Blog do Inácio Araújo

Arquivo : March 2011

Thomaz Farkas
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Inácio Araújo

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Foi só virar as costas, pimba! Fico sabendo da morte de Thomaz Farkas. Foi um dos homens de cinema mais notáveis que conheci.

Nos anos 1960, foi o mentor da famosa Caravana Farkas, da qual resultou a mais notável série de documentários até hoje produzida no Brasil. Farkas teve a humildade de se limitar à função de produtor, coisa que entre nós não costuma ter muito prestígio. Mas de lá saíram os trabalhos de Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares e tantos outros. Há não muito tempo, aliás, a série foi felizmente restaurada e continua viva, descoberta do Brasil.

Me pergunto o que terá acontecido com “O Sítio do Picapau Amarelo”, acho que a única ficção que produziu. Não gostei muito na época, mas gostaria de rever. Farkas foi diretor e depois presidente do Conselho da Cinemateca Brasileira. Funções que exercia com enorme prazer.

Como presidente, desenvolveu o projeto de passagem do acervo ao Matadouro. Depois foi presidente do Conselho e, há anos, foi escolhido presidente emérito, maneira de dizer que continuava tão importante quanto antes, embora sua saúde já não permitisse dedicação integral.

Creio que a Cinemateca deve muito, muitíssimo de sua evolução recente a Farkas. Foi ele o mentor da idéia de tirar a entidade da divisão de Museus para a Secretaria do Audiovisual. A divisão de Museus do MinC queria ver a Cinemateca pelas costas, essa é a verdade. Deu certo, porque para o Audiovisual a CB era uma entidade chave.

Farkas também esteve presente no processo que levou o BNDES a financiar uma das salas da CB, a mais moderna, mais bem equipada, a mais bela do Brasil, talvez. A única, me parece, com capacidade de exibir filmes 35mm no formato clássico, 1:1.33 (seria ótimo se começasse a se por à altura de sua beleza e qualidade e adotasse uma programação regular realmente interessada em servir a quem gosta de cinema).

Farkas foi, no mais, quem me convidou para ser conselheiro da Cinemateca. Pai de Pedro, um dos principais diretores de fotografia brasileiros, e de João, que conheci apenas de cumprimentar. Foi também sogro do Flávio, meu querido amigo desde a infância, marido da Bia. A todos eles não sei o que dizer…

(Do trabalho fotográfico de TF felizmente não preciso falar: está sendo lembrado o bastante para todo mundo perceber sua beleza.)


Guia para conhecer as heroínas interpretadas por Elizabeth Taylor no cinema
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Inácio Araújo

Divulgação

Elizabeth Taylor e Montgomery Clift em cena do filme "Um Lugar ao Sol" (1951)

De Elizabeth Taylor, sua vida, sua obra, acho que já se falou o que era preciso falar.

Azar meu que, quando se soube da notícia, estava no cinema vendo um filme e não fui encontrado pelo pessoal da Ilustrada. Quando cheguei, escrevi um artigo inteiro e só depois abri a internet. Então olhei para o telefone e percebi que havia um monte de recados. Liguei para o jornal, mas já estava fechado. Tudo estava dito. Inclusive pelo Ricardo Calil, na Folha.

Bem, algo não foi feito, talvez. Um guia para conhecer um pouco de Liz Taylor como atriz. Ou reconhecer, porque certas coisas faz tempo que já vimos. Não é tarefa fácil. Ela foi atriz mirim. Superou esse momento difícil (muita gente sucumbe) e afinal tornou-se uma atriz dramática da pesada.

A estrela do desequilíbrio. Hoje essa imagem da estrela de vida conturbada apagou-se um tanto em função de sua presença em outras áreas (campanha contra Aids, por exemplo, em que teve participação marcante).

Mas sua vida era tão complicada, em linhas gerais, quanto as heroínas que mais a marcaram. Vamos dar uma passeada por uma antologia dos filmes de Liz.

A MOCIDADE É ASSIM MESMO (1944)

Até onde sei, o primeiro papel a projetar Liz Taylor, que andava aí pelos 12 anos. Ela é a encantadora Velvet Brown, a quem Mickey Rooney ensinará as artes de correr a cavalo. Filme infanto-juvenil dirigido por Clarence Brown, onde a graça da jovem atriz se impõe e nos subjuga.

