Blog do Inácio Araújo

Arquivo : February 2011

Macedonio no Brasil (e a Cinefilia, de passagem)
Comentários Comente

Inácio Araújo

Macedonio Fernandez acabou ficando conhecido como “mestre de Borges”. Me parece uma meia verdade, e a publicação do “Museu do Romance da Eterna” no Brasil pode ajudar a recolocar as coisas no lugar.

Inclusive porque o próprio Borges não achava o Macedonio escritor grande coisa. Achava que ele era grande mesmo como falador.

Mas o “Museu” é um livro único para quem gosta de histórias.

Quem se lembra de um livro que não pode começar porque a cozinheira faltou e os personagens não terão o que comer?

“Museu” tem, por essas e outras, um monte de prólogos, um punhado de capítulos e, depois, mais alguns prólogos.

A rigor, é romance + teoria do romance. Ou narrativa + teoria da narrativa.

Quem se interessa também pela narrativa cinematográfica acho que vai ficar tão fascinado quanto eu.

É o primeiro livro completo de Macedonio que chega ao Brasil. Antes houve “Tudo e Nada”, uma bela compilação de achados do escritor. Levei o exemplar que tinha de presente para o amigo Marcelo em Paris. Ele nunca deu retorno. Acho que não se interessou, mas a verdade é que na época ele estava se achando francês demais para dar bola ao argentino. A vida é a história de nossas cegueiras, não?

No meu registro, muito pessoal, entram dois grandes lançamentos, este mês, ambos CosacNaify.

“Cinefilia” é, obviamente, obrigatório para cinéfilos. Antoine De Baecque, seu autor, vai se firmando como o principal historiador do cinema francês do pós-guerra. Ele é co-autor da biografia de Truffaut, autor da biografia de Godard e da “História de uma Revista” (Cahiers du Cinéma).

“Cinefilia” é uma espécie de sequência a esse trabalho.

Ele faz uma história desse hábito de frequentar cinemas compulsivamente. Ou seja, dessa história, do momento em que se torna o centro de grandes transformações de nossa percepção cinematográfica (a França, a partir da Segunda Guerra).

É da cinefilia que virá, primeiro, a grande geração de críticos dos anos 1950, daí que virão “Cahiers”, “Positif” (esquerda), “Présence du Cinéma” (reacionária, mas muito talentosa) e tantas outras. Daí virá a Nouvelle Vague.

A cinefilia torna-se um objeto questionado (e questionável) a partir de 1968, sobretudo, na medida em que de certa forma antepõe-se ao mundo. E a época não permite muito isso.

O Louis Skorecki mesmo faz um artigo notável chamado “Contra a Nova Cinefilia”. Enfim, é de certa forma tudo isso que está no livro, descrito, discutido, analisado.

É também um livro que se detém sobre a cegueira que toma os espectadores. Como pudemos ser tão cegos? – acho que Godard é que se questionava assim, por conta do desprezo que eles tinham tido pelo Bergman.

Todos podem ser cegos…

Por isso dizia o grande Mizoguchi que, após cada plano, é preciso lavar os olhos.

Lavar os olhos! É mais difícil do que parece. Não raro nossos pressupostos estão à frente das evidências. Ver as evidências não é fácil.


127 Horas ou O Caminho das Pedras
Comentários Comente

Inácio Araújo

Quando 127 Horas começa, a pergunta inevitável é: isso é anúncio de quê?

Eu sei que já fiz essa pergunta antes, por conta de um filme da Conspiração, mas hoje seria o dia de pedir desculpas ao pessoal da Conspiração, que é amadorístico perto de Danny Boyle.

A primeira impressão é que ele não visa um público, mas um mercado.

E, com efeito, ao longo do filme a resposta virá: há alguns anúncios pendurados ali, alguns ostensivos, como o do Gatorade.

127 Horas é um tipo de filme que eu não gosto e não é por culpa do filme. Me dão aflição esses filmes de caras que falam só mexendo o pé, ou o olho, ou o polegar. Todo mundo gosta, eu não consigo assistir. Está acima das minhas forças. Não adianta eu ficar me dizendo que preciso ver, que tudo é uma questão estética. Nada! Para mim é um terror.

Dito isso, devo dizer que ficar preso na pedra, como o personagem, me parece muito menos grave do que ficar imóvel na cama, de maneira que pude ver tudo, do começo ao fim.

