Blog do Inácio Araújo

Arquivo : November 2010

O filme-coisa de Coutinho (2)
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Inácio Araújo

O princípio central em “Um Dia na Vida” é o de não intervenção.

Trata-se de permitir que o mundo se mostre tal qual, sem a interferência do artista.

Existe aí, primeiro, o parti pris de Rossellini. Deixar que o mundo apareça, que a realidade se imponha.

Mas, como em Rossellini, o artista, por menos que interfira, é aquele que seleciona as imagens, monta, significa em última análise.

Eduardo Coutinho procura ampliar um tanto essa idéia. Já estamos então no combate, como ele mesmo definiu, ao artista romântico, ao ser de exceção, ao demiurgo.

“Um Dia na Vida” filma 19 horas de televisão ao longo de um dia. TV aberta. Importante é que se trata de um dia inteiramente comum: sem eventos excepcionais, sem fim de semana, jogos de futebol. É o que a TV nos traz que importa.

Eis aí a “coisa”.

Ela pode ser vista de muitas maneiras.

Mas Jorge Furtado chamou a atenção para algo bem importante durante o debate que aconteceu depois da sessão única.

Os programas de TV aparecem, aqui, deslocados de seu verdadeiro habitat e de sua verdadeira função. Assim como os ready mades de Duchamp, “Um Dia na Vida” é como uma bicicleta colocada num museu. Não é mais uma bicicleta.

A TV, notamos agora, faz barulho todo o tempo. É alta. Ela precisa ser alta porque a maior parte do tempo o espectador nem assiste os programas. Faz outras coisas. O ruído é que lhe faz companhia.

Então, assim como a bicicleta no museu, olhamos (e escutamos) a tudo de outra maneira, à maneira do cinema, não mais da maneira original.

Seria possível dizer, à maneira de Godard, que transformando a TV em imagem Coutinho inseriu realidade nela?

Porque uma coisa que choca, desde que acompanhamos a sucessão de programas, das 6 da manhâ à 1h da madrugada, mais ou menos, é a perfeita irrealidade da televisão.

Ela é imagem da não imagem. Ruído encobrindo as coisas. Coisas disfarçadas de coisas. Parece que ninguém na TV tem o cabelo com que nasceu. Todos são pintados. A imagem da TV não mostra isso. A do cinema, sim. Tudo é falso. Essas pessoas, vistas em pessoa, devem ser assustadoras.

O cinema enche a TV de real. Mas então nos damos conta de que a TV é um mundo de horror. Será verdade? Será essa a verdade? Será esse deslocamento uma injustiça? Eis coisas que Coutinho sequer comenta. Ele apenas mostra.

Algumas são especialmente intrigantes.

Wagner Montes, que faz um programa desses de polícia no Rio de Janeiro, exibe a cena de um rapaz que espanca uma moça, talvez namorada, numa beira de estrada. Ninguém parece se incomodar com o fato. É brutal.

Mas, pensando bem, essa câmera que está lá, fixa, acompanhando toda a cena, quem a colocou ali? Um passante? Passa alguém nesse lugar? E por que não interveio, não impediu o espancamento? Conclusão quase inevitável: eis aí mais um fake. Uma coisa. Não o real, mas uma cena ficcional que se passa por real. Uma mentira. Fora do cinema não se percebe isso. Aceita-se.

A exibição em cinema da TV (a coisa-filme exibe a TV, não programas específicos) mostra o não dito da TV, o que a imagem da TV não revela, porque nos tira do envolvimento em que mergulhamos.

Será que isso aconteceria com qualquer outro meio?

Será que, por exemplo, o mesmo aconteceria com páginas esparsas de um livro?

PS: volto logo com um pouco mais do que o filme me disse.


O filme-coisa de Coutinho (1)
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Inácio Araújo

Eduardo Coutinho apresenta “Um Dia na Vida” não como um filme, mas como uma “coisa”, “essa coisa”.

Eu gosto da definição (ou indefinição). É diferente de auto-menosprezo, existe ali a percepção de que se trata de algo que rompe uma fronteira, algo como o “Five”, de Kiarostami, que também pode ser chamado de uma bela coisa.

O fato é que quem viu “Um Dia na Vida” teve a impressão de ter visto um objeto estranho, do qual os sentidos afloram com uma generosidade singular.

Tentarei falar de alguns, porque a coisa vai longe.

O primeiro, mais alarmante, é de que o filme possivelmente não tenha mais nenhuma exibição pública consentida. Exibição sem cobrança de ingresso e também sem aviso prévio, senão já haveria alguém tentando proibi-la.

Ou seja, eis aonde chegamos: se os piratas não distribuírem, não haverá distribuição alguma.