O PAI DA NOIVA (1950)

Esta comédia de Vincente Minnelli voltou a ficar famosa graças a uma refilmagem recente. Ela faz a transição de garota queridinha do papai à noiva do título. O principal do filme vem do pai, espantado (e mais do que isso) com a mudança da menina. E o pai é Spencer Tracy. Mas a noiva não destoa: Liz Taylor faz a transição de amiga da Lassie a mulher de verdade.

UM LUGAR AO SOL (1951)

Vamos falar a verdade, aqui o brilho maior é de Shelley Winters, que faz a operária Alice, por quem Montgomery Clift se apaixona quando trabalha como operário nas indústrias de seu tio. Sim, mas quando é introduzido à alta sociedade e conhece a sofisticada Angela Vickers, sua cabeça vira. E nessa altura ele já havia engravidado Alice. George Stevens fez um belo filme a partir de “Uma Tragédia Americana”, o livro de Th. Dreiser, e aliás ganhou o Oscar de direção daquele ano. Monty e Shelley foram indicados. Mas a imagem de sofisticação de Taylor é qualquer coisa.

ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE (1956)

De novo com George Stevens, mas agora ao lado de Rock Hudson e James Dean, numa saga grandiosa que tem por centro a passagem do Texas da era do gado à do petróleo. Um quadro hiperbólico, que sofre um tanto de gigantismo (chama-se “Giant”, não por acaso), mas tem momentos fabulosos. Aqui, ela se chama Leslie casa com Rock, que tem terras a perder de vista, e tem de se impor à irmã dele, que não tolera o casamento do irmão. Leslie se identifica profundamente com Jett, James Dean, que ela vê também como um outsider. Jett se apaixona por ela. Ele não lhe é indiferente.

GATA EM TETO DE ZINCO QUENTE (1958)

Entramos aqui no universo de Tennessee Williams, que hoje pode parecer um pouco ultrapassado, mas na época era o que havia de mais mais. Liz aqui é Maggie Pollitt, mulher em plena crise conjugal com um marido, Paul Newman, pouquíssimo disposto a lhe dar bola. O tema da presumível homossexualidade do marido é um tanto escamoteado – a censura não estava lá para brincar – o que só ajuda Liz a se impor como a mulher frustrada, nos melhores momentos deste filme de Richard Brooks. De resto, estava lançada essa identidade entre Taylor e a idéia de atribulações matrimoniais profundas que marcaria tanto sua carreira.

DE REPENTE, NO ÚLTIMO VERÃO (1959)

De novo Tennessee Williams, de novo a homossexualidade no centro. Este é, para meu gosto, o melhor filme de toda a carreira de Taylor. Mais trio de atores notável. Katharine Hepburn faz a rica senhora que pretende lobotomizar a sobrinha. Para tanto ela conta com os serviços do dr. Monty Clift. Mas este não se mostra tão convencido assim da loucura da moça. Na verdade, Hepburn sabe que a garota sabe de segredos que ela não gostaria que ninguém soubesse. Liz Taylor não é perturbada, mas a tia faz com que pareça assim. Dá no mesmo em termos de intensidade dramática (e de marca registrada). Joseph L. Manikewicz fez o filme a partir de adaptação de Gore Vidal.

CLEÓPATRA (1963)

Era para ser o filme do esplendor de Elizabeth Taylor e ponto. Dos olhos violeta. Liz Taylor consagrada em toda a extensão, no luxo, na beleza e no poder de Cleópatra, sem falar do talento, do milhão de dólares etc.. O problema foram seus amores e problemas matrimoniais (já com Richard Burton, o Marco Antonio do filme). Os atrasos que ocasionaram e o estouro de orçamento. Mankiewicz pegou o bonde andando e conseguiu entregar o filme, o que parece que foi um feito em si, embora o resultado sofra, também, com o gigantismo da produção. Em vista de tanta publicidade e de tantos adiamentos, parece que o público se encheu de “Cleópatra” antes mesmo que o filme estivesse pronto.

QUEM TEM MEDO DE VIRGINIA WOOLF?

