Blog do Inácio Araújo

Arquivo : July 2011

Alguns problemas no “Banco Central”
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Inácio Araújo

Quem foi o cabeça do assalto ao Banco Central de Fortaleza, agora retomado pelo filme?

Foi o Barão, nos diz o filme. E quem é o Barão?

É um sujeito inteligente, simpático porém implacável, calculista, um pouco ingênuo quanto a amizade e mulheres (pois ocupa-se excessivamente com seus planos). Ok.

Mas quem é o Barão?

Ele joga xadrez (pois é calculista). Envolvente (pois monta o bando que rouba o banco). Audaz (porque rouba o banco).

Mas quem é o Barão?

Uma explicação que se dê repete sempre outra. No fim, não sabemos quem é o Barão.

Também não sabemos quem é Mineiro, exceto que é mais bonitão, mais sedutor, mais levável por mulher.

Não sabemos quem é a mulher do Barão, exceto que se trata de uma in-femme fatale capaz de descer num túnel que está sendo aberto com salto sete e meio, ambiciosa e autoconfiante o bastante para trair o Barão porque quer vida boa e queimar o dinheiro do assalto.

Não sabemos a rigor nada de nada.

Se não houvesse cinema de aventura policial antes de “Assalto ao Banco Central” o espectador ficaria completamente na mão, porque tudo são procedimentos. A femme é fatale? Então tem que fazer aquelas caras de gostosa e andar de salto em qualquer circunstância. O Barão é inteligente? Então tem que jogar xadrez. E por aí vamos, sem saber a rigor quem são essas pessoas, de onde saíram, o que pensam da vida (além de quererem ficar ricos, claro).

O binômio que comanda o filme é estreito, embora não seja mentiroso: cama e grana. É, porém, vago.

Vamos ver um que escapa a isso: o Engenheiro. Quem ele é? Ah, um comunista.

Acha que assaltar banco é mais honesto do que fundar um banco (Lenin dixit). Mas um Banco Central não é um banco como os outros, conviria lembrar. Seria mais fácil encontrar um bom engenheiro desempregado, ou falido, ou qualquer coisa assim. Um comunista que entra num golpe por ser comunista? Me poupe.

Sobretudo se o futuro, bem ambíguo, mostrar que, com dinheiro, esse comuna não é exatamente um comuna. Então: ele mentia, ele mudou?

Eis aí um tema que o filme poderia desenvolver e não desenvolve: o dinheiro muda as pessoas.

No mais, o roteiro prevê alguns surgimentos tirados da manga (o de Cássio Gabus Mendes: quem é esse cara?) e alguns desaparecimentos idem (o de Abujamra: o que acontece com esse cara?).

Isso para não falar de uma figura muito especial, que é o advogado Daniel Filho. Ele entrar na história como o mentor. O sujeito atrás da escrivaninha. Talvez o financiador.

Mas aí tem um problema: a trama teria dois cérebros? Não dá para saber. Em todo caso, é sempre mais seguro, sempre mais próximo da convenção, jogar a culpa para cima de um engravatado: garante a qualidade intelectual do golpe e suja um colarinho branco.

Suspeito que Daniel Filho entre como “o Mentor” mesmo. Não da trama, mas dos responsáveis pelo filme, provavelmente do diretor, Marcos Paulo. Daniel acertou alguns filmes na mosca e, além do mais, é uma espécie de guru da seita “cinema de comunicação”. Sabe o que faz no ramo, mas a densidade não é grande.

Melhor seria, no caso, tomar por guru Carlos Manga, do formidável “O Marginal”. Ou não tomar como guru: bastava ver o filme, ajudaria bem.

Por quê? Porque as referências do “Assalto” são escandalosamente americanas. De “Onze Homens e um Segredo”, como escreveu o Leonardo na Folha, pois é o que domina o início da trama, até “O Silêncio dos Inocentes”, para o final.

Por que eu falo do Manga? Porque o Carlos Manga, quando faz um filme, é porque tem algo a dizer.

A escola da TV não tem nada a dizer, porque se baseia em convenções, esse me parece ser o problema do Marcos Paulo (do qual o Daniel Filho escapa, diga-se de passagem, até porque no caso dele o cinema precede a TV). E “Assalto” não tem a rigor nada a dizer.

No entanto, é um filme que dá para ver do começo ao fim.

