Blog do Inácio Araújo

Arquivo : September 2011

Coisas que não entendo nada
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Inácio Araújo

Uma coisa muito boa é falar de coisas que a gente não entende nada. Isso está naquela música formidável do Adoniran (com Carlinhos Vergueiro, se não me engano enormemente), em que os peões de obra vão almoçar conversando de coisas que nóis não entende nada.

Então de vez em quando vou falar de alguma. Futebol, para começar. Cada vez que abro a boca aparece alguém mandando eu falar de cinema de novo. Ok, chegaremos lá.

Vou avisando que não sou nenhum Juca, ou Tostão, ou Helena, mas também não sou tão alheio assim ao assunto.

Estou fascinado pelo Palmeiras. A única coisa que os cartolas de lá querem é se trucidar. Não importa reconstruir o estádio, ganhar o campeonato, nada, desde que o rival se afunde.

Talvez por isso o clube precise de uma entidade acima dele. A Parmalat teve esse papel e, na época, eles só ganhavam. Os dirigentes não tinham voz nenhuma.

Bem, agora não tem Parmalat, o time só entra pelo cano e todo mundo briga com todo mundo.

O Felipão percebeu uma coisa: que ele tinha que fazer esse papel do cara que está acima da diretoria. Ele é uma unanimidade. É um palmeirense típico, com aquele jeito de italianão duro, meio grosso mas simpático.

A torcida o adora porque percebe que é um torcedor mais que um profissional. Tem uma fidelidade ao clube que não é meramente profissional. E mesmo quando impõe o Luan, a torcida chia mas aguenta, até porque sabe que ele sabe o que faz.

Os cartolas o engolem porque sabem que nenhum outro técnico os aguentaria por muito tempo (sem falar que o time anda bem meia-boca). E outro técnico seria outro motivo de briga entre eles, que no momento já estão afundados em dezenas de outras disputas.

É claro, tudo isso não evita tensões. Sobretudo agora, quando o time está perdendo. Que o técnico possa sair (ou cair, tanto faz), sem dúvida.

Mas isso leva ao Palmeiras o perigo de entrar em um período francamente caótico, de lutas fratricidas ainda mais pesadas. Porque me parece que nenhum outro treinador teria condições de substituir essa instituição exterior que controla o clube, controla a cartolagem e bota a coisa para andar.

Estão aí meus palpites nessa área tão estranha. E corro de volta aos filmes, que ninguém fique preocupado demais.


Poética da insignificância
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Inácio Araújo

O que me irrita em uma parte dos filmes brasileiros é uma espécie de insignificância programada que resulta em, por exemplo, “O Homem do Futuro”.

São quase duas horas dedicados a, basicamente, não ter o que dizer. Imita-se bastante. No caso de “De Volta para o Futuro”, quase desavergonhadamente, no de “Carrie, a Estranha”, moderadamente.

Mas não é esse, em definitivo, o problema do filme. Imitar aqui e ali faz sentido. O que não faz sentido é fazer da protagonista uma garota com cara e jeito de cheerleader. Ou fazer Wagner Moura ir e voltar no tempo, fazer do tempo uma espécie de ioiô inconseqüente.

Depois dessa enfadonha passagem por uma estética de comercial velho misturada a superprodução laboriosa ficamos sabendo que, na vida, melhor é não voltar no tempo, é deixar tudo como está etc.

Até podia ser. Mas como se volta a 1991 sem captar nada daquele momento? O que vivíamos: Collor, entre outras. Nada está lá. Nada.

O essencial, de acordo com o filme, é que, sabendo tudo o que vai acontecer no futuro, o ex-cientista ganhar rios de dinheiro na Bolsa de Valores. Um sonho brasileiro: a informação exclusiva, “insider”.

Eu disse que nada há de 1991, de Collor. Há uma coisa: Collor fez a liquidação do cinema brasileiro como que para garantir que qualquer cinema futuro fosse mais ou menos como “O Homem do Futuro”, isto é, nada. Parece que não foi em vão.