Bem, já que era para mostrar vidas conjugais conturbadas, por que não unir, de uma vez, Richard Burton e Elizabeth Taylor? Foi o que providenciou a produção do filme. A mesma idéia de desnudamento tão familiar ao teatro americano retorna, aqui pelas mãos de Edward Albee. O casal alcoólatra (e infeliz no casamento) consegue ao mesmo tempo se provocar em tempo integral e ao mesmo tempo provocar o jovem casal que convida para um jantar. Filme um tanto fechado, tem a seu favor a primorosa direção de atores de Mike Nichols, que rendeu o Oscar a Liz, o Oscar de atriz coadjuvante a Sandy Dennis e uma das “n” indicações a Burton. A câmera de Haskell Wexler também levou o Oscar (fotografia P&B).

A MEGERA DOMADA (1967)

Aqui o drama conjugal de Liz e Burton já quase vira galhofa. Ela é Katharina e ele é Petruchio, na adaptação da comédia de Shakespeare pelo italiano Franco Zeffirelli. Ou seja, ele é o cara que vai dominar a indomável. Reforço de imagem de uma bela Elizabeth Taylor, numa luminosa meia-idade. E, para alguém que foi bela como foi, estrela como foi, parar por aqui é uma questão até de etiqueta.

Já são nove filmes, se contei direito. Já há uma diversão pela frente. Para ver mais filmes com a atriz, clique aqui.


Kiarostami, a cópia e a identidade
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Inácio Araújo

Abaixo, reproduzo o texto publicado na Ilustrada da última sexta sobre “Cópia Fiel”.

Em seguida ao texto, alguns acréscimos.

“Cópia Fiel” é um filme de deslocamentos. Há, primeiro, uma mulher francesa que vive na Itália com o filho, onde tem uma galeria de arte. Há um escritor inglês que vai à Itália fazer uma palestra sobre o livro que escreveu. Há uma história onde se discute idéias sobre arte que mais parece uma paquera. Há uma história em que se discute o casamento, que parece uma discussão sobre arte.

São muitas as referências e não é difícil perder-se no meio delas. Talvez a mais evidente seja aquela enunciada por James Muller, o escritor do filme. Para ele, uma boa cópia equivale ao original, pois é o modo de olhar um objeto que é importante, não o objeto em si. Uma árvore na paisagem é uma árvore. Se deslocada para dentro de um museu, torna-se obra de arte. O olhar é que transforma o objeto em obra de arte (ou não).

Já se desenvolveu essa idéia em arte (Marcel Duchamp) ou na literatura (Jorge Luís Borges). No cinema, Abbas Kiarostami foi o primeiro a tocar na questão. Em seus filmes, o que transforma as coisas mostradas em arte é o olhar do espectador. O autor não tem grande importância. Não existe autor senão aquele que vê.

Se isso justifica o tema adotado pelo escritor inglês, não torna o filme menos sensível à idéia de deslocamento e, portanto, de exílio. Kiarostami está fora de seu país, numa produção basicamente francesa rodada na Itália.

O casal lembra muito o de “Viagem à Itália”, de Roberto Rossellini, e da crise conjugal que ali se desenvolve. A construção remete à inversão de papéis de “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch, já que no início temos um homem e uma mulher que parecem mal se conhecer e a partir de certo instante eles são marido e mulher.

Também é possível evocar o tema da memória, numa chave que não parece estranha a “O Ano Passado em Marienbad”: alguém (a mulher) descreve um acontecimento; alguém (o homem, no caso) não se recorda do que ela disse. Existe o encontro com um velho senhor (Jean-Claude Carrière, o roteirista de Luis Buñuel) que dá conselhos ao escritor.

Existe, por fim, a lancinante cena do restaurante, em que a mulher, Juliette Binoche, dirige-se diretamente à câmera, como nos filmes de Yasujiro Ozu. Mas em lugar da placidez dos filmes de Ozu há desespero e solidão naquela imagem.

Em poucas palavras, Abbas Kiarostami na Europa tateia. Seu cinema parece não ter mais as certezas, aquela segurança que vinha da paisagem ,da familiaridade com a língua e os personagens iranianos. Pode-se dizer que o tatear de um cineasta de seu porte, explorando com suavidade e discrição a beleza assombrosa da Toscana vale mais do que a segurança de mil talentos medianos ou mesmo grandes. Ainda assim, ele parece estar entrando, um pouco a contragosto, talvez, numa nova e ainca incerta fase de sua luminosa carreira.

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A identidade

Ao que me consta, a identidade nunca foi uma questão central para Kiarostami.

Talvez em “Close-Up”, onde um sujeito assume a identidade de Mohsen Makhmalbaf, também cineasta.

