Blog do Inácio Araújo

Arquivo : February 2013

O vale cultura vale?
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Inácio Araújo

No meio de um jornal da Globo, assim, bem despretensiosamente, a notícia é jogada:

o Vale Cultura está liberado para pagar pacote de TV a cabo.

Como assim?

Todo mês? Então é vale cabo.

Funciona bem, o lobby da Globo.

Claro que TV a cabo faz parte da cultura, em sentido amplo.

Mas jogo de sinuca também.

Cultura, para efeito de vale, devia ser livro, teatro, cinema, música. museu. Ponto.

Monica, minha assistente, traz aqui um outro ponto de vista: e nas cidades em que não há cinema, nem teatro, nem livraria e muito menos museu?

O que resta é a TV a cabo.

Então a autorização não seria porque a Marta Suplicy quer ser governadora e sem uns agrados a Globo pode ferrar com qualquer político. Seria algo a ponderar.

Ainda assim, me parece que o vale cultura valeria mais, no caso mencionado, para levar trupes de teatro a essas cidades, ou mesmo cinemas volantes, quem sabe abrir quiosques com livros de bolso… Ou mesmo comprar livros pela internet.

Tenho a impressão de que o espírito da lei é, ou era, acabar com a hipertrofia de TV de que sofre a nação.

Meia-volta

Uma vez falei aqui que cotas tão amplas (50%) prejudicariam a Universidade, pois seria necessário todo um trabalho de adaptação dos alunos de escolas públicas ao andamento do grau superior.

A coluna de Elio Gaspari na Folha diz que isso não está, de modo algum, acontecendo. Que a diferença de pontuação no vestibular é pequena.

Que as cotas estão dando certo.

Melhor: retiro o que disse.

Volta e meia

Quero dizer ao Marcos Petrucelli – me dizem que está furioso por conta de um post em que comentei um programa de rádio: Paciência.

Sempre achei o Marcos uma boa pessoa e não pretendi ofendê-lo ou diminuí-lo. Aliás, nem sabia que ele estava naquele programa.

Por que eu o atacaria? Ele faz seu trabalho honestamente.

E por que eu esconderia o nome da emissora onde as coisas se passavam?

A emissora não é secreta: é a CBN, onde Marcos faz ali comentários que ouço muito ocasionalmente (não por causa dele, mas por causa da estação, que me parece menos interessante de uns tempos para cá).

Quanto ao seu “e-pipoca” é um site muito útil e bem feito.

Em suma: não vou cultivar essa inimizade.


Oscar para Michelle
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Inácio Araújo

O principal do Oscar, muito pessoalmente, não foi o Oscar. Foi uns dias antes, num debate na rádio. Não sei quem eram os participantes, com exceção de Evaldo Mocarzel – adivinhei pela voz. Emmanuelle Riva não fazia muito sucesso, e creio que “Hiroshima Meu Amor” também não. Mocarzel falava de ambos e parece que falava de extraterrestres.

“Lincoln” era mais conhecido, mas não gozava de melhor sorte. Um dos convidados preconizava que devia ter meia-hora a menos. Que acharia ele de “Os Irmãos Karamazov”? Em todo caso não era o mais radical. Havia um outro mais radical: podia ser um curta-metragem! E por que não? O que significa, afinal, um presidente americano, Lincoln, aliás, lutando no tempo e no espaço para abolir a escravatura? Pouca adrenalina! Muita fala! Corta tudo!

Essas coisas ditas poucos dias antes do melhor Oscar dos últimos tempos. Havia… isso  e aquilo… Um Oscar como o deste ano (2012, entenda-se) não foi de filmes “feitos para o Oscar”. Eram filmes. E a maior parte deles, independente da primeira impressão inicial, minha ou não, pode ajudar a melhorar o nível do debate cinematográfico. Que fora de Tiradentes anda, pelo jeito, deprimente. Chega de deixar o pobre Evaldo em situação delicada…

O principal, claro, não foi isso. Foi Michelle Obama surgindo naquela tela lá em cima, esmagando Jack Nicholson. Se alguém pode esmagar Jack Nicholson… Michelle foi a estrela da história toda.

E o que ela nos dizia, em outras palavras? A política não é prima do espetáculo, a política não é irmã do espetáculo. A política e o espetáculo são a mesma coisa.

E “Argo”? Pintava como favorito, um desses filmes que sobem nos últimos dias e aí ninguém segura, é como eleição política, igual. Mas eu senti a sua vitória quando ganhou montagem.

