Blog do Inácio Araújo

Arquivo : May 2011

Nossos documentários
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Inácio Araújo

A pergunta-afirmação que mais se faz é:

“Nossos documentários melhoraram muito, não é?”

Não estou muito de acordo com a idéia de que “melhoraram”, porque parece que antes eram ruins.

Tanto não eram que o melhor documentarista dos anos 80 (Eduardo Coutinho) é o melhor documentarista hoje.

Mas parece evidente que, na média, o documentário se sobressai hoje como um gênero essencial no cinema brasileiro, apesar de sua bilheteria, na média, ser pequena.

Há uma média de uns 10 documentários ao menos muito interessante, todos os anos.

Tenho a impressão de que nenhuma categoria de filme se beneficiou da passagem ao digital mais do que o documentário. Algumas razões para isso eu consigo ver:

a) O que custava caríssimo, o negativo, foi praticamente eliminado sem deixar saudade. Ganhou-se tempo, um tempo inestimável, o tempo a ser jogado fora, das coisas que não dão certo, do que acaba sem interesse, etc. O documentário precisa desse tempo livre, não é uma coisa que se decupa antes (nem se roteiriza, a bem dizer, apesar dos concursos…).

b) Ao mesmo tempo, o documentário chega com muita agilidade a mais ou menos todos os assuntos de interesse e não investigados da vida nacional: políticos, sociais, culturais – o que se quiser.

c) E tenho a impressão de que as pessoas querem, hoje, conhecer essas coisas: pode ser a Portela, o lixão, a trajetória do cantor, do grupo teatral, o que se quiser. Aliás, que bom que seja assim.

d) Por outro lado, existe um desgaste da ficção, que por sinal não é só brasileiro. Basta ver o número de filmes que se dizem “baseados numa história real”.

Ora, se é história já devia ser real. Ou a ficção nasce das pedras? A cabeça do ficcionista seria irreal? A fantasia seria irreal?

Enfim, existe essa crise da ficção, como se ela fosse o que não acontece.

A não ser que seja em 3D, claro. Aí pode mandar chumbo. Mas, no cinema, parece que a condição da ficção é a terceira dimensão.

e) Por fim, é preciso admitir, o documentário com frequência depende muito mais do mundo exterior do que de outra coisa.

Digamos aquele documentário sobre a Velha Guarda da Portela. Eu tenho a impressão ali de um caos visual, parece que vai para um lado a cada sequência, etc. e tal.

No entanto, existe a música, existem os personagens. Ponto final: a gente assiste e sai feliz. É isso que importa, não?

Há os equívocos completos, como o filme do Simonal. Mas, ainda assim, temos a sensação de estar sendo informados de alguma coisa (ainda que informados tortamente: na verdade, esse me parece o rascunho de um doc a ser feito, sobre o Simonal, sobre O Pasquim, sobre o Dops. E também sobre o doc.).

Do outro lado há os filmes pernambucanos, sobre os quais não vale falar: seja Cartola ou Humberto Teixeira, eles estão bem acima do que se faz hoje em Rio-SP, tirando fora os suspeitos de sempre.

Mas coisas muito interessantes acontecem de vez em quando que não seja Coutinho ou João Salles ou Tonacci (admitindo-se que “Serras da Desordem” seja um doc, coisa de que não estou convencido). Casos do filme sobre o carrasco dinamarquês e também do “Uma Noite em 67”, este em menor escala, na verdade. Sem diminuí-lo, longe disso, mas é que o filme do Boilesen é uma aula.

f) Para completar, uma coisa que não compreendo: essa história de auto-ficção;
O que é auto-ficção? Ou por outra: o que não é auto-ficção? Toda ficção, me parece, é “auto”. Toda boa ficção é, à sua maneira, um doc.

E, diria Coutinho, todo bom doc não passa de ficção. Talvez.


Imagens da fé
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Inácio Araújo

Qual será a religião da era internet?

Na era do cinema o catolicismo imperou. Só Dreyer, o protestante, foi exceção, aproximando o natural do sobrenatural, o homem do milagre – Deus e os homens, em suma.