E, apesar desse lance publicitário, me pareceu um filme muito melhor do que aquele da Índia, do milionário, aquele tão celebrado.

Isso pelo desenvolvimento do personagem, que é um tipo extremamente narcisista, no início. Sem especificar a trajetória e contar a história, me parece que, ao final, ele é um homem melhor do que era no início.

É o seu caminho das pedras. Então, quer dizer, eu digo “apesar do lance publicitário” porque um filme, me parece, deve servir para melhorar as pessoas. E, se o personagem sai melhor do que entrou talvez nós também saiamos do cinema melhor do que entramos.

Já Inverno da Alma é um filme de que me falaram muito bem.

Não curti nada, francamente. Quer dizer, há uma boa direção de atores. Muito boa.

À parte isso, me pareceu apenas mais um daqueles filmes de América profunda, com as drogas como variante.

Um filme antiquado, para falar bem a verdade.

Mas isso às vezes acontece: te falam bem do filme, a expectativa cresce, a gente se decepciona um tanto. Se, ao contrário, você vai sem esperar nada, às vezes vem a surpresa e algum (ou muito) encantamento.

Uma dessas surpresas: Poesia. Coreano.

Com esse nome, eu fui esperando o pior, um desses filmes “poéticos”, amanteigados, satisfeitos com o mundo…

E não é nada disso. Ganhou o prêmio de roteiro em Cannes, mas me encantou bem mais do que Tio Boomnee, justamente porque é seco, direto, sem circunlóquios, na vida, na pele, no andar.

Enfim, é a história de uma senhora que decide, a horas tantas, entrar para um curso de poesia.

Fazer o poema será um desafio tão grandioso para ela quanto, para o cara de 127 Horas se livrar da rocha que prende seu braço.

Acho que também ela sai melhor da história, e nós também. Mas o filme é cem vezes melhor que o do Danny Boyle. Ainda não entrou em cartaz.


Os melhores do ano
Comentários Comente

Inácio Araújo

Entre os estrangeiros eu fiquei com Tetro em primeiro e Vincere! em segundo. Mas poderia ter sido o inverso. Achei que o melhor diretor era o Marco Bellocchio.

O melhor ator, Vincent Gallo (Tetro) e melhor atriz Giovana Mezzogiorno (Vincere!).

Depois há Film Socialisme. Cresceu muito desde que vi. Continuo a achar a parte da família, do posto de gasolina, meio fraca. Mas o Godard é assim: pode dar certo ou não. O resto, me parece, deu.

No fim, um ano meio fraco entre os filmes estrangeiros. O que saiu na Mostra era muito, muito superior.

Dos brasileiros, me impressionou muito o “Viajo porque Preciso, Volto porque Te Amo”, depois o “Antes que o Mundo Acabe”.

Gostei muito, ainda, do “Uma Noite em 67”. E do “Reflexões de um Liquidificador”. O pior título desde “Saneamento Básico”, mas também um filme muito bom.

O crime do ano foi não ter se encontrado até aqui uma solução, um jeito, um jeitinho brasileiro, o que for, para que “Um Dia na Vida”, do Eduardo Coutinho, possa ser visto pelas pessoas, devidamente. É um filme precioso.

Nessa altura todo mundo já é capaz de ter as suas listas. Quem quiser, sinta-se à vontade para botar a sua aí embaixo.


Tempo de Oscar, tempo de arte
Comentários Comente

Inácio Araújo

Todo ano, por um ou dois meses, Hollywood (a indústria) lembra que o cinema é também uma arte, e rende seu tributo à dita cuja. É o tempo do Oscar.

Antigamente, premiava-se o melhor filme do ano, ou o que se julgava ser o melhor filme do ano, com o Oscar.

Atualmente, premia-se preferencialmente o melhor “filme de Oscar”.

Nessa época os Luises e Luizes vêm nos lembrar de quão profundos são esses cisnes brancos e negros a representar a dualidade da alma. Oh… Os Luises e Luizes acreditam que minha função é analisar.

Dizem isso com maiúsculas, para acentuar o caráter de obrigação.

Eu não sabia que havia uma lei sobre o que devemos fazer.

Não. “It’s only a movie”, dizia Hitchcock. Cinema é brincadeira. A seriedade é no departamento ao lado.

Por sorte há exceções: “O Vencedor” é um desses casos. O filme não tem culpa do título brasileiro que lhe deram. A descrição da família do boxeur me pareceu espetacular, havia momentos em que pareciam saídos de um John Cassavetes.