Mas isso foi em 1989 e não voltou com essa força até agora.

A menos que, revendo a obra em sequência, isso surja ali onde eu não havia notado.
Em “Cópia Fiel” a identidade é destruída.

Você vê um casal de semi-desconhecidos, ou que poderiam ser assim, transformar-se num casal de 15 anos.

É algo que deve exigir uma consulta a Macedonio Fernandez, um opositor fiel do princípio da identidade. Afinal somos muitos, não os mesmos o tempo todo.


David Perlov, um Proust das imagens
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Inácio Araújo

O cinema tem algo de heróico, que está em sua natureza mesmo. Independe dos cineastas, dos técnicos, das técnicas.

Consiste na capacidade de aprisionar o tempo. A imagem de uma rua em Vila Mariana ou a passagem do bonde de Santa Tereza, em 1981, permanecem o que são. Sua identidade não se altera. Não se pode pensar, diante da imagem, em “era assim” ou “foi assim”. Algo permanece na imagem de terrivelmente presente.

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Penso nisso a partir dos formidáveis “Diários” de David Perlov (1973-1983) que estão nessa grande mostra que já começou no Rio de Janeiro (Instituto Moreira Salles) e agora vem a São Paulo (Centro de Cultura Judaica, Cinemateca Brasileira), e também nos “Diários Revisitados” (1990-1999).

Perlov renunciou ao cinema comercial. Propunham-lhe filmar idéias. Queria filmar coisas. Comprou uma câmera 16mm e passou a registrar seu dia-a-dia.

Existe, claro, algo de muito atual em sua atitude: hoje as imagens não vêm mais das velhas 16mm. Qualquer celular é capaz de produzir diários.

Mas essa capacidade do cinema de reter o tempo não é puramente mecânica. Trata-se de uma arte. A imagem carrega consigo sempre uma reflexão. Ela seleciona o que reter. Ela impõe determinado ângulo.

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Por fim, o diário não é mero registro. Essas imagens engendram um movimento da memória sobre elas próprias. Uma recuperação do tempo. Elas trazem presente e passado, camadas em que se superpõem palavras e figuras, o perdido e o recuperado. Seu movimento me parece proustiano, assim como esses filmes raros, sublimes, inesperados a cada passo, originais e óbvios que Perlov escreve com sua câmera e sua voz.


Imagens do Japão
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Inácio Araújo

O título vem de um antigo programa de televisão para a colônia japonesa de São Paulo.

O que eu quero dizer é: as únicas imagens que importam nesses dias são as que vêm do Japão.

A consternação com o que aconteceu por lá é evidentemente enorme. O desejo de que os danos sejam menos terríveis do que hoje imaginamos, também. A torcida por uma recuperação completa do país.


O que “Bruna Surfistinha” dá e o que não dá
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Inácio Araújo

Em nenhum momento de Bruna Surfistinha sexo é uma questão, o que não deixa de ser estranho num filme sobre a vida de uma prostituta, onde as relações entre sexualidade e dinheiro são, teoricamente, centrais.

Já o aspecto econômico é fartamente desenvolvido. Bruna vê seu corpo como uma máquina de fazer dinheiro, de se impor ao mundo, competir em suma, mas também de obter reconhecimento, de ser amada.

Nesse sentido, a trajetória de Bruna é interessante, porque é a de um sucesso financeiro e existencial: ela evita a condição de dejeto social e se transforma numa espécie de pequena empresária, empreendedorista, porém, em que o próprio corpo entra como máquina de sexo e mercadoria: a indústria e o comércio ao mesmo tempo.

O começo é o melhor do filme. A caracterização de Bruna como adolescente desajeitada pode ser um pouco superficial, mas não deixa de ser graciosa. O melhor é a parte do bordel pobre que freqüenta, suas relações com as outras prostitutas, com a patroa. E, sobretudo, os aspectos competitividade (na luta por fregueses ela é implacável) e o apego ao dinheiro. Perdoam-se aqui alguns desfoques artísticos incompreensíveis.

Depois disso, “Bruna” se rende com muita freqüência à convenção, à necessidade de contar a história, de fazer dela o seu centro, de satisfazer certas necessidades dos seus clientes-espectadores, diante dos quais age mais ou menos como a prostituta: trata-se de agradar sem, no entanto, mobilizar o desejo.