No catolicismo, essas duas esferas são distantes. Existem até os santos para interceder por nós.

Em compensação, o espetáculo sempre foi um forte do catolicismo: procissões, festas, fogueiras (com gente dentro), desfiles com bispo e imagens. Tudo isso sempre foi sua força: a distância entre o nosso mundo e o de lá, o da vida eterna.

O catolicismo produziu Hitchcock e Buñuel, Rossellini e Pasolini, Bresson e Rohmer.
Já para não falar dos coroinhas, como Zeffirelli.

Mas o tempo do espetáculo solene passou.

Veio a televisão e, com ela, o coloquial: os pastores neopentecostais. O natural e o sobrenatural se aproximaram de uma maneira talvez inédita, diferente em todo caso.

Eles vêem o diabo em toda parte. Tudo se explica pela presença do demônio: desemprego, vida conjugal, vida sexual.

Exorcismos em massa. Ah, e o velho professor Lemgruber, do velho “O Povo na TV”, que comeu o pão que o diabo (ele mesmo) amassou por causa de suas curas rápidas!!!!

Eram rápidas, porém leigas.

Agora é diferente. Não há mais doentes: todo mundo está endemoninhado.

Tudo depende de fé. De muita fé. A fé remove montanhas. Tudo depende de cada um de nós, em suma.

Os neopentecostais, pode ser contra ou a favor, tanto faz, fizeram isso: jogaram a responsabilidade nas costas do fiel e em sua relação direta com Deus.

Deus e o homem tornaram-se próximos, quase íntimos.

E também aproximaram o mundo espiritual e o material, que os católicos mantêm solidamente divorciados.

Na TV, o pastor promete que, com fé, você terá casa própria, essas coisas.

Na Rede Vida, às 6 da tarde, um bando de carolas puxa o terço. É uma espécie de anti-marketing, acho…

Há pastores que fogem com dinheiro para o exterior, demonizam a umbanda… Mas ninguém pode reclamar muito do lado católico: em matéria de demonizar outros credos, não há quem tenha mais know how do que a Igreja Católica.

O pessoal da umbanda, claro, poderia reclamar muito.

Os espíritas reagem com filmes. Aqui no Brasil, em todo caso. Mas eles não aspiram, nunca aspiraram a ser majoritários. Querem ser respeitados.

E o catolicismo?

Bem, fez aquele filme lamentável sobre Aparecida.

Milagre de verdade seria a Tizuka fazer um filme bom.

Os católicos estão por fora da TV e, agora, também do cinema.

O pe. Marcelo queria cantar para o papa novo. O papa não quis nem saber. É um aristocrata.

Então, o Vaticano tentou o teatro: a beatificação de João Paulo II.

Para começar, perdeu o timing. Todo mundo estava preocupado é com o espetáculo do casamento real na Inglaterra.

O povo prefere casamento a canonização, está na cara.

O casamento é uma experiência ao alcance de todos, gera identificação. Beatificação gera, quando muito, respeito.

O século 21 não é do respeito. Nem da devoção. É tudo de igual para igual. Tempo da democracia: de cuidado com o Demo. Com Deus é preciso falar de igual para igual.

Isso até agora, claro. O século 21 passa muito depressa. Deverá haver muitos séculos 21 ainda. Não sei nada de teologia, mas pergunto para onde, em termos de comunicação, caminhará a fé.


Sobre Leon Cakoff
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Inácio Araújo

Ainda estava em choque com a mais recente manifestação de leitor do Guia da Folha.

Um engenheiro, ele sugere que, como todos os leitores (que se manifestaram por escrito) gostam de tal filme e os críticos não, suprima-se a crítica.

A idéia geral do homem é mais ou menos a seguinte: se o consenso substitui o raciocínio, por que pensar?

O filme não seria um objeto simbólico que introduz algo no mundo e pede o trabalho de nosso juízo. Ele não tem futuro, nem passado. Esgota-se na “opinião dos leitores”.