Porque o clichê, a convenção, acabam um pouco apagadas, num primeiro momento, pela narrativa, que avança e recua, em segmentos razoavelmente curtos, de maneira que se evita um suspense desnecessário (todo mundo sabe no que deu o assalto) e se cria uma dinâmica aceitável para o desdobramento da trama.

Por isso mesmo é que se sente com mais intensidade a presença de artifícios, o vazio dos personagens, o triunfo dos procedimentos.

Falta a esse empreendimento não competência, mas autoria. No velho e bom sentido: o desejo de assinar. O que Marcos Paulo queria, afinal, dizer com esse filme?

Há um quê cínico ali, para o bem ou para o mal, como se preferir, mas que termina atrofiado sob o peso dos clichês, sob a necessidade de “fazer certo”, “comunicável”.


O insuportável Harry Potter
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Inácio Araújo

A revista francesa Les Inrockuptibles não está entre aqueles que fazem do último filme de “Harry Potter” um sucesso.

Em sua carta de 20/7, Thomas Pietrois-Chabassier expõe suas razões.

Mesmo para os fãs do jovem aprendiz de feiticeiro me parece que será interessante conhecer o seu inverso.

Eu fiz a tradução, ali, em cima da perna, mas acho que o total está fiel ao sentido:

“Personagem inodoro, incolor e sem gosto, Harry Potter é um adolescente sem grande interesse, um rapaz intelectualmente banal em um universo extraordinário. Seus únicos traços de caráter são qualidades de idiota: bravura e suscetibilidade (só não fica nervoso quando fala de seus pais). Suas forças são inatas e tudo o que ele adquire deve a seus protetores (amigos, professores). O que o torna excepcional (sua vitória sobre Valdemort, quando bebê, sua cicatriz, seu lado “eu sou o eleito”) ele deve apenas a sua mãe. E é aí que se situa toda a questão da criatura de J.K. Rowling.

Em cada filme (bem/muito fiel aos livros), os personagens que ele encontra pela primeira vez têm sempre a mesma frase: “Então você é Harry Potter. Você parece com seu pai. Só os olhos que não, os olhos são da sua mãe.”

Mas Harry Potter não tem apenas os olhos de sua mãe. Ele é os olhos de sua mãe. Ele é um ponto de vista neutro, uma porta de entrada nesse mundo fabuloso, uma verdadeira câmera viva, levando, como, prova, essa capa de invisibilidade que ele leva todo o tempo ou esses óculos redondos que se tornaram o símbolo do personagem, tornando-se um par de olhos e lhe oferecendo o ponto de vista onisciente do narrador.

Obra maternal, a saga Harry Potter é sobretudo maternalista, vampirisando a figura do filho até em seus pesadelos para não fazer dele senão um garotinho sabido, respeitador das regras (quando ele é subversivo é porque tem autorização do diretor), bom aluno, bom em esportes, zeloso da memória de sua mãe e virgem (seu coração bate por uma garota tão enfadonha quanto ele, que ele beija só no final do último episódio, com 18 anos, e com quem se casará) e a quem as peripécias surgem ao acaso para transformá-lo em herói, em líder apesar dele.

Harry Potter é o filho de plástico sonhado por J.K. Rowling, o filho sem paixão nem falhas, seu orgulho, o anti-punk, o bom filhinho de mamãe. É por isso que nós nunca gostaremos dele.”

Thomas Pietrois-Chabassier


Não se pode ver tudo
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Inácio Araújo

No Paraíso da Cinefilia – Final

Uma das razões para ir a Bolonha foi a retrospectiva Boris Barnet, o cineasta russo que Godard tanto admira. Acabou que não vi senão uns dez minutos de um de seus filmes, que parecem ter bastante humor e um tipo de olhar mediado pela linguagem, que não deixa de lembrar o cineasta francês.

Da mesma forma, deixei de lado Alice Guy, tida como a primeira cineasta do mundo, que filmava, se bem me lembro, para a Pathé ainda no fim do século 19. Houve uma retrospectiva de Albert Capellani, que Gian Luca Farinelli, o diretor da Cineteca di Bologna, anunciava como talvez o primeiro grande cineasta, antes de Griffith.

Pelo que ouvi: Alice Guy, sim. Capellani, no geral, não. E perto de Griffith, então, nem se fala.

Outra diferença a tirar: “Cais das Sombras”, de Marcel Carné. Cópia nova para este filme de que Godard dizia maravilhas. Nem Sheila, nem Junior, nem eu nos encantamos com a coisa. Parece que existe um abismo entre Renoir e o resto dos cineastas franceses dos anos 1930. Não todos, mas quase todos.