Prosaico e simpático

Já “Larry Crowne – O Amor Está de Volta” conquista minha simpatia pelo simples fato de colocar em relevo coisas como a busca do conhecimento e a leitura (em livros).

Em livros, isto é, existe uma implícita condenação dos celulares, dos games, da internet. De tudo o que é dispersivo, nos entope de conversas supérfluas, nos oferece o vazio.

No mais, o filme é mais uma comédia romântica em que Julia Roberts namora um cara que em princípio seria inatingível para ela.

É o forte de Julia. Toda hora está envolvida numa história desse tipo. Ou é uma estrela que transa com um livreiro, ou uma prostituta por quem o cliente rico se apaixona etc. Aqui ela é uma professora durona em crise matrimonial e às voltas com um Tom Hanks também muito simpático.

Talvez não vá muito longe em seu prosaísmo, mas é bem digno. Será um filme para ver no DVD? Pode ser. Mas quem cair nele por falta de lugar no “Lanterna Verde” acho que não vai sair perdendo.


Outra lição argentina
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Inácio Araújo

Assim como tratamos com leniência (quando não com entusiasmo) nossos torturadores, tratamos com desprezo (quando não a marretadas) a cultura, e na cultura, o cinema em particular.

Já os argentinos, que encanaram não só pequenos torturadores, como os dementes que tomaram o poder no país a horas tantas (os Videla, Gualtieri e que tais) estão lutando para dar um golpe na absurda desconsideração com que é tratado o cinema.

Como informa hoje Sylvia Colombo, agora correspondente da Folha na Argentina, eles estão baixando uma norma (quem faz isso é o INCAA – Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais) segundo a qual o filme que entrar em mais de 40 telas terá de pagar uma taxa de exibição. A progressão é geométrica. Com 40 paga o equivalente a 300 ingressos, com 80, a 1200 etc. Isso em Buenos Aires. Nas demais províncias a taxa será menor.

Não entendi se a taxação é por filme, por semana, por mês. Mas entendo que, na pior das hipóteses, instaura uma maneira de a produção de blockbusters fomentar a de filmes locais.

Não seria pouco. Mas o peso moral da medida me parece bem maior.

O cinema, como eu disse acima, tem sido tratado como um assunto “de mercado” (inclusive, ou sobretudo, no Brasil). Isso é quase mundial. Foi uma vitória da nova Hollywood: fazer o espectador esquecer que aquilo ali significa mais do que o peso das moedas no caixa da lojinha (que, claro, tem sua importância). Cinema passou a ser uma coisa para “esfriar a cabeça” no fim de semana. Que nem ver programa de variedades na TV, só que fora de casa, para variar.

De quebra, come-se aquele balde indecente de pipoca, acompanhado por um copão indecente de Coca e alimenta-se a obesidade nacional.

Bem, cinema não é só isso, concordará quase todo mundo, ao menos quem acompanha o blog.

Mas o hábito de ver blockbusters e 3D em profusão acaba por confundir mesmo cabeças capazes.

À força de não esperar nada do cinema, quando aparece um “A Árvore da Vida” pela frente, confunde-se tudo. E a criação de tudo é confundida com imagens da National Geographic. Mas não é. Reclama-se (repito: não são tontos, são pessoas que considero) que podiam cortar aquilo tudo, reduzir aquilo tudo a umas poucas imagens.

Ok. Podiam. Mas se não cortaram deviam ter algum motivo.

O primeiro deles, me parece, é que a principal diferença entre as imagens daquele filme e os da National Geographic é, justamente, de “timing”. A TV nos ensinou que as coisas devem ser “entendidas”. Você viu uma paisagem o bastante para entender do que se trata, fim. Corta.

Bem, só que no filme do Mallick se trata da criação do universo. Não basta estender uma faixa e dizer: “e o mundo apareceu”. Não é bem assim. Deve-se sentir, experimentar a coisa em sua duração.

Isso é uma digressão, mas não à toa. Quero dizer que uma medida como essa da Argentina nos serviria muito, nos desviaria dessa dieta intragável de filmões raramente interessantes.