Bem, sempre se pode argumentar que os críticos não são bons intelectuais, que se colocam diante do objeto de maneira arrogante e que essa arrogância corresponde à sua ignorância.

Pode ser. Ainda assim…

Nisso estava quando chega o artigo do Leon Cakoff de domingo, na Folha: um belo relato de sua situação de saúde, de que tomara conhecimento há alguns dias e que, para falar a verdade, tentei fazer como se não existisse, tentei negar.

Não foi da Mostra que lembrei primeiro. Foi dele como crítico. Foi de nos ter trazido, mostrado, aberto os olhos para Manoel de Oliveira, Abbas Kiarostami, Amos Gitai e tantos, tantos outros. Sem falar das grandes mostras do cinema iraniano, Roger Corman, Satyajit Ray, Yoshida. Sem falar dos livros que lançou, como aquele, formidável, sobre Ozu (do Yoshida) e tantos outros. Ou daqueles em que teve a gentileza de me convidar para escrever, como “Os Filmes da Minha Vida”.

Um crítico é isso: uma partilha de conhecimento. Leon tem levado a Mostra com força. Não agora, que o vento sopra a favor. Mas quando, contra, tinha a ditadura, a burocracia, a falta de patrocínio, a concorrência do festival do Rio, com muito mais dinheiro.

Mas, diante de todas essas dificuldades, Leon nunca deixou de organizar a melhor Mostra possível, desenvolvendo uma concepção clara do que queria: um cinema humanista, progressista, resistente quando preciso, sempre vivo, sempre ligado à vida.

Leon sempre foi muito acusado de ser um tirano e um chato. Deve ser mesmo. Quando se tem a ambição que sempre teve, quando se tem (mal e mal) os meios de desenvolver uma idéia, não se pode ser diferente. A Mostra de SP sempre foi “a mostra do Cakoff”. Ninguém duvidou disso nunca, nem a Renata, seu braço direito e também esquerdo. E por isso se firmou como um evento dessa importância.

Isso é trabalho crítico. Ele é abrasivo, implica em escolher A ou B, ou ainda A contra B. Não é sua essência, mas passa por aí. Talvez nosso engenheiro ache que André Bazin não vale nada porque gostava de um cineasta pelo qual hoje não se dá grande coisa, como William Wyler. É possível que isso não interesse muito aos leitores que protestam, para quem a divergência é uma espécie de sinônimo de ofensa. Em todo caso convém lembrar dessas coisas. Assim como a curadoria que certos críticos fazem para mostras do CCBB, digamos, ou para festivais. Ou o trabalho de revisão de certos autores. Ou de divulgação de certos livros. Etc. etc.

Alguém poderá dizer que a sugestão foi uma piada, apenas, um lance de humor. Não digo que não: está na linha do humor de TV com que vez por outra me deparo (efeito zapping) e do qual fujo correndo, porque a barbárie chega a jato.

Na outra ponta dessa história existe Alcir Pécora, o crítico literário que ressuscita a crítica literária.

Não gostaria de passar em branco por essa história, não.

Mas, por agora, torço muito para o Leon se safar dessa, produzir belas críticas com que concordarei ou de que discordarei, e, sobretudo, nos dar a Mostra ainda por muitos anos.


O Dia do Contador
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Inácio Araújo

Quer dizer: com toda franqueza não sei se existe esse dia.

Mas acho que é hoje, depois que acaba a entrega do Imposto de Renda.

Então, minha homenagem aos esforços para que eu pague mais imposto é a revisão do “Simonal –Ninguém Sabe o Duro que Dei”.

O contador é a figura.

Depois de um baita esforço do filme para demonstrar, por um acúmulo de autoridades, opiniões, testemunhos, que Wilson Simonal foi antes de tudo um cara perseguido porque era negro e bem-sucedido, os realizadores do filme acharam ele: O Contador.

O contador que, quando se viu na falência, o Simonal contatou uns amigos que trabalhavam no Dops para dar o que se chamava, talvez ainda se chame hoje, uma coça.