A questão, a primeira, é que está cada vez mais difícil ao cinema fazer qualquer registro do mundo real. Se você quer mostrar como funciona uma padaria de manhã tem que se acertar com o dono do lugar, o padeiro, o cara do caixa, os atendentes e os fregueses. Isso se não precisar pagar alguma coisa aos donos da marcas no balcão.

As leis de direitos autorais são um inferno, um absurdo. Qualquer um que já tenha aparecido no mais modesto documentário, num programa de TV do canal universitário às 3h da manhã, sei lá, sabe que, assim que acaba a gravação aparece um fulano com um papel pra você assinar, cedendo direitos e blábláblá.

Claro que isso não vai acabar com o cinema, mas, pior, tende a acabar com a realidade no cinema, o que talvez seja pior. Hoje em dia o cara que atravessa a calçada no fundo da imagem é um figurante, nunca um passante.

Se fosse fazer “Roma, Cidade Aberta” hoje em dia Rossellini teria de pagar direitos até pra os herdeiros do Hitler. Se fosse fazer “Alemanha, Ano Zero”, teria de dar direitos autorais aos caras que bombardearam Berlim. É ridículo, mas também catastrófico.

Todo mundo deve lembrar de uma biografia do Garrincha, que foi proibida porque a família queria direitos sobre a vida do jogador. E levou!!!

Há uma biografia do Roberto Carlos que foi proibida porque não foi autorizada pelo biografado. De maneira que, com a ajuda de nossa justiça catástrofe, daqui a pouco só será possível publicar autobiografias.

Para cinema a coisa é pior porque afeta diretamente nossa percepção das coisas. Uma delas: há décadas não podemos ver “A Hora e Vez de Augusto Matraga” por conta de umas disputas familiares, coisa de herdeiros. É o fim do mundo. Deviam mandar os herdeiros do Guimarães Rosa trabalhar e cuidar da própria vida.

Mas é nesse pé que estamos.

Por que isso acontece com o filme do Coutinho? Por que será esse uma coisa, um filme invisível?

Porque o filme consiste na filmagem de 19 horas de programas de TV ao longo de um dia, das quais extraiu-se a hora e meia que foi possível ver na sessão do cine Livraria Cultura (ex-Bombril, ex-Cinearte, ex-Cine Rio).

Sessão preciosa, porque única. Lamentável também, pelo mesmíssimo motivo.

Então, essa irrealidade do cinema, esse cerceamento brutal da imagem que existe hoje, esse constrangimento abusivo que se toma por direito autoral, não só com esse filme, mas com qualquer outro, é uma das coisas imperdoáveis do tempo atual.

Para não encher muito, volto a falar do filme, do filme coisa, em breve.


O que pensar do novo Kiarostami?
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Inácio Araújo

Há dois dias estou tentando escrever alguma coisa sobre o novo, misterioso Kiarostami.
“Cópia Fiel” é um filme que não para.
Mal dá para enunciar o argumento: um escritor inglês vem à Toscana para uma conferência sobre seu livro “Cópia Conforme”, em que defende a idéia de que uma boa cópia vale tanto quanto o original, ou mais.
Assiste à conferência uma mulher, cujo filho a força a sair.
Ela deixa o seu endereço com o tradutor do livro (o autor é inglês) e sai com o garoto.
Ele come um hamburguer ou algo pelo estilo e comenta que ela estava paquerando o inglês.
No dia seguinte, o inglês aparece em sua loja de objetos de arte, em Arezzo. Os dois saem.
E mais do que isso não se pode dizer.
Mas garanto que é surpreendente, senão espantoso.

Resumo resumido de outras coisas:
A maior parte dos filmes de Kiarostami não é, a rigor, sobre pessoas que buscam a si mesmas?
Que tentam saber quem são enquanto buscam outras?
Digamos que aqui existe uma radicalização.
Os personagens, a trama, o passado, tudo parece escorregar.
Tudo que a princípio se oferece à compreensão imediata mostra-se opaco, misterioso, talvez indecifrável.

O que é uma cópia conforme ou fiel?
Talvez a pergunta não faça sentido.
O deslocamento talvez seja o aspecto principal do filme de Kiarostami.
A mulher é francesa e está na Itália.
O homem é inglês.
O deslocamento é completo: não apenas geográfico.
Eles vão a um lugar onde as pessoas costumam casar.
Ali eles revivem algo de sua vida comum.
Há uma tentativa de encontro mútuo, ainda que o homem resista à memória, com o passado.
O homem é aferrado à própria identidade: ele sabe quem é. Ou pensa que sabe.
A mulher não sabe quem é. Ou pensa que não sabe.
No princípio, ela procura. Ele, não. Ele nega qualquer procura. Como se o livro escrito garantisse sua identidade.
Ela, ao contrário, busca. Quer saber quem é e quem foi. Quem aquele homem é e quem foi.
Com o tempo, também ele entra na busca.
O filme, no entanto, não perderá sua opacidade.

