seja como civilidade, como cultura ou mesmo só distração.

Enfim, como bom puxa-saco que sou, desejo a melhor sorte a quem está chegando ao poder com boas intenções – seja ele local ou nacional. Que sejam capazes de enxergar na bruma dos nossos muitos problemas e beneficiar os mais pobres.

Mas eu tenho dois agradecimentos especiais de começo de ano:

1.    Para a Silvana Arantes, que publicou na Ilustrada (4/1) uma matéria de enorme generosidade, que espero ao menos em parte justificável, sobre a antologia “Cinema de Boca em Boca – Críticas de Inácio Araujo”, que reúne textos publicados na Folha de S. Paulo entre 1983 e 2007 e selecionados por Juliano Tosi. O trabalho do Juliano foi admirável, porque eram muitos textos para escolher, coisa que exigiu muita pesquisa e discernimento. Não interferi em uma linha, não palpitei, nada. O resultado é trabalho dele.

Bem, devo dizer que é difícil não fazer um pouco de propaganda: o livro é da Imprensa Oficial. Mas, francamente, não ganho nada com isso. Nada mesmo. Quem não quiser comprar, pode baixar no site da Imprensa Oficial, mas acho que sai até mais caro. O livro custa R 15,00. Não é muito para um volume de quase mil páginas, caramba.

2.    Para os amigos que seguem este blog, participam com sugestões, ressalvas, críticas (as pertinentes, não aquelas maluquices que aparecem na internet) e me aturam. Queria dizer que às vezes pareço displicente, mas não sou: se não tenho nada a dizer, fico quieto. Aproveito a liberdade que o Uol me dá. Às vezes passo dias sem escrever. Não tenho tantas idéias assim.

Às vezes sofro de enorme falta de tempo e preciso dar só um alô sobre as coisas.
Como agora: preciso almoçar, ver meus filhos que não vejo há dias e partir para mais uns dias de incomunicabilidade.
Deixo mais um post, que o Giannini colocará no ar nos próximos dias.
Espero que continuemos a nos encontrar por aqui.


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