Bem, quem não quis, uma dia na vida (ou mais de um) bater no seu contador? Atire a primeira pedra. Eles levam a culpa pelos impostos que a gente tem de pagar.

Pois o Simonal passou ao ato.

Será tão horrível assim ter amigos no Dops?

Eu não teria. Mas acho que um cantor, bem, é fácil, os caras chegam, eles querem ser amigos do sujeito famoso, se encontram no bar…

O fato é que deu tudo errado. Os cretinos do Dops levaram o contador para as masmorras e o torturaram horrivelmente, até que confessasse tudo o que alguém pode confessar.

Entrementes, a mulher do contador, sabendo o seu sumiço, foi à Delegacia, dar parte do desaparecimento do homem. E, claro, entre as duas instâncias, mobilizadas ao mesmo tempo, deu o maior bode.

O contador conta tudo no filme.

Acho que foi honesto da parte dos realizadores do filme inserir esse “outro lado”.

O problema é que ele destrói o filme. Tudo vem armado para demonstrar que o Simonal era um bom sujeito, simpático, bom cantor, controlava a platéia, vendia disco, etc. etc. etc.

Aí aparece o contador e fica tudo manchado, muito feio mesmo.

A verdade é que o Simonal não foi execrado por isso, mas por ser, supostamente, delator a serviço do Dops ou algo assim.

E isso deve ter sido algo cultivado pelo Pasquim, cujos representantes no filme tiram o corpo fora, se eu bem entendi, e jogam a culpa no tempo atribulado.

Não sei. Seria mais honesto assumir que a partir de um boato se construiu um fato que arrasou de fato com a vida do Simonal, cuja irreponsabilidade, no mais, o filme demonstra em último grau.

Dito isso, o filme serviu mesmo foi para limpar o contador.

Então viva o Contador, esse ser que me esfola todo mês.


Um filme de aventura ou Passagem pela Índia
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Inácio Araújo

Faz pouco tempo, num debate, o Francis Vogler, respondendo a pergunta sobre o que pensava dos novos cineastas, disse, na lata: “Eu acho que eles não têm vida interior”.

Claro que não falava de todos. Mas soou como um bem achado desabafo.

Começo por aqui porque ninguém poderá dizer que a Beatriz Seigner não tenha vida interior. Quando terminou o secundário ela se mandou para a Índia porque queria conhecer melhor a obra do Satyajit Ray.

Depois, quando voltou ao país, com o projeto de “Bollywood Dream”, tinha acordo com um estúdio de lá. Mas lhe queriam empurrar todo o maquinário bollywoodiano, o que implicava, entre outras, aguentar o ventilador que ligavam a toda hora para balançar o cabelo das atrizes.

Ela preferiu pular fora e fazer o filme como independente. Essas coisas ela me disse há algum tempo e estou reproduzindo de cabeça.

O filme eu vi ontem e me parece bem corajoso, com seu tom documentário, uma espécie de espontaneidade que deixa o sentimento de tudo estar sendo inventado na hora. Certamente algumas coisas foram mesmo.

Daí, em parte, os altos e baixos do filme, que são muitos. Há momentos em que meu interesse se dispersava inteiramente. Mas, penso, também é que hoje esperamos filmes em linha reta, incapazes de nos dispersar, mas também incapazes de se aventurar.

“Bollywood” me parece um filme de aventura. De aventura do próprio filmar, primeiro. E aventura das três garotas, as três atrizes que vão tentar a sorte no cinema indiano e ao longo do filme acabam mesmo numa viagem espiritual, numa iniciação, num aprendizado do que seja a Índia.

E para que serve essa iniciação? Para nada. Quando o filme termina parece que estamos no vazio, no esvaziamento completo. E mais, num filme moderno: filme sem fim. Sem final, eu quero dizer.


Chupa-cabra e outros sanguessugas
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Inácio Araújo

Aqui em SP, começa no Itaú Cultural a nova mostra do Cinema de Bordas. Quem organiza é o pessoal liderado pela Bernadette Lyra, que inclusive já publicou livro sobre o assunto.