No “Cais das Sombras” estamos de novo diante daquele texto floreado, meio pegajoso, de Jacques Prévert. E o restante, digo, a imagem, não conserta as coisas.

Mais esperta, a Liciane foi ver um dos quatro filmes de Luigi Zampa em retrospectiva e voltou falando muito bem.

Zampa é um desses cineastas da grande fase do cinema italiano. Começa ainda no fascismo e vai embora, até a década de 70, e no que eu tinha visto sempre com aquela energia que caracteriza a segunda linha, a honrosíssima segunda linha, dessa cinematografia em seu grande momento.

A gente via Zampa, aqui, em outros tempos. Nem sempre dava muita bola. Me lembro que “A Máfia Branca” (1973) era muito forte e suscitou uma bela crítica do Carlos Reichenbach.

O Cinema Ritrovato apresentou três filmes da série “Gli Anni”: Fui ver, então, “Gli Anni Ruggenti”, o último deles.

Antes ele havia feito “Anni Difficili” (sobre o imediato pós-guerra) e “Anni Facili” (sobre o momento da recuperação econômica).

“Gli Anni Ruggenti” trata do período fascista e é uma adaptação do “Inspetor Geral” de Gogol.

Durante o fascismo, anuncia-se a vinda, numa corrupta cidadezinha do sul do país, a vinda de um inspetor de Roma. Como ele viria incógnito, todos tomam providências para saber quem seria ele. O único a ter se registrado no hotel da cidade é Nino Manfredi, que passa a ser tratado com todas as honras e com tudo mais. Mas trata-se de um engano de que Zampa tira partido com todo o humor do mundo: ele era apenas um vendedor de seguros.

É admirável como esses cineastas italianos filmavam sem aspirar à “grande arte”, ou mesmo à “arte”. Tratava-se de divertir a si mesmos e ao público com imagens consequentes de um país ainda em convulsão.

A informação antes do filme diz que este foi o segundo filme a tratar abertamente do período fascista na Itália (o primeiro foi “O Fascista, de Luciano Salce, de 1961, portanto um ano antes). A explicação: nos anos 50 havia muitos antigos fascistas incrustados na administração e filmes assim não passavam pela censura.

Lubitsch

É impossível não fazer uma menção ao “Romeu e Julieta” de Ernst Lubitsch (1920), primor de inteligência que transforma a tragédia em comédia.

Valeria só pela primeira cena: o velho Capuleto e o velho Montecchio esperam o resultado de um processo judicial entre ambos. Em vista disso, tratam de levar subornos ao juiz. Que não se faz de rogado: coloca os subornos numa balança para ver quem deu mais. O resultado, porém, é empate.

E daí por diante.

O cinema de propaganda

Uma das sessões da mostra é “Centi Anni Fa” (Há cem anos). Filmes de 1911. A Itália estava em guerra com a Líbia, que era parte do império otomano.

São um escândalo os filmes de propaganda. Como sempre, aliás, mas com a diferença de que talvez esse seja o primeiro uso da propaganda como arma de guerra (dizia-se que seriam os alemães na 1ª. Guerra, mas esta é anterior).

Um pequeno filme volta ao de sempre: os bárbaros líbios atacando a ilibada mulher italiana. Sempre o ataque do estrangeiro à mulher…

E por aqui ficamos

Desculpe a quem não interessaram esses relatos, mas me senti na obrigação de repartir, mesmo que precariamente, o que experimentei por lá nesses dias muito especiais de um festival muito especial.


Quando começa o futuro?
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Inácio Araújo

No paraíso da cinefilia – 5

Bolonha é fértil em frases. Não são apenas frases de efeito, são sobretudo sínteses de que se pode recolher ensinamentos.

Assim, Eric Rohmer mostrava seu “Victor Hugo” (da série de filmes educativos) para Diane Baratier, explicando que o havia feito sozinho: “A pressão (contrainte) é necessária”, foi o ensinamento que ela reteve.

Rui Nogueira referiu-se ao próprio Rohmer e à sua formulação: “O povo não gosta dos meus filmes. O povo gosta de Louis de Funès. E ele tem razão”.

A melhor vem do livro que Antonio Rodrigues dedica a João Bénard da Costa, o notável diretor da Cinemateca Portuguesa, que morreu em 2009.