Um aspecto forte vindo do roteiro, no sentido em que lança expectativas e sempre funciona como elo entre os vários momentos narrativos, trata da questão do afeto: dos clientes que se apaixonam por prostitutas (Cássio Gabus Mendes) e de seu oposto, a satisfação sexual que a garota pode conseguir com um cliente.

Diga-se que o filme nunca deixa de ser visível, embora o interesse seja bem desigual a maior parte do tempo. Um exemplo: a parte de decadência de Bruna é muito, muito deficiente, terrivelmente convencional. A necessidade de ser fiel (suponho) ao livro, à narrativa da autora do livro não ajuda nada, porque a voz central é terrivelmente autocomplacente – o que se compreende, aliás.

No entanto, é incompreensível a razão porque tantos elementos são suscitados e deixados de lado de maneira ostensiva: a cleptomania, o desajuste à escola (embora ela aparentemente tenha assimilado ali boas lições de competitividade…), o fato de ser (se bem entendi) filha adotada etc.

Ou não é incompreensível: todos eles levam, de certa forma, a inquirir a sexualidade da protagonista, coisa de que o filme foge que nem o diabo da cruz. Por quê?

Algo muito deficiente está na conclusão: a viagem de Bruna ou Raquel pela prostituição como motivo de autoconhecimento, mencionada no final, é uma menção meramente convencional. Nada se explica, exceto a fortuna, a subida na vida, a afirmação de caráter econômico (na prostituição se ganha mais que como médico ou engenheiro etc.). Mas existencialmente, o que significa sua trajetória, para mim ao menos, é algo que fica no breu.

Um extracampo importante diz respeito à família: é como se todo o filme (o livro já tem isso?) desembocasse no desejo da protagonista/autora de se entender com a família. Seja isso sincero, seja um mote comercial para comover as mulheres da platéia. Mas entra, de todo modo, como motivo subjacente.

Ainda assim, parece claro que a autoria do filme, se existe, é de Raquel Pacheco, nunca Marcos Baldini, que é antes executante.

Ao tratar da prostituição o filme entra de sola nos dilemas existenciais do cinema brasileiro: ser mercadoria ou arte, dinheiro ou prazer, ou cortejar o amor do público como uma biscate ou aspirar ao, digamos assim, auto-respeito?

Um filme interessante, pois desde a publicidade vive em torno do mistério: como é a vida de uma garota de programa (no sentido em que GP é diferente de prostituta: é alguém de sucesso econômico, que se impõe pela sexualidade às “camadas altas” etc., ou seja, que faz da prostituição propriamente dita uma metáfora da existência prostitucional no mundo econômico contemporâneo).

No entanto, essa mercadoria ele não entrega. Ou ainda, quando entrega notamos que é o menos interessante que tem ou teria a oferecer.

“Bruna”, anuncia-se, em dois fins de semana já chegou a 1 milhão de espectadores. É o segundo ou terceiro blockbuster brasileiro que se impõe só neste começo de ano.

Ninguém pode dizer que nosso “cinema indústria” vai mal. Paulínia daqui a pouco virará Pauliniwood, a Bollywood brasileira.

Duas perguntas que sugere o fenômeno:

1. não haverá o esmagamento de toda produção não destinada ao “grande público”?

2. o êxito dessa produção ajudará, ao contrário, no desenvolvimento de um cinema menos comercial, porém mais ambicioso como, digamos, captação do mundo?

Algumas notações finais:

Meu temor (em relação às perguntas acima) é que esse tipo de cinema esteja sempre limitado às aspirações do público em determinado instante. “Bruna” me parece um desses achados: o encontro entre uma curiosidade e um mistério (não importa o quanto isso se resolve de maneira satisfatória: para o meu gosto, seria melhor se o filme desgrudasse da narrativa da autora, em primeira pessoa, fiel a ela etc. e tal. Mas eu entendo que na hora de negociar ela deve ser dura na queda (a partir do que o filme mostra).

Outro ponto é essa espécie de triunfo do acessório sobre o essencial que a gente tem visto tanto. Por exemplo: as unhas de Bruna estão pintadas de um jeito, quando ela está por cima, quando vai para sua fase de decadência a gente vê a unha descascando. É um cuidado importante da direção de arte. Ao mesmo tempo, como há uma ênfase muito grande nesse tipo de detalhe, nossa atenção acaba se voltando excessivamente para isso. A direção de arte se destaca um pouco às custas da mise-en-scène (ou por outra: se a mise-en-scène dá moleza, seus auxiliares passam à frente).