Tenho o palpite de que ele tem a ver com o atual momento de Kiarostami.
Com a necessidade de fazer filmes fora do Irã.
Já aí existe um deslocamento. Já aí propõe-se um questionamento: quem eu sou, quem eu fui?
O que será? O que virá?

O mais impressionante é a capacidade de fazer um filme que acha seu problema sem procurá-lo
(“acha-se, não se procura”…), enquanto o cinema europeu vive inventando problemas que não existem.

Talvez esse seja o papel da vida da Binoche. Gesto após gesto, expressão após expressão, está notável.
O que mais me impressionou no ator inglês foi a semelhança dele (jeito, inclusive) com o nosso Andrea Tonacci.


Mostra, Ano 34
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Inácio Araújo

A inauguração, nesta quinta, é aquele inferno de sempre: difícil de estacionar, difícil de entrar no teatro, difícil de aguentar a discurseira. É o ritual de abertura da Mostra. Caramba, 34.

Depois disso tudo, vem “O Estranho Caso de Angélica”.

Ótima idéia, abrir com Manoel de Oliveira.

A mostra deu valor a Oliveira desde cedo, quer dizer, desde que ele foi reconhecido na Europa, trouxe filmes dele de uma vez para cá, quando ainda era no Masp.

“O Estranho Caso” parece uma história de Edgar Poe. Um fotógrafo é chamado a registrar os últimos momentos de Angélica neste mundo.

Mas, ao fotografar a morta, percebe que ela sorri.

Esse sorriso vira uma obsessão e uma paixão. É uma espécie de “Blow Up”, também.

Mas é diferente: é o mistério desse sorriso que só ele vê que permeia o filme.

E que o faz um filme da alma, de matéria e espírito se tocando.

Não sei dizer muito mais: vou rever o filme depois.

Sexta-feira, 22, a coisa começa de verdade, sem fraque e cartola.

Hoje, quinta, vi quatro filmes, tentando tirar meu absurdo atraso em matéria de filmes da Mostra.

Não sei…

Acho que vamos ter algumas coisas fortes, como o filme que ganhou Cannes, mas o ano me parece um tanto fraco.

Minha maior curiosidade é com o “Filme Socialismo”. Toda vez não há quem não espere o que o Godard preparou. O filme vai entrar em cartaz, é da Imovision (que está trazendo coisas bem fortes, além dele: só ficou faltando mesmo o “Bellamy” do Chabrol, que ninguém trouxe).

Agora é o seguinte: me parece que este ano ficou faltando uma daquelas grandes retrospectivas que se podia ver em anos passados. Quando isso acontece, parece que tem um rombo na programação.

Ainda assim, nesses dias não tem conversa: Já pra Mostra.


Padilha pode entrar na distribuição
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Inácio Araújo

José Padilha se pôs na vanguarda, menos pelo filme em si, do que pela maneira como vislumbra capitalizar o sucesso de seu Tropa de Elite 2.

A idéia, pelo que entendi de sua intervenção no debate na Folha, é se juntar a outros cineastas de sucesso (Fernando Meirelles e tal) e criar uma distribuidora.

O primeiro exemplo que eu me lembre desse tipo de iniciativa foi a Difilm, nos anos 60. Daí derivou, em grande parte, a distribuidora da Embrafilme.

Hoje, trata-se de capitalizar o sucesso de maneira adequada.

Quem tem um Tropa de Elite ou um Chico Xavier na mão pode, evidentemente, impor uma série de coisas nas negociações de exibição, DVD e TV (paga ou não).

Hoje em dia, um grande sucesso não serve para quase nada. Quero dizer : depois que passa, como que evapora. É isso que muda quando se tem uma distribuidora com força.

A Embrafilme dos áureos tempos, por exemplo, vivia em grande parte à sombra dos Trapalhões, que era o que todos os cinemas queriam.

Mas para levar o filme dos Trapalhões, os cinemas tinham que negociar outros, menos comerciais (eu digo negociar, mas leia-se engolir).

Desde então, houve filmes brasileiros de muito sucesso, como Carandiru, Central do Brasil, 2 Filhos de Francisco etc. Mas como eram isolados, nenhum deles serviu para impulsionar outros filmes.

Por isso a gente vê, às vezes, tamanha disparidade : um filme faz 3 milhões, outro 4. E aí, tira esses fora, os filmes fazem 10 mil, 15 mil espectadores.

É claro que isso não vai fazer com que todos os filmes sejam sucesso. Não é isso. Trata-se, porém, de chegar a uma distribuição mais adequada.