E mostraria, como querem os argentinos, que existe outra coisa no mundo das imagens em movimento além de super-heróis. Acredite: existe.

Nosso problema, aqui no Brasil, é que a Ancine, agência de regulação do cinema, está de mãos e pés atados aos blockbusters.

O cinema é objeto de eterna desconfiança. Ele precisa fazer sucesso. Se o filme não faz um montão de ingressos é porque é feito por uns vagabundos e, pior, esquerdistas.

Então, filme bom é aquele que faz sucesso. E filme que faz sucesso é, geralmente, aquele distribuído pela Globo Filmes, porque tem os atores famosos e anúncios na Rede Globo.

Então o nosso padrão virou essas coisas muitas vezes repugnantes, não só esteticamente, mas eticamente também, como aquela besteira sobre um sex shop, que é sem dúvida um dos pontos mais baixos do imaginário nacional desde os tempos de José de Anchieta (o padre, não o cenógrafo).

Então, a Ancine, na hora em que a cobrança aumenta, apresenta os números. Números. Está aqui. Não sei que filme, tantos milhões. Não sei qual outro, tantos milhões. O cinema merece existir. Substituição de importação. Essa besteirada toda.

Mas o espectador que se estraga no mau filme estrangeiro não se estraga menos no mau filme nacional. Se ele acha que o sumo da arte cinematográfica é A Mulher Invisível ou O Divã não adianta na semana seguinte entrar um bom filme, um Mallick, um Cronenberg, um Oliveira – ele simplesmente não reconhecerá aquilo, verá naquilo uma coisa estranha.

É por isso que essa medida é mais uma lição argentina. É por isso que o cinema argentino conta para a cultura do país e para o nosso o brasileiro é quase sempre insignificante (para recordar Gustavo Dahl). O brasileiro ou, sejamos francos, o mundial.

Correspondência

Não, ao contrário do que possa parecer, não abandonei o hábito de responder aos comentários. É que o novo sistema do blog se mostrou bem complicado, por um lado.

Por outro, andei usando dados errados nas respostas e essas nunca chegaram a seu destino.

Sofro de falta de tempo crônica, mas gosto que o blog seja um lugar de correspondência, de troca. Desculpem de todo modo.

Foi implantado um sistema novo e parece que a coisa vai melhorar.


Abaixo o MEC-Usaid
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Inácio Araújo

Minha geração, a de 68, certamente se enganou em quase tudo, a começar pela ilusão de que poderia enfrentar o governo militar brasileiro a poder de armas e que o povo seguiria a vanguarda. Não seguiu e quase digo ainda bem que não seguiu.

Mas o problema não está aí: acreditar que os EUA deixariam acontecer aqui algo parecido com o que houve em Cuba, onde uma pequena vanguarda, de uns 20 caras, acabou liderando a revolução, era uma ilusão quase infinita. Tenho razões para dizer o que digo, mas elas sequer vêm ao caso.

O caso é outro. É que, se acertamos numa coisa, foi quando saímos às ruas gritando “Abaixo o MEC-Usaid”.

Poucos de nós sabiam do que se tratava. Aliás, até hoje eu não sei direito. Não importa.

Basta ver o resultado de que acabamos de ter conhecimento a respeito da educação no Brasil. É uma desgraça. O ensino do Estado, em particular, é uma lástima.

Bem, o que eu quero dizer é isso: é muito bonito dizer que devemos fazer que nem a Coréia, destinar imensos recursos à educação, etc. Não sou contra isso, aliás.Mas me pergunto: e quem é que vai ensinar?

O abismo educacional no Brasil é tão intenso, tão violento, exprime tão bem o esmagamento das populações pobres pelas ricas, que hoje, quando o país voltou a crescer, não como os chineses, mas voltou, falta até quem saiba apertar parafusos, consertar sola de sapato e tudo mais.

O governo militar acabou com as humanidades. O governo militar fez do ensino público um simples depósito de jovens pobres. E arrisco dizer que providências como essas foram piores do que a tortura.