Ora, a montagem de “Argo” ou é arcaica ou esconde todos os defeitos do filme. Por que a opção pela montagem paralela àla Griffithde 1912? Para criar emoção? Francamente… Talvez ficasse ruim, aparecessem certos defeitos, se montasse de outra forma. Porque do jeito que ficou o suspense fica artificial, é uma codificação muito, muito antiga… Mas ganhou montagem. Não sou especialista em “sinais” do Oscar, longe disso, mas ali me veio a sensação de que esse seria o vencedor.

Ang Lee na melhor direção? É um filme ok, me parece, se tirar o prólogo e o epílogo, absolutamente idiotas. Mas aqui é o 3D, a tecnologia, o maquinário, os efeitos… São essas as coisas postasem relevo. Depois, Ang Lee é aquele cara que não significa muito nada, não incomoda ninguém. O regra 3 ideal.

A menina que ganhou o Oscar de melhor atriz caiu na escada. No meu entender, ela não tinha estatura para ganhar. Vamos ver… Me parece que nem aquela moça que ganhou no ano em que a Fernanda Montenegro também concorreu: um Oscar especulativo, em busca de uma estrela… Mas uma estrela cai na escada? Vamos ver se levanta.

E assim fomos, de anúncio em anúncio, Giselle Bundchen mostrando como clarear os dentes a cada vez…

Eu queria ver “Lincoln”, com seu rigor, filme muito difícil, ganhar. Não vi. Queria ver Emmanuelle Riva ganhar. Isso seria um milagre. Metade daquela sala não tinha a menor idéia de quem era aquela velhota. Eu não queria ver nenhum dos atores coadjuvantes perder. Eram todos excelentes.

Em compensação, eu queria ver a Helen Hunt perder.

Gostei do Ted quando perguntou onde seria a festa depois da festa. Porque não importa quem ganhou ou quem perdeu. No Oscar importa a festa, a mobilização, a conversa fiada essas coisas. Fala-se de cinema e é o que conta.


Os melhores cinemas de São Paulo
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Inácio Araújo

 É interessante a iniciativa de pontuar as salas de cinema de São Paulo, o que faz o Guia da Folha anualmente.

Ao mesmo tempo, os critérios por vezes me parecem muito indicativos de certa relação com o cinema, que já não diz respeito ao espetáculo, mas a fatores mais ou menos exteriores.

Eu não desvalorizo o conforto, longe disso, nem a boa visibilidade, e muito menos a projeção, fatores essenciais à fruição de um bom (ou mau) filme.

Mas tenho a impressão de que certos fatores estão se tornando muito determinantes, em detrimento do filme propriamente dito.

Que um cinema ofereça lanchonete, e que essa lanchonete seja agradável, me parece um aspecto interessante ao frequentador do local, mas não propriamente ao espectador.

É algo que me leva ao cinema. Mas não é o cinema.

Esses fatores podem ser um tanto subjetivos. O Reserva Cultural tem um restaurante lá dentro; o Espaço Augusta serve sopa; não sei quem leva pipoca na sala…

Ok. Mas se eu não quiser sopa?

Eu posso ser levado por fatores insondáveis, como: decoração, tipo de pessoas que frequentam o cinema, distância da minha casa, etc.

Insondáveis digo: que não dá para mensurar numa pesquisa desse tipo.

Há outros que no meu modo de ver poderiam ser aperfeiçoados e nem são tão subjetivos assim. Por exemplo, há cinemas com boas livrarias não propriamente especializadas, mas com bom catálogo em cinema (e encomendam o que se pede). Passar um tempo na livraria pode ser mais interessante, às vezes, sobretudo para quem vai sozinho ao cinema, do que ficar na lanchonete.

Há cinemas, como o Livraria Cultura (os cinemas paulistas hoje em dia têm nomes inacreditáveis), onde, apesar do nome, nunca vi um mísero quiosque com livros de cinema lá dentro.

Claro, há uma baita livraria ao lado. Mas deslocar alguns para lá não faria mal algum.

Alguns aspectos são subvalorizados. A sala BNDES da Cinemateca é uma das raras, senão a única em SP, a poder projetar filmes 35mm no formato 1:33 clássico.

Isso não se consegue na sala do CCBB. A pesquisa destaca que as poltronas do CCBB são meio apertadas. Mas qualquer um se aperta (não chega a ser aperto, só quando comparado às poltronas mais novas e largas) para ver uma raridade por lá com mais prazer do que vendo um filme besta com gente te servindo pipoca.

No entanto, no CCBB nunca será possível ver um filme filmado em 1:33 integralmente. E isso conta, considerados os filmes que exibem lá.