Bordas são as margens. É uma outra maneira de dizer marginal, que não se confunde com o conceito de Cinema Marginal que conhecemos dos anos 70. Aqui é um cinema feito na raça, no digital, usando a família e os amigos como elenco etc.

O resultado é não raro lastimável. Mas, acima dele, existe um desejo de produzir imagem que se impõe: amador no sentido de que se percebe ali gente que ama as imagens, e não o comércio das imagens.

Mas, por vezes, o resultado é surpreendente. E há momentos em que vemos ali um último suspiro da arte popular que o cinema já foi.

Só que hoje fazer o filme se tornou acessível a muita gente. O consumidor de imagens se torna também produtor.

Vale a pena dar uma chegada lá. Quem costuma me dizer o que há de melhor lá é o blog do Carlão Reichenbach ou a Revista Zingu (revista eletrônica).

E outros sanguessugas

Lêdo Ivo abre o berreiro contra herdeiros que controlam a obra de escritores mortos. Eu estou de acordo.

Ora, se existe a idéia de que a propriedade deve ter uma função social, caso contrário pode ser retirada de seu dono, por que isso não se aplica à produção intelectual?

É claro que há herdeiros capazes de zelar pelo trabalho de seus antepassados. Mas uma boa parte deles quer, deles, apenas os dividendos.

No caso de Lêdo Ivo, ele queria publicar umas fotos em que está com Manuel Bandeira. A família pediu grana (eu uso essa palavra que detesto, acho feia, porque a coisa me parece mesmo feia, argentária). É ridículo, isso.

No cinema, somos impedidos de ver “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, filme importantíssimo de Roberto Santos, por capricho dos herdeiros (ou é uma herdeira, não sei direito) de Guimarães Rosa.

E por aí vai.

Lêdo Ivo mesmo fala da família que impede a circulação de uma biografia de Cecília Meireles. E há casos outros: biografia de Noel Rosa, por exemplo. São casos em que os herdeiros se acham com direito não só à obra como à história cultural do sujeito e, mais que isso, do país.

Ok, reclama-se dos juízes que dão ganho de causa aos herdeiros. Não entendo disso. Mas me parece urgente reformar essa legislação. Desse jeito não é possível. È um não-me-toques incompatível com o conhecimento. Não faz sentido.

Os trajes

É uma medida estranha, essa da França.

Me parece que não se deve aceitar hábitos, trajes, objetos religiosos em escolas públicas. Isso é uma coisa.

Mas impedir as muçulmanas de circular com seus trajes característicos nos lugares públicos não seria uma discriminação?

Vejo aqui em SP, aqui perto de casa mesmo, um monte de judeus religiosos com seus chapelões, suas barbas, suas kipás. As mulheres com suas cabeças cobertas por panos. Deveriam ser proibidos? E a título de quê?

Só por que esses hábitos me parecem exóticos e, eventualmente, meio tolos? Como posso julgá-los?

E se proibi-los devemos proibir também os caras da TFP que também circulam por aqui com uns ternos característicos e crucifixos ou similares na lapela?

Desse jeito a França periga acabar que nem o alienista de Machado.

O problema não são os valores republicanos de 1789. O problema é que o mundo mudou. Que hoje será preciso aprender a conviver com hábitos, modos de ser, de vestir, de comer diferentes, que mal conhecemos.

“Entre os Muros da Escola”, aquele belíssimo filme, coloca muito bem essa questão no interior de uma sala de aula: como ensinar Voltaire ao cara que chegou ontem da Costa do Marfim ou da Mauritânia?

Não dá para ensinar e não dá para não ensinar. É um impasse. E ele tem de ser pensado como impasse, não por medidas de força.

Os Críticos

Prossegue no Guia da Folha a revolta dos leitores que não concordam com tal ou tal avaliação.

É estranho. Reclamam da avaliação do crítico (no caso era o André Barcinski) e, como se diz, vão tirar satisfação. Mas será que se deram ao trabalho de ler o que ele escreveu?