Porque a tortura (a política, ao menos) acabou, ficou para trás (mas esse “perdão” a torturadores é uma mancha durável e de conseqüências horríveis). A educação continua no buraco.

Como resolver isso? Com dinheiro, claro. Capacitando e aperfeiçoando professores, claro. Estou de acordo. Mas quem é que vai fazer isso se ninguém mais sabe nada de nada?

Durante décadas se desincentivou a leitura, porque era inútil aprender, porque isso não valia nada, economicamente. Um cara que lia era risível. O bom era o cara que enriquecia, que sabia os caminhos.

Mas agora, crescemos, e começamos a perceber que não se conserta uma janela direito, não se faz uma máquina de lavar quando não se lê, não se desenvolve princípios morais, essas coisas.

Então, hoje não falamos de cinema aqui. Mas falamos, sim. Essa é uma arte maravilhosa, que era em um momento partilhada por ricos e pobres, doutores e semi-analfabetos. Perdermos a perspectiva do quanto de democrático havia no cinema é muito mau.

Digo isso, também, um pouco sob o impacto da revisão de “A Árvore da Vida”. E revi a partir da perspectiva dos que acham que o filme poderia muito bem ser reduzido.

E entendi o que dizem. O filme para eles é muito longo, aquelas imagens “National Geografic” se eternizam. É verdade.

Mas acho que se pode observar da perspectiva do autor do filme. Trata-se de mostrar nada menos que o início dos tempos. Não dá para reduzir isso a um tempo mixuruco.
O evento é muito grandioso.

Ou então era melhor botar lá uma cartela: E o mundo começou. E depois começou a vida na Terra. E por fim veio o homem.

E estava resolvido o problema.

Não sei se é certo. Como já disse, o filme busca aproximar o nascimento do mundo e o do homem. O surgimento da espécie e o nascimento de cada um. O filogenético e o ontogenético.

O filho, a mãe, o pai ou: a água do ventre, a secura da Lei e eu: esse o drama.

Pode-se achar tudo isso uma bobagem, pode ser até que seja.

Mas da perspectiva do filme não havia outra solução.

É a mesma coisa o filme do Lars von Trier.

Para que se ocupar desse assunto, melancolia, depressão, se já existem belas pílulas milagrosas que nos alienam delas?

Bem, porque o resultado das pílulas milagrosas não é, para começar, tão milagroso assim.

Não dá para cobrir o inconsciente com pílulas e achar que tudo bem, está resolvido, a história acabou. Não dá.

Ou, para voltar lá onde tudo começou: Abaixo o MEC-Usaid, essa inesgotável mancada.


Super 8 – Um filme de duas cabeças
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Inácio Araújo

 

Tive a impressão, saindo de “S8”, que o nome de Spielberg, colado ao de J.J. Abrams nos cartazes não era apenas um artifício publicitário.

Me pareceu que, ao contrário, esse era um filme dos dois. Na primeira parte é predominantemente de Abrams, e o que dá as tintas é o mistério. O aspecto “espetacular” é tão pouco levado a sério que ninguém nem se preocupa em explicar como todos os heróis escapam de um desastre de trem apocalíptico, que acontece ao lado do lugar onde filmam, sem um arranhão, praticamente. Aceitamos a convenção e não se fala mais nisso.

Também fiquei pensando que se fosse um filme só de Abrams certos aspectos estariam mais em evidência. Assim, o acidente que mata a mãe de Joe teria mais sentido, assim como começar o filme pelo velório.

A expulsão do pai de Alice do velório é interessante, mas não se explica de maneira conveniente (melhor seria que nada fosse explicado) e acabará neutralizada na parte final.

Também fiquei achando que a rivalidade entre Joe e o diretor do filme, Charles, seria não apenas referida no diálogo entre os dois, mas ganharia relevo caso o filme fosse só de Abrams.