Do mesmo modo, não vejo nenhum problema no ruído do projetor da sala Petrobrás. Ao contrário: sobretudo nos filmes mudos, esse ruído é muito bom, eu diria quase essencial. É um ponto a rever, também.

Já o Olido, que é um cinema essencial para o centro da cidade, espero que tenha melhorado muito desde que estive por lá.

Uma última palavra: no cinema (como no circo) o penetra é uma instituição secular, indispensável, bela. Acho que dela, mais do que de muita faculdade, saíram grandes cineastas. Como nós jornalistas não somos auxiliares da polícia, nem alcaguetes ou algo assim, não vejo motivo para apontar a falha de controle nas entradas de um cinema como um defeito. Não é problema nosso. Deixa a garotada curtir seu filme sossegada.

Uma outra última palavra: não percebi nenhum elogio aos cinemas que têm lugar marcado na platéia. Acho ótimo. Pessoalmente, me parece um hábito deplorável. Marco um lugar e se ao meu lado senta um chato que fica falando o tempo todo eu não tenho o direito de mudar para outro lugar. Uma chatice.

Dirão que aí não é preciso fazer fila etc. e tal. Conversa. Paulista adora fazer fila. Fazemos fila para entrar na sala mesmo tendo lugar marcado. Esse, aliás, é um espetáculo extra que esses cinemas oferecem.

Corinthians e seus corintianos

Lá vou eu sair em defesa dos fortes e dos opressores. Ao menos segundo o senso comum. Já vejo acusações contra as torcidas organizadas em geral, e as do Corinthians, em particular, por causa do terrível acidente na Bolívia de que todos já ouviram falar.

Sim, torcidas organizadas são meio selvagens, sabe-se, por vezes perigosas. Congregam pessoas pobres, que sofrem com a falta de educação e civilidade dedicados aos pobres por aqui.

Fazê-los evoluir, integrar a sociedade, em vez de se retrancarem em guetos e odiar todo mundo deveria ser uma tarefa geral, da Prefeitura e mesmo do Estadoem particular. Emvez de falar mal dessas pessoas, poderíamos começar a olhar para o umbigo de nossos próprios defeitos.

Isso é uma coisa.

Outra é: o marketing corintiano dedicado a valorizar a torcida, surgido no momento em que o time foi rebaixado, foi um achado notável, talvez genial.

Mas faz tempo que já deveria ter recebido um freio, ter sido moderado. Torcedor é para torcer, não para tomar seu time, que é parte de sua identidade, como sua identidade total. Isso é uma doença que a diretora do clube tem, sim, incentivado. Pela qual é, sim, em parte ao menos, responsável. Ela precisa ficar muito atenta a isso. Não é só na hora em que o cara mata o menino no estádio que isso se verifica. Não é só quando duas torcidas marcam briga em um lugar da cidade.

Essa mania de uma parte dos jornalistas esportivos de, a qualquer pretexto, tentar excluir organizadas dos estádios é cruel, boçal e sem vergonha. Organizadas são a única chance de os pobres verem jogos de seus times.

Desculpe me meter no assunto esportivo. Mas não é o esportivo que me interessa, aqui: é o marketing e é a TV.


Em defesa dos motoboys (e mais Som ao Redor)
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Inácio Araújo

Bem, todo mundo odeia os motoboys. São chatos que ficam acelerando no sinal vermelho, que ultrapassam pela direita a 100 por hora, que chutam os carros, que não entendem patavina de trânsito ou antes, acham que as leis de trânsito foram feitas para lhes dar passagem. Etc.

Por isso me parece certo que exista uma legislação mais exigente, não só para defender a vida deles (são três mortes por dia, não sei se apenas em SP ou no Brasil todo, de qualquer maneira é um absurdo).

Tudo muito bem. Concordo até que eles paguem pelos equipamentos agora exigidos, que, afinal, protegem a vida deles antes de qualquer outra coisa.

Mas tem uma coisa: exige-se deles um curso que 1) não tem quase vagas; 2) é caríssimo.

Me parece muito injusto que o rapaz pague R$ 400 ou R$ 500 pelo curso. Isso é quase o que eles ganham por mês.

Não seria possível as instâncias tipo DSV ou Detran, sei lá, bancarem esses cursos?

Porque esses chatos são explorados até a raiz, e essa é uma das razões deles correrem que nem malucos pelas avenidas: têm de fazer uma montanha de corridas para faturar algum.

E, a propósito, sendo algo de interesse geral, me parece que a profissão poderia, então, ser regulamentada e ganhar salários decentes.

Já que nós, em casa, somos os que queremos o documento no dia, a pizza quentinha e tudo mais. Somos os que exigimos esses serviços rápidos.