De minha parte, vivo participando de mesas, de debates, discutindo o trabalho dos filmes, sua história, sua estética etc. Não me lembro de ter visto essas pessoas indignadas em nenhum desses debates.

A ideologia do consumo pode ser tenebrosa. Acho que já escrevi aqui: quando eu era garoto, via um filme, lia um livro, adorava, ia ver o que o crítico dizia. Se ele tinha uma opinião diferente eu queria saber por quê, o que eu poderia aprender com esse cara que tinha mais experiência e saber do que eu etc.

Por alguma estranha disfunção, hoje o cara não acha que tem de aprender nada com o crítico. Longe disso. Até aí tudo bem. Quer dizer, não acho tudo bem, não: é uma coisa preguiçosa, ranzinza e simplesmente presunçosa. Pois tome da pena, escreva suas impressões e as coloque num blog, por exemplo. Isso é uma atitude ativa.

Em vez disso, há pessoas que correm para a seção de cartas babando de indignação, como quem vai ao Procon, como se o crítico estivesse lhes oferecendo creme de leite fora do prazo de validade.

Estou longe de achar que o crítico está sempre certo. Mas isso me parece uma atitude anticrítica, isto é, que não concebe o produto simbólico como um objeto de idéias, que necessariamente comporta fricções, inclusive entre quem escreve e quem lê. A graça está, justamente, nisso.


A Cara do Massacre
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Inácio Araújo

A primeira coisa que fiz foi passar reto pelo vídeo do cara que provocou o massacre de Realengo. Não queria ver aquilo, a cara dele, e muito menos ele falando.

Foi a história da internet que me fez mudar de idéia. Claro que não é o fato de estar ligado na internet que o leva a adquirir tendências homicidas ou suicidas.

Será a religião?

Como em muitos outros casos, fiquei com a impressão de que a religião é uma fachada para outros problemas.

Ele faz uma salada de Corão, Bíblia, retórica dos programas evangélicos da TV ou manifestos da Al Qaeda.

Mas tudo é afinal muito laico: o problema são as mulheres, as meninas que em algum momento devem tê-lo esnobado e feito sofrer. O bullying, segundo ele.

O cara pode ser louco, mas absorve a retórica que rola na mídia rapidinho.

Essas idéias circulam como as do dr. Mabuse. Quem assistir “O Testamento do Dr. Mabuse” notará a semelhança: Mabuse, preso, escreve loucamente na sua cela. E esses papéis, essas ideias que têm o poder como centro, hipnotizam, sim. E hipnotizam os caras que nem esse de Realengo, de cabeça fraca, digamos assim.

Não foi à toa que os nazistas tiraram o filme de circulação. Eles sabiam que o Fritz Lang, de algum modo, se referia a eles.

O cara do massacre fala como leitor desses blogs tipo Bruno Fascistinha que existem às pilhas por aí. Profissionais ou amadores, tanto faz.

* * *

Agora é o bullying a questão: o mal do século dos próximos meses.

Não é que não exista. Não é que não seja desagradável.

No meu tempo de escola, se o cara era muito branco chamavam de Coalhada; se era mais escuro, chamavam de Tição; se era gordo, virava Pudim. As garotas feias eram maltratadas pelos caras, que nem deve ser até hoje. As bonitas nos maltratavam, até porque na adolescência é difícil saber o que fazer com a atração que se exerce.

Pelo que entendi, o cara não era puro. Não tinha nada de puro (quem tem?). Ele não pegava nada e aí ficou desse jeito, resolveu que as mulheres são o mal do mundo, essa coisa toda.

Coisas assim rolam de fato na internet, e muito, porque as pessoas falam qualquer coisa, colocam ali suas frustrações, ressentimentos, ódios, mas fica só isso, um desabafo, uma manifestação subjetiva, nenhum conceito, nada de aproveitável, em resumo.

Agora vem a criminalização do bullying.