Na segunda metade, o mistério lançado praticamente desaparece e dá lugar ao monstro, isto é, no caso, ao alien. Que tem um aspecto interessante, é verdade: nunca sabemos exatamente como ele reagirá diante dos personagens. Mas se trata apenas de desenrolar uma trama, nada mais.

As sugestões do início (inclusive o filme de vampiros) são meio que varridas do filme (este só reaparece nos créditos, e de maneira muito simpática).

Enfim, é apenas uma impressão, mas parece por vezes que cada um, Abrams e Spielberg, está puxando o filme para um lado.

O que não o impede, diga-se, de ser bem acima da média do que temos visto.


A forma e o caos, ou “A Árvore da Vida”
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Inácio Araújo

Um aspecto de “A Árvore da Vida” que chama vivamente a atenção é o tipo de cenografia escolhida.

Na parte antiga, anos 50, é exemplar a organização, desde as ruas, com sua simetria, seus terrenos uniformes como as casas, bem como a decoração da casa, também uniforme em sua modernidade. Isso não se transforma quando chegamos aos anos 2000, embora o cenário se transforme de forma radical, passando aos grandes arranha-céus.

Em ambos existe uma organização racional, ou uma tentativa racional de intervenção do homem no mundo: acomodar da melhor maneira possível as famílias, os seres, os desejos.

Em oposição, existe o mundo, ou antes, o caos do mundo, que se manifestará na tristeza do filho, na frustração do pai, no desencanto da mãe.

O homem põe e o mundo dispõe, em suma.

Pois este é, em grande medida, um filme sobre a arte. Sobre a tentativa humana de superar o caos do mundo, de dar-lhe forma, de submetê-lo pela forma.

Forma que pode ser arquitetônica ou musical, tanto faz.

Tenho a impressão de que existe um equívoco na suposição de que, por evocar o princípio dos tempos, o filme tenha implicado algum tipo de busca religiosa. O início dos tempos, assim como a saída dos seres da água designa, antes, a universalidade do tema: o esmagamento do filho pelo pai. E, depois, o desejo do filho de ver o pai morto. O Édipo, em suma. A acreditar em Ferenczi, a oposição ao pai viria das águas. As águas representam uma memória do ventre materno, da existência intra-uterina, segura e garantida contra todo mal, ali onde o feto é completamente feliz.

A forma é a grande, terrível luta do artista, primeiro, mas do homem em geral. Dar forma a um mundo infinitamente caótico. E, quando chega à forma, ela lhe escapa, obriga-o a uma nova operação, a um novo entendimento do mundo.

Talvez isso surja com clareza não apenas na figura do pai, incerto entre a música e a engenharia, a forma abstrata da música e essa outra, arquiconcreta, da produção para o mundo. E ainda dessas formas, não mais paradoxais, mas francamente contraditórias, do órgão, instrumento que lembra a religião, é certo, mas sobretudo esse tempo eterno a que aspira a convicção religiosa, em contraste com a afirmação de precariedade, de efêmero, do design moderno.

“A Árvore da Vida”, filme realmente raro, tem esses dois ramos: a percepção daquilo que é permanência na aventura do homem na Terra, aquilo que se repete de geração em geração, mas também a perpétua transformação das coisas, como uma árvore.


O cinema está de volta
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Inácio Araújo

E já não era sem tempo: estamos entrados em agosto.

Todo mundo há de convir, este tem sido um ano de amargar para o cinema até aqui. Tirando o Oliveira, o Kiarostami, não me lembro de mais nada que de fato valha a pena. Devo estar esquecendo de alguma coisa, mas… não de muita.

Isso para dizer que de repente entraram alguns filmes que mudam todo esse panorama sinistro. Dos que vi, “A Árvore da Vida”, do Terrence Malick, me parece uma acabada obra-prima. O máximo difícil de expor em poucas palavras.

Remeto ao texto que escrevi na sexta-feira para a Folha. Acho que ali mais ou menos consegui dar conta da coisa quase sem fim que é esse filme.