Enfim, multar e multar os caras sem oferecer nada em troca não está certo.

Não me parece uma categoria cheia de gênios. O que eles vão fazer é parar a avenida Paulista e 23 de Maio e tal. Tenho a impressão de que seria necessário haver uma negociação decente, digo, pós-escravagista, nesse caso.

Globo Filmes vs. Som ao Redor

Abaixo, a resposta de Kleber Mendonça Filho ao diretor da Globo Filme que o desafiou a fazer um filme com mais de 200 mil espectadores. Isso por conta de uma entrevista na Folhaem que KMFdiz que se o vizinho dele filmar o churrasco de sábado e isso for distribuído pela GF chegaria a uns 200 mil espectadores.

Claro, isso era puramente hipotético, não era nem um ataque à GF, que, claro, não distribuiria qualquer filme capaz de incomodar a sua freguesia, ou susceptível de escapar a um certo padrão que todos conhecem, para o bem ou para o mal, não importa.

Seja como for, KMF produziu uma resposta irretocável, e que merece ser lida, pela elegância, pela inteligência, pelo humor. Aí vai:

“Estava em trânsito o dia inteiro, cheguei em Istambul onde O Som ao Redor será exibido nos próximos dias. O Facebook e a imprensa fervilham com nosso embate. Preciso lhe agradecer pelo desafio, mas sua proposta associa a não obtenção de uma meta comercial (200 mil espectadores) como prova irrefutável de que eu não seria um cineasta. Isso não me parece correto, pois o valor de um filme, ou de um artista, não deveria residir única e exclusivamente nos número$. Sobre ser crítico ou cineasta, atuei como ambos e meu discurso permanece o mesmo, e sempre foi colocado publicamente, e não apenas em mesas de bar: o sistema Globo Filmes faz mal à idéia de cultura no Brasil, atrofia o conceito de diversidade no cinema brasileiro e adestra um público cada vez mais dopado para reagir a um cinema institucional e morto. Devolvo eu um outro desafio: Que a Globo Filmes, com todo o seu alcance e poder de comunicação, com a competência dos que a fazem, invista em pelo menos três projetos por ano que tenham a pretensão de ir além, projetos que não sumam do radar da cultura depois de três ou quatro meses cumprindo a meta de atrair alguns milhões de espectadores que não sabem nem exatamente o porquê de terem ido ver aquilo. Esse desafio visa a descoberta de novos nomes que estão disponíveis, nomes jovens e não tão jovens que fariam belos filmes brasileiros que pudessem ser bem visto$, se o interesse de descoberta existisse de membro tão forte da cadeia midiática nesse país, e cujos produtos comerciais também trabalham com incentivos públicos que realizadores autorais utilizam. Não precisa me incluir nessas novas descobertas, gosto do meu estilo de fazer cinema. Ainda estou no meio de um grande desafio com O Som ao Redor, 9 cópias 35mm, mais algumas salas em digital, chegando aos 80 mil espectadores em 8 semanas, e com distribuição comercial em sete outros países. A maior publicidade de O Som ao Redor é o próprio filme. Para finalizar, esses embates são importantes, fazemos cinemas diferentes, em geografias diferentes. Obrigado, tudo de bom. Kleber”


Ao redor do som
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Inácio Araújo

Belo material na Folha, Ilustríssima, puxado por uma análise da Lucia Nagib. Há também uma reportagem alentada da Fernanda Mena, que situa bem as coisas (o filme, Pernambuco, o autor, etc.) e uma análise mais sociológica do Mauricio Puls.

Em uma palavra: o filme está vivo.

O mais interessante na visão a Lucia, me parece, é o detalhamento do espaço arquitetônico do filme.

Ele me parece de fato central. Há um enclausuramento dos personagens, só rompido pelo som, porque o som desconhece grades, essas coisas.

No mais, não é um filme que se passa em qualquer lugar, que podia se passar em um lugar outro, qualquer.

Ele tem uma precisão muito grande. É uma “nova Recife”, nova rica, cheia de prédios que ele está observando.

De prédios horríveis.

Não consegui entender muito bem como a Lucia enfiou lá o Glauber e essas coisas. Como se houvesse uma necessidade de vincular tudo ao Glauber, ao cinema novo. Acho coisa de quem vive fora do Brasil.

Ainda na questão espacial me parece importante ver aqui um filme de deslocamentos.

Ò título do ensaio do Puls fala em fim do coronelismo.

Não estou convencido de que seja o caso.

As coisas se transformam, mas não há propriamente um fim.

Certo, o engenho é ao mesmo tempo um fantasma e um produtor de fantasmas.