Claro que é uma coisa condenável, eventualmente horrível. Mas a exagerar, vamos pretender buscar na Justiça indenização e pena para cada um de nossos sofrimentos.

O bullying, como se diz, é o ato de importunar o outro, seguidamente, seja por qual motivo for. O motivo é o de menos: inventa-se. O importante é dar saída para a agressividade. Todos temos, inclusive “o puro”. Sobretudo “o puro”.

O importante é o que se faz com isso. Agora há pouco li no Uol que James Joyce sofreu bullying. Grande novidade. Quem não sofreu? Quem pode passar pela adolescência sem sofrer?

O Joyce foi ser o Joyce, não matou ninguém. O cara de Realengo fez diferente: não é que a internet forme boçais. Ela os agrupa, é da sua natureza. Também agrupa outras categorias de pessoas.

O cara de Realengo, essa confusão mental absurda, mas essa ritualística voltada para a câmera, essa espécie de terrorismo iconográfico, que no fundo se copia de Hitler e do nazismo, tudo isso ele tinha.

* * *

Na hora do luto a gente fala muita besteira. É quase indispensável ao luto.

Eu mesmo reclamei da segurança na escola pública.

Concordo com quem disse, como a Patricia, que a escola pública (ou não) não deve se tornar um bunker.

No mais, a catástrofe, pelo que li, teria acontecido de qualquer modo.

Mas fiquei aliviado, hoje, quando vi uma turma de alunos de escola pública transitando pela rua com dois PMs atrás, fechando fila, e depois parando o trânsito para elas passarem: é preciso que as crianças sejam protegidas. E que tenham condições de aprender, claro.

* * *

Como nessas horas se fala muita besteira, Sarney desencavou o plebiscito sobre armas de fogo.

Bem: passado o impacto, as pessoas serão contra de novo.

Não adianta dizer, racionalmente, que isso é mais perigoso: ninguém vive se não tiver a sensação de segurança, por falsa que seja.

* * *

Último ato: por venderem uma arma já foram presos três.

Aonde se vai chegar com isso? A absolutamente nada.


Dez anos
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Inácio Araújo

“Chico Xavier”, “Nosso Lar”, “A Mulher Invisível”, “Tropa de Elite” (1 e 2), “Bruna Surfistinha”, “VIPs”…

Quem diria, há alguns, que os filmes brasileiros iriam se destacar tanto assim, na disputa insana por espaço nas telas?

Essa e outras ideias me veem à cabeça a respeito da mostra “Cinema Brasileiro: Anos 2000, 10 Questões”, que começa amanhã no CCBB de São Paulo e depois vai ao do Rio.

Convém lembrar, porém, que isso não é inédito. Sempre que aumenta a renda, sempre que cresce a autoestima dos brasileiros, a bilheteria dos filmes brasileiros também cresce.

Isso não deve diminuir os méritos de quem acertou na mosca ao tatear o interesse do espectador, aquilo que o leva a sair de casa e procurar um cinema e comprar um ingresso.

Claro que a Globo tem uma parte enorme nisso. Mas a Globo, convém lembrar, ganha todas: nas eleições, no futebol. Por que não ganharia no cinema?

Pessoalmente, devo deixar claro que esse não é o cinema dos meus sonhos. Mas me pergunto o que, no cinema do mundo, é hoje “dos meus sonhos”.

Este ano especialmente está de doer.

* * *

E, por uma vez, acho que pela primeira vez o público conhece a maior parte dos filmes que concorrem ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.

Se quiserem ter audiência na televisão e todo esse lero-lero convém que os filmes sejam conhecidos.

Agora, esse nome turfístico que inventaram não dá pé, por mais Tropas e Chicos que apareçam.

É preciso ir atrás de um cara de marketing que dê nome, cara, apelido a esse troféu, que o torne minimamente acessível ao público.

* * *

Para discutir:

Esse cinema que dá público também dá dinheiro?

Ou seja, cobre seus custos?

Convém fazer o cálculo ou esquecer do assunto?

O assunto, claro, chama-se subsídios.