Perto dele, “Melancolia” virou um bom três estrelas. Um bom filme de Lars Von Trier, com imagens muito fortes no final e um olhar sempre original para as coisas. Mas, não sei, não é forte como o filme da Bjork, por exemplo. Ao menos é o que sinto agora: demorei séculos para reconhecer o interesse do filme com a Nicole Kidman.

Não vi “Super 8”, mas dá para botar fé. Não vi as famosas séries que o J.J. Abrams criou, mas o “Star Trek” foi uma bela surpresa.

O filme que me deixa meio perturbado é o do Hugo Carvana: “Não Se Preocupe Nada Vai Dar Certo”. Os colegas do Guia da Folha, que dão as estrelinhas, ao menos os que já viram o filme, mostraram infinitamente menos entusiasmo do que eu. Me senti um pouco solitário.

Embora esse não seja um sentimento de todo mau. É como quando passou o filme do Saraceni, “O Viajante”, na abertura da mostra anual do Cinesesc: um monte de gente deixou a sala. Mas é um grande filme, quem gosta de cinema notou.

Talvez o do Carvana não seja um grande filme, o tempo vai dizer. Mas existe uma diferença quase ontológica dele em relação às comédias brasileiras que tenho visto, que parecem ter como finalidade o nada. Uma espécie de Nirvana da nulidade.

Bem, o filme do Carvana tem aquela tocada anarco-carioca bem dele. É um filme de ator. Com o ator. Pelo ator e para ele. A arte de atuar, de ser outro. Essa arte tão próxima da vigarice.

E o que ele nos mostra? Esses atores, meio vigaristas, usando sua arte para enfrentar os outros vigaristas, os de verdade.

Não é o tipo de comédia para rir a bandeiras despregadas, até porque existe o cuidado de desenvolver um raciocínio, gentileza um tanto rara hoje em dia.


“A Tristeza e a Piedade”: um filme de intervenção
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Inácio Araújo

Muito a propósito, lembra um leitor/amigo que o título do DVD de “Le Chagrin et la Pitié” deveria ser “A Dor e a Piedade”.

Com toda razão: mas a Videofilmes optou mesmo por “A Tristeza e a Piedade”, embora seja “Dor” (assim, com maiúscula) a idéia que o original exprime e que, de resto, exprime a situação da França sob Ocupação entre 1940 e 1944. No entanto, essa é a única mancada na impecável edição.

Já um não-leitor sugere que eu não deva me meter com coisas como leis homofóbicas e me limitar a falar de filmes.

Bem, aí, para começar, nós somos cidadãos mais do que críticos, blogueiros, engenheiros, médicos, arquitetos ou o que for. Me parece dever de qualquer cidadão defender e lutar pela ampliação das áreas de liberdade, cidadania e tolerância.

Em segundo lugar, o cinema não existe fora do mundo. Ele está no mundo e se confunde com ele.

O cinema não existe para a gente se afundar num copão de pipoca à espera de que a tela nos proporcione alguns sobressaltos sensoriais – embora isso possa ser divertido de tempos em tempos.

O cinema existe, porém, para manter nossos olhos abertos. O cinema nos ensina a enxergar o mundo e também a intervir nele.

“A Tristeza e a Piedade” é um filme de intervenção.

Num dos ótimos extras do DVD, De Gaulle, entrando na Paris enfim liberada, em 1944, pronuncia um discurso onde fala de uma França verdeacdeira, da França unida, da França que luta (reproduzo de memória).

Nada contra. Era preciso falar isso mesmo. Era preciso fingir que houve um bando de renegados colaboracionistas, boa parte deles justiçados, cercados de bons franceses.

E seguir com a vida, contando, inclusive, com um monte de colaboracionistas que estavam na administração, pois é assim que as coisas são: se tirar todo mundo, o país para.

Mas essa ficção da “França que se bate” é que entrou para a história. Como se todos fossem resistentes da primeira hora.

É sobre essa ficção que se construíram a Quarta e a Quinta Repúblicas.

E com a ajuda, inclusive, dos comunistas, que estiveram na Resistência com os gaullistas e se aproveitavam do mito, também.

