O Favorito dos Cinéfilos 3
Inácio Araújo
No Paraíso da Cinefilia 3 – Jean Douchet comenta Hawks
Kevin Bronlow, o historiador, propôs a cena do mais falado dos filmes, “Jejum de Amor”. A abertura: Rosalind Russell entra na sala do editor, Cary Grant, que está numa reunião com seus jornalistas. Ele a recebe como quem a desdenhasse, mas ela está lá para informar-lhe de uma mudança em sua vida. Ele recebe o choque, trata-se de sua melhor repórter, mas faz que não dá o braço a torcer. Fala como que para abafar o que diz Rosalind. E vice-versa. Ela também. Em resumo: ela vai embora? Outro jornal? Quer aumento? Ok. Mas só um pouco. Ela explica que não: vai casar e morar em outra cidade. Eles começam a falar então de seu casamento e divórcio. Da absurda renúncia à vida pessoal que o jornalismo impôs. Ela quer mudar tudo isso. Etc.
Francamente, tenho a impressão de que os americanos não entendem nada de Hawks, ou não se interessam por ele. Bronlow fez a escolha, uma pequena intervenção e se mandou. David Bordwell nem deu as caras. O importante veio de Douchet, claro.
O diálogo conduz a cena, porém a situação espacial dos personagens é marcada pela posição relativa que ocupam no quadro.
Quando falam de negócios (jornal), ora Cary ora Rosalind estão na posição acima do outro, isto é, de dominação. Quando falam de amor, ao contrário, estão sempre um e outro na mesma altura.
É quase um resumo do que acontecerá ao longo do filme. Mas também a constatação da evidência: cineasta do sonoro, Hawks é também, antes de tudo, cineasta da mise-en-scène.
Outras observações.
O lugar de Hawks, a partir de sua defesa pelos “Cahiers” desde 1953. HH é o cineasta moderno por excelência.
Aquele que passou rapidamente pela influência de Murnau, que todos nos EUA receberam, mas logo deu-lhe as costas. Nada de expressionismo, nada de romantismo, nada de metafísica (Jonathan Rosenbaum falara de metafísica em Hawks…).
É um homem da mecânica e dos mecanismos. Não tem nada a fazer com o século 19. É o homem de seu tempo, do século 20, da modernidade. Assim filma.
O filme é comandado pelos olhos do herói. Mas este olhar é duplo. Ele olha um mundo que deve compreender e dominar, pois a função do homem é dominar a natureza. Ele se volta sobre o mundo a fim de organizá-lo. Daí entrarem em ação todas as forças naturais em seus filmes.
Ao mesmo tempo ele deve se olhar, reflexivamente, pois para dominar a natureza deve, também, saber quem é.
Já a mulher é a própria natureza. Daí o seu papel: ser conquistada. Douchet nota, no entanto, que à medida em que a obra evolui, a mulher passa a ter um papel cada vez mais dominador, mais ativo, como em “Rio Vermelho”.
Somos levados sempre pela ação. São filmes de ação, pois o mundo é movimento.
A máquina é o princípio. Hawks filma como mecânico, alguém às voltas com um mecanismo. HH filma as mulheres como máquinas (como os carros de The Crowd Roars? – pergunto-me). Louise Brooks em Uma Garota em Cada Porto, lembra ele, foi alvo de milhares de assobios numa sessão na Cinemateca Francesa, nos anos 1960, em presença dela. E o filme é de 1828.
Numa segunda etapa, Douchet fica meio queimado quando Rosenbaum fala que odeia “Sargento York”.
Ele diz que adora Sargento York, é filme de artista. Mostra como um camponês simples, religioso, ingênuo, pode ser retirado de seu lugar, transformado numa máquina de guerra e, finalmente em matador e herói. “Uma síntese da cultura americana” conclui, para um auditório boquiaberto.
Por hoje ficamos aqui. Mas tem mais coisa à beça. De Primeira.
Quem quiser ver uma bela parte delas, dê uma olhada no site do David Bordwell. Não entendo onde esse cara encontra tempo para escrever tudo que escreve: um fenômeno.
O “Potiche” de Ozon
François Ozon é quase sempre inesperado e quase sempre estranho. Depois de “Ricky”, no registro fantástico, “Potiche” aparece, primeiro, como comédia de boulevard.
Há o patrão reacionário e os empregados em greve. Um prefeito comunista. Um filho mais para progressista, artista, na verdade gay, e uma filha reacionária como o pai, talvez um pouco mais.
Ozon não disfarça a teatralidade da situação. Acentua. Daí o efeito de estranhamento: tudo parece um teatro.
Na verdade é. Estamos em 1977, com greves e comunistas. O mundo ainda não sabe para que lado vai. A França muito menos. Está dividida em dois, como de costume.
A família Pujol também. O homem é uma caricatura de empresário: reaça ao máximo, transa com a secretária, faz da mulher um penduricalho, tem pretensões a uma dominação patriarcal sobre a família.
Aos poucos, essa teatralidade (que traz junto certo distanciamento) vai se diluindo, mas não sendo eliminada. Vai se transformando numa fábula sobre certo quartel do século 20 e seus reflexos no 21. Em relação à mulher (ao homem, por tabela), à sexualidade, ao trabalho – o que muda e mudou faz o interesse do filme.
Que é, aliás, bem divertido de ver, embora nem de longe uma obra-prima.