Achei estranho, o Cássio Starling não gostou. Mas aquele bando de mulheres amalucadas, comandadas pela mãe, é um espetáculo. E o pai conformado com aquilo. E o filho mais velho, o ex-lutador, drogado, que foge pela janela da casa onde está fumando crack porque a mãe não pode descobrir que ele é viciado.

Me pareceu interessante como, com uma pincelada, com uma passada rápida pela rua, o filme descreve, sinteticamente, a vizinhança pobre.

Num gênero tão explorado como o filme de boxe, me pareceu que aqui há algo diferente a ver.

“O Discurso do Rei” tem que ser visto pelo que é: um conto de fadas. God save the K-K-K-King. E vamos ao que importa: o show de atores. É o cinema inglês.

Claro, não dá nem para lamber as botas de “A Rainha”. Mas Oscar sem um filme inglês não é Oscar.

Esperava de “Bravura Indômita” ao menos algo diferente em relação ao filme original. Me pareceu bem, bem próximo.

Embora seja mais noturno, mais soturno, o que acaba por mostrar um mundo intrinsecamente perverso, ao contrário do Hathaway, que mostrava um mundo equilibrado, razoavelmente equilibrado, em que algo de ruim (o assassinato do pai da menina) acontecia.

Fora do Oscar: o filme da Sofia Coppola tem uma boa idéia, mas por algum motivo resulta chocho. O filme para mostrar um personagem sem vida acaba ele próprio meio sem vida. Mas valeu ver.

Vem mais por aí.


O Oscar na cabeça
Comentários Comente

Inácio Araújo

Desculpem pelo desaparecimento. Cheguei de Tiradentes disposto a escrever sobre dois filmes: “Os Residentes” e “Santos Dumont”.

Mas queria encontrar uma forma sintética de dizer o seguinte, e não encontrei. Vai aí o que encontrei: acho que o Tiago Matta Machado tem talento, inteligência e um caminho a percorrer a partir de seu belo filme. Sua postura muito defensiva (não me refiro às coletivas em que é atacado, mas ao filme mesmo) não o ajuda. Um pouco mais de Samuel Fuller e um pouco menos de Guy Debord só viriam a seu favor.

“Santos Dumont” é um filme especial. Filme sobre o achado de um filme raro (um mutoscópio de 1901 com o aviador brasileiro) que ele transforma em documentário sobre o tempo, a ausência do tempo, isto é, a proximidade entre 1901 e 2010, entre o cinema em seu início e hoje. Suas semelhanças, aquilo que é guardado, que a montagem pode violentamente aproximar: a era da mecânica, da indústria, do cinema, da aviação.

Mas é ao mesmo tempo um filme sobre a perda, a morte, a memória. As coisas e pessoas que ficam pelo caminho. E o carinho com que mostra Bernardo Vorobow, sua imagem que em determinados momentos quase desaparece (como as imagens antigas que, não restauradas, começam a desaparecer) é muito bonita, também.

O que eu dizia: que não disse nada disso porque não soube ser sintético.

Mas, sobretudo, porque fiquei afogado sob dezenas de demandas: O Oscar. Ah, o Oscar. Tem que ver todos aqueles filmes. Mas tem o Cinema Rittrovato em SP, tem essa figura extraordinária que é Luc Moullet, tem as matrículas para o curso que se está começando, tem a preparação do curso…

Para começar, acabou-se o reino da ficção por escrito. Não há mais tempo. Os livros ficam de lado. Adiós Céline, Bolaño, Bioy e tutti quanti. Os DVDs chegaram. Os filmes batem à porta.

Inclusive a preciosa série sobre o cinema baiano, que tem todos os cineastas essenciais da Bahia, que recebo graças à gentileza do formidável André Settaro (que fez falta em Tiradentes).

Roda Viva!

O calor paulistano está infernal.

As listas de melhores.

E, sobretudo, o Oscar. Antes era um prêmio para o melhor filme do ano, suposto ou não. Hoje em dia é um prêmio para filmes que, na maior parte dos casos, não existiriam sem o Oscar.

É, no mais, a imposição do maior critério de autoridade que já vi. Você só vê jornalista correndo atrás. Viu esse? Viu aquele? Em geral não tem o que ver. O Oscar cai sobre nossas cabeças.

Onde já se viu essa badalação toda em torno do “Cisne Negro”?