Ao mesmo tempo ele é terreno na capital, terrenos que viram prédios, prédios que se vendem.

Daí a situação de deslocamento dos personagens. Um deslocamento geral, em que no entanto a permanência das relações hierárquicas é fundamental.

O rapaz, o corretor, o primo bom, que ao primeiro olhar parece apenas um condutor de história na verdade é o mais perverso produto dessa loucura escravagista.

Ele é o bom senhor de engenho, por um lado: o que presta atenção nos calçados dos seus servos.

Mas é também o cara das boas intenções: que defende a causa do porteiro que pretendem despedir, mas na hora H se manda para encontrar a namorada.

É um pouco como essas pessoas que reconhecem o quanto é necessário promover justiça social, mas, claro, desde que não saia um tostão do seu bolso.

No mais, um cara que estudou por sete anos na Alemanha, o que faz vendendo apartamento em Recife?

É sinhozinho.

Todos os demais personagens da família passam por esse tipo de deslocamento. Há entre eles mesmos, inclusive, isso, como o avô, velho senhor de engenho, que vai tomar banho de mar à noite ali onde estão os tubarões. Sem medo. Tubarão não tem medo de tubarão…

E o filho, o dono da casa, bem filho de senhor poderoso: fraco, impotente, incapaz.

E o primo, playboy, correlato urbano do avô, aquele que faz o que quer porque pode e fim.

E nesse deserto, deserto urbano de linhas retas, delimitantes, janelescas, existem no entanto os buracos secretos, as áreas de escape: ali onde a empregada vai transar em grande estilo em cama de patroa.

Quanto ao final: não sei se existe passagem, transformação. Reafirma-se o mundo nordestino da vendetta.

Algumas restrições que aparecem na reportagem da Fernanda me parecem descabidas. Alguém quer tirar 20 minutos do filme. Como dizia o Truffaut: que tire do seu. Por que não manda tirar 100 páginas do romance do Dostoiévski? Para com isso…

E alguém fala de interpretações abúlicas…  Alguém responde brechtiano… Isso não entendo. Nem uma coisa nem outra. Não vi isso. Apenas não há essa febre de interpretação psicológica, tipo Greta Garbo anos 30 (século: XX). E se fala de desencontro de gerações… Não. Esse filme não é um fenômeno isolado. Há um trabalho pernambucano que precisa ser observado e mesmo imitado.

Espero que do “Eles Voltam” se volte a falar tanto quanto desse, a conversar, a discutir.

Ah, para não dizer que esqueci: o Calil diz que precisa de 100 mil espectadores para existir no mercado. Mas o que vem a ser existir “no mercado”?

Há que dar uma clareada nesse tipo de coisa, senão fica muito vaga.

Ah, claro, há muito mais coisa lá. Fora os filmes que vão entrando. Fora a nova lei dos motoboys. E o papa…

Eu sou um só e hoje domingo.


Kiko, os livros e os filmes
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Inácio Araújo

Tenho tido alguns amigos distantes na vida. Pessoas de quem posso passar décadas afastado que, ao reencontrar, sei que nossos sentimentos permanecem idênticos.Um deles, foi Geraldo Galvão Ferraz, Kiko para os amigos e colegas, que conheci primeiro nos tempos de Jornal da Tarde, faz já uma eternidade, onde ele se ocupava de livros. O que não era de estranhar, já que filho de Geraldo Ferraz e Pagu.

Irmão, meio-irmão do também querido Rudá de Andrade.

Acordei hoje sabendo da morte de Kiko. Nas últimas vezes que o encontrei ele escrevia sobre cinema, que também conhecia muito bem.

Era uma pessoa de coração aberto. Sei que devo a ele, ao menos em parte, o único prêmio literário que ganhei, o de Revelação de Autor em 1987, por Casa de Meninas.

Não que tenha importância: mas a alegria e a riqueza do diálogo que esse livro proporcionou, com ele e com Leda Rita, com quem então era casado, ficaram em minha vida para sempre.

E o Oscar: Zemeckis

Digo isso soterrado por filmes. “O Voo” é um filme de bêbado a mais. Não gosto muito do gênero, mas o roteiro me pareceu enriquecer o gênero, ao fazer do personagem um piloto de avião. Mas ninguém acredite que, por bêbado e drogado, Denzel Washington fará uma besteira do ar. Ao contrário: sua perícia vai salvar muita gente.

Mas ele é alcoólatra. Não meio alcoólatra. Alcoólatra pra valer. Que fazer em face disso? E num processo que se anuncia penoso para ele?