Sobre a Colaboração baixou um tremendo silêncio.

E por isso “A Tristeza e a Piedade” fez tanto barulho. Ela repôs as lendas em questão. E deixou claro que não foi bem assim. É o que dizem vários entrevistados. E o vergonhoso anti-semitismo que vigorou na França durante a guerra, bem, aqui veremos que ele não vinha só dos líderes. Estava disseminado na sociedade francesa.

É claro que há os resistentes, também. E há Mendès-France narrando a sua formidável fuga da prisão. Ou ainda o depoimento do ex-miliciano, ex-Waffen SS, ou seja, ex-colaboracionista, um depoimento muito franco, muito sincero, sobre o que foi a direita francesa naquele momento.

Enfim, são mais de três horas de um filme exemplar para quem deseja conhecer um pouco do que foi o nosso século. Pois a França da guerra (e de antes dela, sobretudo), teve tudo dele: comunistas e anticomunistas, democratas, militares, anti-semitas, gente deplorável, traidores, heróis, pensadores brilhantes, cretinos…

Enfim, mais até do que a própria Alemanha, que foi dominada por um pensamento meio primário (o nazista), a França que entra na guerra partida ao meio, entre uma direita e uma esquerda que se odeiam (e uma direita que prefere ver os alemães por lá do que os esquerdistas) é um lugar rico de idéias (e mesmo a direita não era idiota como tão frequentemente, longe disso), o que torna mais espantosa ainda a fraqueza molóide com que, na prática, se entrega o país aos nazistas e depois vive sob uma grande ficção (o governo de Vichy).

Em suma, posso falar e falar, não terá nem 1% do interesse do filme.

* * *

A TRISTEZA E A PIEDADE (Le Chagrin et la Pitié). Dir: Marcel Ophuls. França/Suiça/Alemanha, 1969. P&b, 251 min. Distribuição: Videofilmes.


“Orgulho heterossexual” é apenas eufemismo de discriminação
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Inácio Araújo

Não era para falar disso. Hoje era para falar de “A Tristeza e a Piedade”, o documentário de Marcel Ophuls.

Eu ainda chegarei lá. Pois no fundo é a mesma coisa.

Bem, o que eu quero dizer é: a Câmara dos Vereadores de SP aprovou um projeto que institui o Dia do Orgulho Heterossexual.

Algo, para começar, totalmente idiota, portanto, já se vê, à altura da atividade intelectual média dos vereadores de SP.

Mas isso passa. O problema é o que aí existe de torpe.

O “orgulho gay” pode ser uma coisa que parece besta. Mas se trata da afirmação de um grupo tremendamente discriminado, quando não perseguido e espancado. É um dia, em suma, contra o preconceito.

O “orgulho heterossexual” não passa de afirmação de preconceito, do desprezo pelo outro, por tudo que nos parece diferente.

O torpe, como o idiota, também está à altura dos vereadores. Ainda assim, não é pior da história.

Não existe, nunca existiu, orgulho heterossexual. Entre outras coisas porque não se trata de uma minoria ameaçada, agredida, desrespeitada ou discriminada.

Estou certo de que seria demais pedir aos vereadores que criaram esse monstrengo que considerassem por um instante que as pessoas não escolhem sua sexualidade. Que não é questão, como querem os Bolsonaros da vida, de levar um puxão de orelha. O mundo é um pouco mais complexo do que pode supor essa gente.

Trata-se, claro, de uma provocação barata, de uns caras cujo grande prazer na vida será afirmar seu “orgulho”, sua “superioridade”, chamando os outros de viados.

Mas esse é, digamos, apenas o aspecto benfazejo da coisa. Essa aprovação acontece alguns dias apenas após o massacre brutal na Noruega. Também uma afirmação de “orgulho”: do branco, europeu, cristão, nórdico, contra o imigrante, islamita, pobre.

O “invasor” que estaria destruindo seu mundo. O outro temível.

Só para fazer uma provocação na linha psicanálise selvagem, digamos que esses caras parecem é umas tias enrustidas.