Aquilo é muito ruim. Não vou nem falar do filme em si. A Natalie Portman, que eu acho o máximo, parece o tempo todo que está com problemas intestinais.

E ela nem bailarina é. Não sei nada de balé. Mas basta vê-la ao lado da coreógrafa (ou assistente de) logo no começo: uma tem corpo de bailarina, a outra não.

Está certo, ela é dublada. Mas basta, de costas, agitar os braços para se ver que ali não há dança. Há esforço.

Se era um filme de balé que se contratasse uma bailarina de fato. Neve Campbell, digamos. Sei lá.

Ainda assim seria insuportável.

De resto, no Oscar deste ano, além do “A Rede Social”, o que me entusiasmou foi “O Vencedor”. O título brasileiro é um crime, mas o filme é muito bom.

Logo volto: para brincar de lista dos melhores.


Tiradentes: impressões finais
Comentários Comente

Inácio Araújo

Em Tiradentes existe um júri, mas ninguém dá grande importância ao fato, embora as pessoas que o compõem sejam mais do que estimáveis. O fato é que lá os filmes criam sua reputação por conta própria. A vitória não significa grande coisa, não garante lançamento e suspeito que o prêmio não seja enorme.

Ainda assim… “Os Residentes” venceu.

Não compreendo tudo que há ali. Talvez não seja tão importante assim. Compreenderia menos se seu autor, Tiago Matta Machado, não tivesse revelado durante o debate que o situacionismo marca seu filme com força. Sim, lá estão seis pessoas numa casa. Seis contra seis milhões. Ou seriam bilhões?

Mas o situacionismo era 1960 mais ou menos. O que é isso 50 anos depois? Uma ruína. Uma vanguarda e uma ruína. A impossibilidade, talvez, do triunfo situacionista e, no entanto, a inevitabilidade da luta quixotesca contra o mundo. E a esperança de que essas vanguardas arruinadas possam ressurgir.

Um filme com excesso de idéias, me pareceu. Dava para cortar um pouco. A partir de certo momento ele se torna exasperante, e isso podia ser evitado. Mas é o de menos.

Um filme muito intelectualizado. Não é o que gosto. Me parece que precisa de bula. No entanto, há talento ali e fiquei com a nítida impressão de que o Tiago tem um bom caminho a percorrer. Acho que poderia perseguir a clareza. Não é fácil. A obscuridade é mais fácil e tem um caráter defensivo.

Um parêntese para Aluisio Raulino, “le photographe de l’avant garde”. Grande Raulino. Ele também está em “Santos Dumont”. Um filme bem diferente, sem dúvida. Filme de arquivo e inventividade. Filme arrancado à morte. Morte de Santos Dumont, do cinema, de Bernardo Vorobow. Cinema como perpetuação: além da vida, por que não?

Visão do filme como magia (Méliès) e busca de suas decorrências.

Gosto muito disso. No caso do Carlos Adriano, minhas idéias são muito diferentes das dele. Ele acha que o Griffith estragou o cinema, eu não acho nada disso. Se o cinema tivesse ficado pré-griffithiano não ia por diante. Ele não gosta do Clint Eastwood, eu gosto. Ele fala em paideuma e eu dou a maior força ao revisor que mudou para “pai de uma”.

Mas o filme é uma beleza, e isso é que vale.

Bem, este foi o último que vi.

No resumo, mais uma vez Tiradentes produziu um ótimo festival. Mas me parece já na corda bamba em termos de dimensão. Cresceu muito. Não pode crescer demais. Não vi a Raquel por lá senão nos últimos dias. Mal falei com ela. Com o Quintino, marido dela, nem deu para trocar umas palavras. Com a Fernanda, umas poucas. Antes elas pareciam se divertir organizando o festival. Agora, bem menos. É um trampo. A organização continua muito bem, mas no limite.

NO SEMINÁRIO

José Joffily diz que está cansado de política, mas não está.

Acha que é possível fazer filme com R$ 100 mil, mas que ninguém se profissionaliza trabalhando assim.

Pode ser. Mas o cinema sempre comportou uma espécie de seleção natural. Uns vão ser técnicos, outros administradores, outros vão para publicidade, outros não vão para parte alguma.

Ele se entusiasma às 9h da manhã falando disso. Todo mundo meio dormindo e ele no auge da empolgação. Até que o porteiro veio avisar que, por favor, acabasse aquele comício ali porque o povo queria dormir.