Um cordão de Carnaval (ampliado)
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Inácio Araújo

Nossos estatutos dizem…

Não me espanta que o Clube Pinheiros proíba a entrada de babás sem uniforme. Assusta que, tendo a notícia saído, não tenha visto na seção de cartas da “Folha” ninguém revoltado com o ocorrido.

Ou seja: não é extraordinário que os estatutos dos clubes (não é só o Pinheiros, estou certo) digam essas tolices a respeito de pessoas que estejam trabalhando. Mas é de certo modo assombroso, sim, que a diretoria responda que os estatutos da nossa gafieira dizem isso e pronto. Acabou.

Como acabou? Discriminação desse tipo pode?

Preceitos legais não valem dentro do espaço privado dos clubes sociais? Ou certos clubes são habitados por pessoas para quem a lei só existe quando lhes convém?

Se este não é um assunto a entrar em discussão não sei qual será.

Quando alguém se pergunta “quem, afinal, é a elite de que tanto se fala”, a resposta sem dúvida não é fácil. Como o velho Fantasma da história em quadrinhos: não são pessoas é um determinado espírito que anda, que se faz carne.

Incêndios

Título horrível. Mas o filme canadense que concorreu ao Oscar é mais do que eu esperava.

Quer dizer: o roteiro é a calhar para aquilo que o filme quer demonstrar. Nesse sentido é bem fraco.

Mas quando se põe a mostrar é bem bom. Tem um sentido físico forte da violência no Líbano, no tempo em que as milícias cristãs e os muçulmanos se dilaceravam. Em que o Líbano se dilacerava, enfim.

Oscar

O deste ano não cheira nem fede, impressionante. Mal acabou, ninguém mais lembra.

Macedonio

Reproduzo o “Prólogo à Eternidade” do “Museu do Romance da Eterna”

“Tudo foi escrito, tudo foi dito, tudo foi feito, Deus ouviu que lhe diziam e ainda não havia criado o mundo, então não havia nada. Isso também já me disseram, replicou talvez do velho e rachado Nada. E começou.

(…) É indubitável que as coisas não começam; ou não começam quando são inventadas. Ou o mundo foi inventado antigo.”

Da edição

A Cosac Naify, que editou o “Museu do Romance”, conseguiu driblar a edição de qualidade que a Cia. das Letras instaurara. Criou o livro de mais qualidade ainda. Como no Brasil ninguém lê mesmo, o essencial é que os livros são ótimos presentes.

Bruna

Não vi ainda “Bruna Surfistinha”. Desse Carnaval não escapa.

Trabalho Interno

O documentário que ganhou o Oscar tem esse tique televisivo de não deixar as pessoas completarem o raciocínio. Convoca trinta pessoas: quinze pensam de um jeito; quinze de outro. Se convocasse dois de cada lado as pessoas poderiam falar as frases inteiras.

O resultado é que, se você não é economista, continuará a não entender patavina da crise de 2008. Ou antes, perceberá que essa gente dos bancos não é boa coisa e ou está mancomunada com os governos (o dos EUA em particular).

O que dá pra entender é que os economistas-acadêmicos-neoliberais são uns completos escroques.

Isso o filme faz. Tem uns três ou quatro lá que acabam sem ter respostas mínimas para as perguntas.

E isso é uma coisa horrível, isto é, o conhecimento está comprometido. E comprometido não com ideologias, com modos de pensar. Está comprometido com a grana preta.

Visto na TV

Uma transexual é perguntada sobre como era sua vida sexual antes da mudança de sexo.

Ela responde que não tinha.

E, antes que o entrevistador tenha tempo de se espantar, completa: Eu me sentia mulher. Se eu fosse para a cama com alguém seria com um homossexual. Eu não queria ir para a cama com um homossexual porque me sentia mulher. Eu queria ir para a cama com um homem. Então, não podia ir com ninguém.

A lógica é implacável, o mundo é turbulento, mais, muitas vezes, do que imaginamos a partir das gavetas em que colocamos as idéias.

Carros

Frase ouvida de S. Antes os carrões americanos eram feitos para impressionar. Hoje são feitos para intimidar.

Touché.


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