Mas não é isso. Não é o que conta, em todo caso. Esses vereadores, assim como o atirador da Noruega, participam do mesmo entendimento do mundo. É por eles que o fascismo sobrevive.

Não espero grandes coisas do Kassab, mas espero que vete esse lixo.


O retorno das Cruzadas
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Inácio Araújo

Georges Bernanos achava uma bobagem o processo do marechal Pétain, no fim da Segunda Guerra.

Para quem não sabe, Pétain foi o marechal que liderou o governo títere da França, quando invadida pelos nazistas. Assinou um armistício vergonhoso e iniciou a chamada política da Colaboração.

No fim da guerra, evidente, foi julgado e condenado à morte, mas De Gaulle comutou a pena. De Gaulle que, por sinal, o governo de Pétain condenara à morte por traição.

Bernanos via em Pierre Laval, célebre primeiro-ministro, maestro da Colaboração, não o monstro que todos viam, mas um aventureiro. Seria aventureiro em qualquer circunstância, diz Bernanos.

A execução de Darnand, o líder das Milícias, uma espécie de força paramilitar que perseguia os próprios franceses, também é vista com ceticismo pelo romancista.

Esses artigos, de enorme lucidez, foram escritos pouco depois de voltar à França (estava exilado no Brasil, diga-se), o que é notável.

Naquele momento, os patriotas babavam em busca de sangue dos “colabôs”, como se a vergonha da França viesse deles.

Bem, a visão de Bernanos me parece tão mais interessante porque nos remete a acontecimentos muito atuais. Escreve ele, a horas tantas:

“Para qualquer observador desinteressado, está claro que a mística do Marechal não se originava diretamente do espírito fascista. O fascismo nunca teve esse caráter clerical. A mística francesa do Marechal nasceu de uma outra mística, à qual a propaganda religiosa já havia dado, desde 1935, um alcance universal: a mística da guerra espanhola e da guerra santa entre os Bons e os Maus, os Puros e os Impuros, os Amigos e os Inimigos de Deus, os Vermelhos e os Brancos, breve: a mística da Cruzada.”

É de guerra santa que se trata hoje. Os fanáticos do islamismo alvejam as Torres Gêmeas. Os do cristianismo matam os jovens trabalhistas. Os do anti-israelismo matam em Israel. Os do anti-palestinismo matam em Gaza.

Como cada um tem sua verdade, como sua verdade se assenta na Bíblia ou no Alcorão, com eles não existe negociação possível: é o espírito da Cruzada.

Ele existia na França do pré-guerra com tal intensidade que os Colabôs não estavam infelizes por ver os alemães em seu país, na medida em que eles afastavam do horizonte os esquerdistas.

Mas não existe hoje?

Esse assassino norueguês será alguém tão isolado assim? Longe disso. Os fundamentalistas estão por toda parte. Não conversam senão entre si. Não admitem senão a própria verdade. Matam os outros e acham que está tudo certo.

O que move o norueguês a gente sabe bem o que é (o que move os muçulmanos tipo xiita eu não chego a entender): o ódio ao estrangeiro, ao imigrante, ao judeu, ao homossexual.

Vejamos aqui ao nosso lado mesmo: no momento em que arrancam a orelha do pai que abraçava o filho, onde se esconde o valentão Bolsonaro, de tantas bravatas? Por que ele não tem nada a dizer nessa hora? E o arcebispo? E os pastores evangélicos?

São inomináveis cretinos, é verdade, mas insuflam esse tipo de sub-humanidade que ora pode trucidar gays, ora destruir edifícios.

Bernanos via longe, é incrível. Ele acredita que as forças que haviam produzido coisas como o nazismo estavam longe de ser dissolvidas pela derrota na guerra.

Bom, aí está. Fico aqui e acho que já falei demais.

Na verdade eu queria falar de “A Tristeza e a Piedade”, o poderoso documentário de Marcel Ophuls sobre a França da Ocupação, que acabou de sair em DVD.

Voltarei a ele.