FILME CULTURA

O novo número é ótimo. Cinefilia.

Pelo que vi faltou discutir sua função no presente.

No mais está tudo lá. Os grandes cinéfilos-cineastas, o Jairo Ferreira, o Biáfora, o Ademar.

Para não cometer esquecimentos, não nomearei os autores dos textos. Mas há ótimos textos.

Não sei onde encontrar, mas vale a pena dar um pulo no site do CTAV, parece que lá informam sobre isso.


Filmes que ninguém compreende
Comentários Comente

Inácio Araújo

Não sei como alguém pode enxergar tanta coisa no filmeco de Apichtapong. Fiz a besteira de assisti-lo e não aguentei ficar até o fim. E olhe que entrei “na ponta dos pés”. Por que será que é tão difícil para um crítico de cinema dizer que um filme ruim, de um diretor renomado, é apenas um filme ruim? Nota-se um certo mal-estar em Inácio Araújo ao dizer que não é fanático pelo diretor e que é difícil dizer se esse filme mereceu a Palma de Ouro. Difícil por que? Falar de animais, pássaros e macacos-fantasmas ao invés de dizer o óbvio? Ora, tenha paciência! O filme de Apichtapong lembra os de um outro embuste chamado Abbas Kiarostami, um diretor chatíssimo mas com fama de “profundo”. E depois ainda falam mal do cinemão de Hollywood…

Começo por esse comentário, feito recentemente. Não importa quem o fez. Retrata uma atitude muito freqüente no espectador eu diria deste século.

Não sei como alguém pode enxergar tanta coisa no filmeco de Apichtapong.

Ou seja: só o que eu vejo pode ser visto. Sou o centro do mundo. Qualquer entendimento que não o meu é falso ou de má-fé.

Eu queria dizer que, no caso do cinema, esse “euísmo”, para usar o termo de Celine a respeito dos artistas, essa atitude não é assim tão pessoal: ela foi cuidadosamente construída como um antiintelectualismo fim de século, que confere ao sujeito a ilusão de que só o imediatamente compreensível a seus olhos pode ser apreciado.

Nota-se um certo mal-estar em Inácio Araújo ao dizer que não é fanático pelo diretor e que é difícil dizer se esse filme mereceu a Palma de Ouro. Difícil por que? Falar de animais, pássaros e macacos-fantasmas ao invés de dizer o óbvio? Ora, tenha paciência.

Que mal estar? Com a mesma presteza com que despacha um filme ele entende que pode, no seu absolutismo personalista, me atribuir estados de espírito. Ora, o que eu disse é cristalino e não vou nem explicar. Está lá. O misterioso, o incompreensível, no caso, é a frase seguinte: “falar de animais, pássaros e macacos-fantasmas ao invés de dizer o óbvio?”. Ok. O que é óbvio? Por que não se pode falar de pássaros ou animais? Existe alguma lei proibindo? E o que há de errado com macacos-fantasmas? Centenas de filmes nos trazem fantasmas, por que por uma vez eles não poderiam ser macacos? O que tem contra macacos?

E será que a Fera de “A Bela e a Fera” é tão diferente desse macaco? E será que o ogro do Shrek é também incompreensível? Ou será que ele “diz o óbvio”? Ah, será que ele é “apenas” uma fantasia? Ok. Mas porque o macaco-fantasma não pode ser? Por que pode haver aparições em “Além da Vida”, digamos, mas não aqui? Um é “óbvio” e o outro não? Bem, nesse caso, será “óbvio” o que acontece em “A Origem”, por exemplo, tido e havido como o fenômeno intelectual do século pelos adeptos do “dizer o óbvio”. Que dizer de pessoas que entram e saem de sonhos como se sonhos fossem um supermercado? É “óbvio”? É mais compreensível do que um macaco-fantasma, por exemplo?

O filme de Apichtapong lembra os de um outro embuste chamado Abbas Kiarostami, um diretor chatíssimo mas com fama de “profundo”. E depois ainda falam mal do cinemão de Hollywood…

Passemos pelo fato de que Apichtapong não tem nada a ver com Kiarostami. O passo seguinte dessa operação consiste em dizer: se eu não entendo esse objeto absurdo colocado à minha frente, mais ninguém entende. Não é que me faltam elementos para entendê-lo. É que ele só pode ser “um embuste”. Como o cara que diante do quadro abstrato recusa-se a compreender que ali exista algum tipo de raciocínio, de continuidade. Ele diz: o meu filho faz igual.