Bem, não vou contar o final para ninguém, embora isso não tenha lá muita importância. O fato é o seguinte: em vez de um processo de autoconhecimento, que poderia ser interessante, o filme investe no aspecto moral, moralista me parece, do desnudamento da “verdade”. Mas a verdade revelada, isso que boa parte do filme diz, é sempre parcial. Mais: é insuficiente. Então essa apoteose da verdade tem mais de hipocrisia do que outra coisa.

Mas o filme não vai entediar ninguém. Me parece. E olha que eu me encho facilmente com filme de bêbado. Costumam ser tão chatos quanto os bêbados.

David O. Russell

Aparentemente. Russell é um autor, e dizer isso já é um grande elogio, porque o cara precisa lutar como um louco nos EUA para não ser engolido pelos executivos.

E “O Lado Bom da Vida” é uma variante de seu “O Vencedor”. Um cara que tem de lutar contra a família desajustada para se impor. E a família o assalta, o assedia, etc.

Aqui é um pouco mais: o cara, o protagonista, sofre de transtorno bipolar, o que o torna vulnerável a qualquer agressão do mundo externo, à qual reage sem sutilezas.

Ele conhece uma garota. E, como no outro filme, a família (o pai nesse caso) vai se manifestar contra a influência que ela possa exercer sobre o filho.

Tudo muito bem. Onde a roda pega?

Me parece que, primeiro, nessa pletora de anormalidades. No filme anterior, havia o irmão drogado, as irmãs piradas e tal. Mas o lutador tinha algo dele que o preservava disso.

Desta vez ele faz parte do Hospício América que o diretor-roterista parece querer compor.

E todos saem um tanto enfraquecidos. Não sei se pegar o De Niro para fazer o pai foi uma boa idéia: ele se torna muito dominante, com um personagem, no fim das contas, não muito interessante.

O personagem da Jennifer Lawrence é interessante: meio “Levada da Breca”. Aliás, o filme me lembrou bem essas comédias dos anos 30/40.

Só que quando o protagonista levanta seu dedo para dizer que é casado isso é sério, é sério demais, é doente. Já imaginou se fosse o Cary Grant fazendo o mesmo gesto?

Fiquei com essa impressão: o filme tem uma tocada muito grave, apesar do texto. Se o pai fosse um desencanado e não um obsessivo que concorre com o filho em matéria de doença, as coisas seriam melhores.

O melhor personagem é o da Jennifer Lawrence, apesar da ideia do concurso de dança me parecer sem pé nem cabeça. Ou então ela devia ter isso reforçado de algum modo: uma obsessão que se manifesta por outras formas que não palavras.

Dito isso, o filme é digno.

Tom

O filme do Nelson Pereira sobre o Tom: uma promessa de felicidade.

Promessa nas coisas mais inesperadas: o vôo do urubu, obsessão de Tom Jobim.

O urubu em voo é o antiurubu…

Capuzes Negros

Carlão interditou a visão desse filme enquanto viveu.

Dizia que o filme não era seu. Que Mauro Chaves o havia escrito e devia dirigir, que ele apenas executou o filme, quando Chaves renunciou (no primeiro dia de filmagem, antes desse papa agora).

Bem, e apesar disso é um filme do Carlão.

Entendo que as soluções de roteiro não sejam dele.

Que a idéia do falso sequestro é fraca.

Que a questão do desejo deveria primar sobre a do feminismo…

Etc.

E no entanto eis aí um filme em que, do primeiro ao último fotograma, sente-se a mão do Carlão.

Ele não gostava muito de se ocupar da burguesia, é verdade. Mas da maneira como fez, fazendo tudo virar chanchada, escalando seus atores preferidos e tudo mais, bem… Aquilo não é burguesia nenhuma… Aquelas atrizes que fazem as mulheres dos diretores, aquelas maquiagens, a festa maluca, o policial (o de óculos enormes) são totalmente Carlão.

Carlão só se reconhecia num comercial da construtora, pelo menos ele falava muito, o do Portal do Gasômetro, que é mesmo muito engraçado.

Sim, no fim é difícil saber se certas coisas são do Carlão ou do Mauro Chaves, mas no fim o filme é bem Carlão, com todas as inconsistências de um roteiro que ele não revisou.

Indomável Sonhadora

Mais um do Oscar. Chega! Falo outro dia. Não aguento mais. Parece filme do John Woo: você mata os bandidos, mas vem mais um monte atrás.

Por sorte tem algumas coisas boas e outras visíveis.

O ano não está ruim.