A presidente chamou as mulheres cineastas para um convescote, há alguns dias.

Bem, não entendo muito esse clube da Luluzinha: o que têm os homens de menos, afinal?

O que Tizuka Yamasaki faz que qualquer homem sem talento não seja capaz de fazer?

Mas Dilma Rousseff teve bom gosto: projetou ”É Proibido Fumar”.

É importante ter uma presidente que não se deixe enrolar nesses assuntos, que saiba distinguir filmes bons de filmes ruins.

E, convém não esquecer, ela prometeu encher o Brasil de cinemas.

Não é uma reivindicação que deve ser vista como algo corporativo, mas uma atenção à cultura, à necessidade integrar as artes e as letras à nossa vida normal: os governos se preocupam com o progresso material dos povos, o que é importante, mas sobretudo no Brasil parece que o progresso espiritual não tem grande importância.


Xuxa vs. Massaini
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Inácio Araújo

Estranha disputa, essa entre Xuxa e Aníbal Massaini, por conta de “Amor, Estranho Amor”.

Xuxa havia conseguido interditar a saída do filme em vídeo, nos anos 1990, que poderia representar certo perigo a sua imagem de “rainha dos baixinhos”, até porque ela fazia uma cena de nu em companhia de um menino.

Não me parece que o essencial fosse o fato de abalar uma imagem de “fadinha”, mas, ao contrário, escancarar o fato de que a “rainha” era extremamente erotizada, o que contribuía, aliás, para o sucesso do programa também entre os altinhos.

Mas não sabia que o produtor, no acordo, recebia US$ 60 mil anuais.

Bem, agora, o prazo do contrato terminou, se é que entendi bem, e Aníbal resolveu não renová-lo.

Isto deve ser de direito dele, tudo bem. Mas, se de fato recebeu essa mesada de Xuxa por todos esses anos, diria que agora sua atitude é pelo menos duvidosa moralmente.

Por outro lado, me parece absurda essa história de ir à Justiça interditar obras de arte ou trabalhos intelectuais, quer gostemos deles, quer não.

SIDNEY LUMET

Seria preciso uma retrospectiva alentada para se verificar tudo que Lumet trouxe ao cinema (e separar isso de seu enorme ego, admita-se).

Retenho por ora apenas com seu filme mais recente: “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto”. Existe uma espécie de abismo entre a capacidade de Lumet observar e mostrar o mundo e a média do cinema. Alguém duvida?

Lumet morreu no último dia 9.


Tiros na escola: a abominação, o horror
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Inácio Araújo

Passado o primeiro impacto, será preciso observar com cuidado a responsabilidade do Estado nas mortes acontecidas no Rio de Janeiro.

Certas coisas são óbvias: como alguém entra sem mais nem menos num estabelecimento de ensino? E, com aquela cara, dizendo que ia dar uma palestra…

Se você olhar para uma escola privada, aquilo parece um bunker. Para entrar é uma bela complicação.

Mas a escola pública há muito tempo existe apenas como depósito de pobres. Não é lugar de interação entre pessoas de origens e classes sociais diferentes. Hoje classes sociais não se misturam no Brasil (herança da ditadura que o Jair Bolsonaro, entre outros, tanto venera, aliás).

Não é o ensino público universal e leigo. Aliás, mal é ensino. É um lugar onde deixar as crianças pobres para que elas não se metam com drogas ou algo parecido.

Escolas precisam de proteção. É inacreditável, inaceitável, que a escola não tivesse proteção nenhuma. As outras têm?

O segundo aspecto da história: o assassino é uma mistura de um monte de misticismos idiotas com uma mente virginal-psicopática.

Acontece. Mas é inaceitável que as crianças não estejam minimamente protegidas contra isso.

Eu sou uma pessoa paciente. Entendo uma série de atrasos que existem no Brasil, acho que nada muda da noite para o dia.

Mas a questão educacional já era uma coisa tão premente…

É abominável que tenhamos de conviver com cenas tão evitáveis, tão dolorosas, tão terríveis.