O passo seguinte dessa operação mental consiste atribuir falsidade ao outro, ao leitor que eventualmente sinta prazer diante desse objeto incompreensível, tortuoso, portanto monstruoso, que deve ser objeto de destruição, não de entendimento – já que embustes só podem ser entendidos como tal. É como dizer: se eu não senti prazer diante disso, ninguém sentiu. Quem diz que sentiu está, claro, mentindo. O Inácio mente, está constrangido de dizer isso ou aquilo, etc.

Aí entramos num mundo conspiratório que envolve o festival de Cannes, o júri de Cannes, o distribuidor do filme, os críticos e espectadores que gostaram do filme. Eles formam uma corrente de pedantes que, como numa conspiração, parecem trocar senhas, sinais secretos, apenas para desorientar o gosto pelo “óbvio”. Óbvio que nem é tão óbvio assim, como a gente viu no caso de “A Origem”. Ou que pode ver no caso de “Benjamin Button”: o que há de óbvio em alguém nascer centenário e morrer nenê? Ou em… Enfim, talvez o mundo não seja tão óbvio assim.

Faltava a palavra inevitável: chatíssimo. Essa espécie de condenação à morte simbólica. Há duas maneiras de um filme ser chato: ou porque nós não o compreendemos ou porque o compreendemos demais. Talvez o nosso amigo do óbvio se divirta à beça vendo, digamos, “De Pernas para o Ar”. Lhe parecerá perfeitamente compreensível que uma mulher frígida descubra a sexualidade não fazendo psicanálise ou procurando um outro parceiro (o marido a abandonara, no mais): parece perfeitamente óbvio que ela descubra a sexualidade com um vibrador, que se sinta realizada abraçando um coelho movido a pilha etc. Isso lhe parece compreensível, assim como os de “A Origem”, até porque são filmes que vêm com bula, sobretudo o segundo, isso é, com essas explicações prévias que os estúdios destilam pela mídia.

E para esses leitores o único conhecimento aceitável é o das bulas de remédio. E, como se trata de fenômenos de conhecimento, é bem mais fácil imaginar que não existe desconhecido, que não existem campos a desbravar. Apenas o óbvio. O mundo já está decifrado. Quem não professa o óbvio é, obviamente, um impostor. O quê? Freud com o inconsciente? Um impostor. Picasso? Não sabia pintar, era um idiota, por isso pintava tudo torto. Godard? Nem se fala. Esse é tão óbvio que é melhor nem falar. Beckett? Como não sabia desenvolver histórias, inventava essas coisas que não vão nem pra frente nem pra trás. E todos esses, claro, contam com o beneplácito dos intelectuais, dos críticos, esses parasitas infatigáveis, sempre dispostos a dizer que se deleitaram com essas monstruosidades, mas que elevam aos céus esses impostores tipo Manoel de Oliveira, Antonioni, David Lynch… Que não compreendem que só queremos ver “uma boa história”.

Ora, o que são boas histórias? A do Homem-Aranha? Eu adoro. Mas não me parece nada “óbvio” um cara que atravessa uma cidade pulando com sua teia. O que há de óbvio nisso? Francamente, o macaco-fantasma do Apichtapong às vezes me parece bem mais acessível. Ah, mas o Homem-Aranha é cheio de aventura, não é chato. Concordo. Mas por que todo filme teria de ser cheio de incidentes, aventuras? Será que não podemos admitir – já não digo apreciar, mas ao menos admitir – que existam outras formas de narrar, outras histórias a contar que não aquelas “óbvias”, isto é, que nos parecem familiares por uma razão ou outra?

Ou seja: por que devemos exigir que o cinema nos traga sempre “o óbvio”, aquilo que já sabemos ou pensamos saber previamente? É claro que isso também tem sua função. Mas o mundo não pode ser feito apenas de faroestes, ou dramas, ou comédias. Ele precisa ser feito de faroestes e dramas e comédias e muitas coisas mais.

E depois ainda falam mal do cinemão de Hollywood…

Quem fala mal, cara-pálida? O fato de gostar de Godard ou Apichtapong ou Kiarostami não nos impede de gostar de Hollywood, ou ao menos de James Cameron, de John Carpenter, de Clint Eastwood, de Coppola (pai e filha), de George Romero, de Wes Craven, de Brian de Palma, de Martin Scorsese, de Paul Schrader, de Joe Dante…

Porque esse é o último estágio da operação (pode ser o primeiro): atribuir ao outro algo que não lhe passa pela cabeça, para melhor poder delirar em cima disso.