Mas algo me diz que vou sofrer nos Miseráveis…


West Salad by Quentin Tarantino
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Inácio Araújo

Bela salada do Oeste, esta de “Django Livre”. Me pareceu melhor do que o filme anterior do Tarantino, porque a questão da guerra exige algum rigor na imaginação e o fim do “Bastardos Inglórios” tomava liberdades digamos excessivas com os fatos históricos.

Quer dizer, nada contra, mas aqui se tratava de uma facilitação: juntar a Joana D’Arc filme mais a garota queimando, em Paris, com o cinema queimando e toda a hierarquia nazista lá dentro impressiona bem (a mim ao menos impressionou) na hora, mas depois o entusiasmo arrefece. O filme vale por outras cenas (a da taverna, a do Christopher Waltz procurando pessoas escondidas numa casa no campo, etc.), mas essa em que estou pensando hoje em dia já não me seduz nem um pouco. A guerra não acabou em Paris, por mais fotogênico que pudesse ser.

Com o Oeste tudo é diferente. A saga histórica foi largamente encoberta pelos episódios ficcionais criados em cima dela.

E, para além do cinema americano, houve o italiano, de onde aliás vem o primeiro Django, o original, devido a Sergio Corbucci, de que não me lembro mais, embora me lembre que gostava do Sergio Corbucci, que tinha idéias.

O que mais me fascina no Tarantino é esse gosto pelo cinema popular.

Ele não faz nada tradicional. Tudo é ao gosto do dia. Mas o sentimento popular permanece.

Qualquer espectador daqueles que tomava o Marabá nos anos 60 do século do cinema se reconheceria nesses personagens, torceria, vibraria e tudo mais.

Depois, ele tem um talento louco. Tem noção da grandeza que um épico requer, mas ao mesmo tempo sabe que o tempo é da paródia. O verdadeiro bang bang não pode mais existir. Mas a partir da paródia, partindo dali, ele lhe dá existência. É um pouco como o Clint Eastwood com “Os Imperdoáveis”: há um sentimento de fim, de arremate, de concluir alguma coisa, ao mesmo tempo em que traz alguma coisa de novo. Acho que o Clint trouxe mais, é mais profundo, mas isso é outra história.

Ouço reclamações contra o Leonardo DiCaprio, mas não sei, tenho a impressão de que isso virou já uma espécie de esporte, odiar o Leonardo DiCaprio, como aqueles grupos antigos de orkut.

Toda a sequência dele é muito forte, com aquela irmã imbecilizada e, sobretudo, o Samuel L. Jackson, que faz uma personagem excepcional, a do negro que leva sua submissão ao máximo completo, ao amor a seu patrão e à sua terra. Um pouco como em certos velhos filmes do Sul, mas elevado ao cubo. Não vou dizer que lembro o Shock Corridor, mas tem alguma coisa daquela demência ali, numa sequência em que tudo é demente. E todos.

Uma coisa apenas me incomoda ali: é que é nítido que os diálogos do DiCaprio e do Waltz foram escritos pela mesma pessoa. Ou, se não foram, se houve margem de improviso ali, um se espelhou no outro, então ficam muito parecidos, inclusive no jeito de fingir e no cinismo.

Por outro lado, que idéia excelente, essa de botar uma Brunhilde escrava no Oeste… É isso que faz o alemão se interessar por Django e sua história. Até ali é só um caçador de recompensa a mais. Dali por diante já está na mitologia alemã, misturada com western spaghetti, saga sulista, western americano, enfim essa salada tarantinesca bem característica, bem interessante.

E essa história do Spike Lee dizer que não ia ver o filme porque lá se fala em “nigger”? Me parece uma bela palhaçada. Queria que falasse como? Afro-american? Às vezes parece que se perde o senso de medida…


Dez Mais 2012
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Inácio Araújo

É nossa convenção: todo ano, escolher os que julgamos melhores.

Para mim isso só é definitivo quando chega a listagem do Cinesesc, a mais completa.

Vamos ver quais foram os que mais me marcaram (às vezes retrospectivamente) no ano passado (só vale filme estreado comercialmente).

Não voto em “Cabra Marcado para Morrer”, do Coutinho, claro, porque é um relançamento, não me parece fazer sentido.

Brasileiros:

1. O Homem que Não Dormia – Edgard Navarro

2. Xingu –Cao Hamburger

3. Cara ou Coroa – Ugo Giorgetti

4. Luz nas Trevas – Helena Ignez e Ícaro Martins

5. Sagrado Segredo – André Luiz de Oliveira

6. Febre do Rato – Cláudio Assis (na cédula vai até o quinto, apenas)

Melhor documentário:

Uma Longa Viagem (Lúcia Murat) + Tropicália (Marcelo Machado)

Melhor Ator: Daniel de Oliveira (Boca)

Melhor Atriz: Hermila Guedes (Boca)

Melhor roteiro: O Homem que Não Dormia

Melhor Fotografia: Adrian Teijido (Boca e Gonzaga).