Para quem, sinceramente, pretende entender alguma coisa quando entra num cinema, que seja adolescente ou inculto ou o que for, eu diria que o que não compreendemos é o que ainda temos a compreender, a desbravar, a aprender. Ninguém nasce sabendo. Vivemos para aprender. Não é vergonha procurar compreender as coisas.

Para esses arremates de humanidade para quem a ignorância é o estágio máximo de humanidade, bem, segue um boas festas e um “não tem papo” à moda do Jairo Ferreira.

Chega por enquanto. Isso é uma introdução a duas ou três coisas que quero escrever a respeito de “Os Residentes” e “Santos Dumont – Pré-cineasta”, exibidos em Tiradentes.


Bela surpresa: “Remições do Rio Negro”
Comentários Comente

Inácio Araújo

Uma vantagem irrecusável de Tiradentes é que o festival traz coisas que passariam despercebidas sob o nariz dos demais festivais brasileiros.

“Remições do Rio Negro”, documentário amazonense, é um exemplo. A diretora que estava aqui se chama Fernanda Bizarria.

O que está tocado ali? Primeiro um velho padre salesiano, Casimiro, bem velho. Um lituano. Lamenta seus predecessores na missão: não entendiam nada.

Com efeito: mandavam os índios se livrarem de seu passado como coisa do diabo. A Igreja é perversa, amigo. Não é pouco, não. Nem sempre. Mas a base é essa.

Depois do padre, vamos aos índios. Ruínas. Há aquele revoltado por ter sido separado de sua cultura, há o que tenta entender o branco por sua essência de exploradores (ou capitalistas, tanto faz). Em vista disso ele quer é a parte dele.

Há aquele que tenta desesperadamente se integrar ao mundo branco. Talvez seja o mais feliz deles. Mas é uma felicidade tão torta que dá vontade de chorar.

São desterrados. Os filmes de época (governos Vargas e Juscelino) são quietamente eloquentes: aqueles indiozinhos separados. Homem pra cá, mulher pra lá, cabelos cortados. Uniformes escolares. Alguém notou: parece campo de concentração.

Nenhuma expressão feliz.

Mas o filme não é mera condenação dos salesianos. Existe a fatalidade do encontro com o branco e o desarranjo que causa. Existe uma parte de ignorância e outra (é a mesma) de prepotência cristã. Existe a violência de todo contato, a necessidade de ocupação das fronteiras, as riquezas, o diabo a quatro que fazem do índio “uma questão”.

No fim, o filme propõe o encontro do índio mais bem aculturado com o padre Casimiro. Encontro terrível.

Notável figura, o padre. Ele carrega nas costas toda a brutalidade salesiana, de que não partilha muito, não hoje em todo caso.

Encontro constrangido da parte do padre. Tanto mais que o índio se derrama todo.

Mas o padre sabe que tudo é ruína. Estamos sobre ruínas. As missões salesianas, os índios, a vida dele próprio.

Fantástico: não há tom crítico. Só mostrar. Mostrar.

Um triunfo que nunca mais veremos, porque as TVs do Brasil são o que são e só mostram porcaria.

Uma pena.


Um achado em Tiradentes
Comentários Comente

Inácio Araújo

Em Tiradentes a sala de debates está sempre abarrotada. Ninguém sabe até hoje se os debates são um sucesso ou se o pessoal vai lá para fugir do calor. Mas tudo bem: o calor está de arrebentar e ninguém tem a menor esperança de raciocinar fora do ar condicionado.

Cheguei ontem, arrebentado. Vi uma boa animação e fui dormir direto.

Hoje, no debate da manhã, o produtor de “Enchente” me pareceu o grande personagem. Chama-se Cavi Borges. Bela versão de cavador moderno. Um produtor na escola do Roger Corman, do Galante, se se quiser. Um cara que produz sem condições de produzir.

Difícil de explicar. Mas vão aí uns exemplos: ele fez um filme e deu ao camelô, pediu para que o cara pirateasse. O camelô vendeu uns bons filmes, veio a fama de ser “o novo Tropa de Elite” (acho que se chama “Mateus, o Balconista”). No fim, o Canal Brasil comprou o filme. O lucro ele reinvestiu em outro filme.