Estrangeiros:

1. Os Mistérios de Lisboa

2. Um Alguém Apaixonado

3. O Exercício do Poder

4. As Quatro Voltas

5. Um Verão Escaldante

6. Habemus Papam

7. Um Método Perigoso

8. Hahaha

9. Os Descendentes

10. Argo e Elefante Branco (na lista do Sesc são apenas cinco filmes; me parece pouco, na verdade).

melhor diretor: Raoul Ruiz (Os Mistérios de Lisboa)

melhor ator: Viggo Mortensen e Michael Fassbender (Um Método Perigoso)

melhor atriz: Keira Knightley (Um Método Perigoso)

Bem, quem quiser fazer a sua lista aqui em seguida será bem recebido.


Lincoln, o americano tranquilo
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Inácio Araújo

 

Saí de “Lincoln” bem impressionado.

Tinha visto o filme quase fora do cinema (fila B, poltrona 23 de um Kinoplex), tinha tudo para achar aquilo longo e tal, mas não foi essa a impressão que me ficou.

Pensei que Spielberg fez um filme de fato fordiano, que de certa forma busca reinstituir o mito da América. Em outros termos, na verdade, mas nem tanto.

Não se trata da vida de Lincoln. São alguns meses, aqueles que precedem a votação da emenda que decretaria o fim da escravatura.

Para ter sucesso, Lincoln precisa conseguir manter sua bancada (republicana) unida e ainda angariar 20 votos entre os democratas.

Mas precisa fazê-lo antes que a guerra civil acabe, pois o Sul está exangue. E precisa que seus exércitos continuem a atacar os sulistas.

Precisa contentar a parte mais conservadora de sua bancada e acalmar os radicais.

Enfim, o momento histórico que Spielberg maneja não é de força, mas de razão e negociação. Aí está a grandeza de Lincoln. Se atrasar a votação da emenda, terá de volta as bancadas sulistas (ora em secessão) e perderá fatalmente. Tem de fazer algo num momento exato, passando por todas as vicissitudes que um presidente enfrenta no caso de um congresso dividido.

O que me parece sensacional é a forma como Spielberg toma esse tema espinhoso, nada Indiana Jones, e o leva com firmeza. Não facilita as coisas introduzindo cenas emocionais, nada (ou: não mais do que John Ford faria)

É verdade que Daniel Day Lewis (e o maquiador) ajudam muito. Mas eis aí um filme escuro, feito no escuro, muito arrojado, com base sobretudo no “homem que pensa”, Lincoln.

Há essa mitologia, é verdade. Mas no caso ela se origina menos das efígies lincolnescas (exceto por uma imagem logo no começo do filme, ao menos que eu tenha notado) do que do filme de Ford, “A Mocidade de Lincoln”. Sobretudo a imagem do Lincoln andando solitário, se distanciando, aquela figura esguia, que lembra um pouco Nosferatu, essa é a verdade, me fez lembrar mais ainda da figura também esguia de Henry Fonda como jovem Lincoln.

Talvez Spielberg estivesse pensando em Obama, que ora tenta reconstruir o país enquanto sofre forte oposição. Claro, os estilos e circunstâncias são bem outros, mas ainda desta vez a negociação é a chave, o raciocínio, a capacidade de mover as pedras nesse xadrez cheio de movimentos traiçoeiros.

E se se aproxima de Ford, ao mesmo tempo opõe-se a ele: aqui de certa forma há um “grande homem”, o grande homem americano por excelência, tutelando o filme, levando a história adiante. Ford nunca cultivou isso. Ainda assim, um quê fordiano está presente no filme.

P.S. 1 – Aqui vê-se Lincoln, ninguém menos, envolvido até o pescoço num profundo mensalão. Oferece empregos, compra, chantageia congressistas na maior. É imoral, nesse momento em que a moralidade seria… escravagista. Se estivesse no Brasil as coisas seriam diferentes. Nos Estados Unidos a lei corre meio frouxa.

P.S. 2 – Por que são tão caros os restaurantes e as roupas em São Paulo? Acho que é porque são os dois únicos assuntos sobre os quais os paulistas gostam de falar e discorrem com propriedade. Não é porque os aluguéis são caros, nem os impostos altos. Acho… Digo isso porque, vendo o filme, perto de mim, quando Lincoln menciona Euclides, a amiga volta-se à outra amiga e pergunta: “Euclides da Cunha?” 


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