Outra be m Roger Corman. Os diretores fizeram um filme de 45 minutos. Precisava de mais metragem para fazer um longa e ter algo minimamente comercial nas mãos. Acabou que ele entrou em contato com a Liv Ullman e, melhor, ela topou entrar no filme.

Com essa concordância em mãos, ele levantou com o Canal Brasil uma grana para terminar o filme. Só que a Liv Ullman deu pra trás. Ele fez com outro ator. Não Liv Ullman. Mas entregou o filme.

Não vi o filme, não sei se é bom ou não. Mas como quase todo o cinema que se anda fazendo é, como definiu o Sérgio Alpendre, “bundão”, aí está um cara com imaginação, iniciativa, generosidade e versado na arte da gambiarra: é assim que cinema é legal.


“Tio Boonmee” pede que entremos nas pontas dos pés
Comentários Comente

Inácio Araújo

Estou longe de ser um fanático de Apichtapong Weerasethakul, cujo “Tio Boonmee” está em cartaz no Brasil e que garnhou a Palma de Ouro em 2010. Também, devo admitir, sou apenas um pobre ocidental. Não morro por nenhum desses chineses e assemelhados que apareceram nos últimos anos. È terreno em que meu amigo Cassio Starling se move melhor do que qualquer outro. Tirando o King Hu e uns caras de Hong Kong, ali da tradição do kung-fu, quem me impressionava mesmo era o Edward Yang, que morreu desgraçadamente jovem.  Mas pode ser que eu já esteja ficando meio velho e, quando isso acontece, a gente vai também se tornando desconfiado, porque a indústria (a de autores inclusive) precisa inventar nomes novos

Nos filmes de Apichtapong convém entrar na ponta dos pés. Tudo ali convida o espectador ao respeito – não a esse respeito que pede “a arte”, e sim aos seres que lá se encontram. Quem são eles? Podem ser animais, árvores, pássaros, homens, fantasmas, macacos-fantasmas, vento, sombras, cavernas.

E se podem ser chamados de “seres” é porque de certa forma todos existem numa igual dimensão. Como se o cinema de Apichtapong, como já se disse, rompesse com a tradição antropocêntrica. O homem é aqui apenas uma parte das coisas, e entretém com a natureza, com as lendas, com o tempo e os objetos em geral uma relação perfeitamente horizontal.

O encanto de “Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” pode ser resumido em apenas uma cena. Aquela em que está sentado à mesa com a cunhada e, na outra extremidade, surge o fantasma de sua mulher. Um rápido espanto. Nada demais: como se um conviva familiar tivesse aparecido inesperadamente.

Pouco depois, outra presença igualmente marcante entra em cena vindo de outra dimensão: o filho fotógrafo que, após copular com um macaco fantasma, se vê transformado em um deles. Estranho personagem, com ar da Fera de “A Bela e a Fera” e olhos vermelhos de raio laser. E todos conversam em torno da mesa.

O assunto em torno do qual tudo gira é a morte de tio Boonmee, cujos rins já não funcionam. Mas o aspecto anedótico, a “história” quase não tem importância, já que o homem que vemos integra-se à natureza, ao passado, aos demais seres. Não há balançar das folhas ao vento que não deixe a impressão de que tudo vive, de que tudo vibra.

A partir dessa estrutura tão pessoal de filme fantástico, “Tio Boonmee” se permite absorver digressões, como a notável lenda da princesa, que ao ver sua imagem refletida na água, enxerga sua beleza passada – porque o que se vê na água é ilusão. Mas a lenda (com desdobramentos fascinantes) impõe a pergunta: e o que não será ilusão? O que distingue o imaginado do acontecido? Ou, para ficar com uma imagem que “Tio Boonmee” desenvolve: o que distingue a parede de uma caverna da imagem noturna do céu?

E o que é o céu, aliás? Num dos momentos mais memoráveis do diálogo, Huay (a mulher de Boonmee) esclarece, respondendo a uma indagação do marido: “o céu é superestimado”.

Me parece muito difícil dizer se este filme tailandês mereceu a Palma de Ouro ou, mais ainda, se permanecerá ou vai virar uma dessas obras-primas que ninguém se conforma em rever a que se referia Borges. É inegável, no entanto, a originalidade e a força das imagens. Apichtapong é, na pior das hipóteses, um nome a considerar entre os cineastas que se afirmam no século 21.