Ele coloca em epígrafe a questão formulada por Penelope Houston a Ernst Lindgren, diretor do British Film Institute: “E quando começa a posteridade?”

Lindgren havia dito que não exibia os filmes que tinha, guardava-os para a posteridade.

Lindgren, no mais, estava às turras com Henri Langlois justamente por isso. Langlois partia do princípio de que era preciso mostrar os filmes, ainda que as cópias se desgastassem, pois não fazia sentido enfurná-los à espera de um momento ideal, “a posteridade”, que nunca chega, como o futuro (e quando chega é inútil:a cultura cinematográfica e o que a exibição dos filmes poderia gerar já desapareceu).

Inútil dizer que a nossa Cinemateca Brasileira segue mais ou menos o princípio suicida de Lindgren (mas vamos esperar que mude: agora promete-se um ciclo dedicado ao ator Sérgio Hingst, começando por “O Quarto”, de Rubem Biáfora; que não seja um desses sobressaltos que acontecem de tempos em tempos: ou cinematecas são lugar de difusão da cultura cinematográfica ou não são nada).

O enigma do nazismo

Por que o nazismo foi capaz de atrair tanta gente? Por que, ainda hoje, depois de exterminado devidamente, ainda consegue adeptos?

A resposta talvez venha de alguns filmes nazistas, como “O Jovem Hitlerista Quex”, de 1933. Filme de propaganda, feito antes de Hitler e sua gangue chegarem ao poder, em que um jovem, na Alemanha dilacerada do começo dos anos 30, deixa-se seduzir pelo sentido de ordem proposto pelos nazis.

Cinema de propaganda: uma coisa que encolhe o mundo. Trata-se de encolher o mundo, colocá-lo na medida da freguesia que se pretende atingir, oferecer soluções simples, ou antes, simplistas, mas eficazes.

O cinema de propaganda (e o nazista por excelência) é o inverso da arte.

G.P.U (The Red Terror ou O Terror Vermelho) é de 1939. Com os nazis no poder e a guerra ali, na porta.

No filme, os comunas conspiram loucamente. Em todo lugar. As democracias acabam colaborando. Na França, onde houvera o governo do Front Populaire, os comunas já vão dizendo que “eles fizeram boa parte do trabalho por nós”.

Mas, aleluia, ainda existe a Alemanha para nos livrar do fantasma do comunismo, com suas sabotagens, traições e safadezas mil.

E a Alemanha, ordeira, nazi, eficiente, com suas mulheres sempre alvo dos inimigos (a julgar por esses filmes de propaganda nazi parece que o objetivo central do mundo era transar com as alemãs), salvava a Europa do perigo vermelho.

Nem é tão diferente do que fariam os americanos alguns anos depois. Só é mais doentio. No caso, os americanos se preocupavam em falar a si mesmos. Os alemães queriam fazer propaganda pela Europa, para recrutar adeptos anticomunistas, que lhes seriam úteis dali a pouco.

De novo, o mundo é reduzido, amesquinhado: reduz-se a uma só coisa, a uma só formulação.

Ainda que lamentável é impecável naquilo que visa, a eficácia. Goebbels podia ser tudo, mas não era bobo.


Eric Rohmer vs. Maurice Schérer
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Inácio Araújo

No paraíso da cinefilia – 4

A série de documentários escolares de Eric Rohmer merece um post à parte por vários motivos.

Primeiro, porque são extraordinários. “D. Quixote de Cervantes”, por exemplo, é um elogio à imaginação todo o tempo. O Quixote não é visto como um negador da realidade, mas como aquele que abraça o real pela capacidade de fabulação.

Já “As Metamorfoses das Paisagens” começa por nos situar nas paisagens bucólicas do passado para, ao final, fazer o elogio da modernidade.

E por aí vamos. Foram mostrados dois filmes sobre literatura “Perceval ou O Conto do Graal”, que evidentemente parece um estudo ao posterior “Perceval le Galois”, do próprio Rohmer, mais “As Contemplações de Victor Hugo”. Sem falar no “Louis Lumière”, em que o cineasta entrevista Henri Langlois e Jean Renoir a propósito, claro, de cinema.

O que é mais curioso: os filmes são apresentados como sendo de Maurice Schérer, com “realização” de Eric Rohmer.

Como se sabe, Rohmer e Schérer são uma só pessoa. Schérer é o nome de batismo de Rohmer, com o qual assinou alguns artigos ali pelos 1950.

A série faz parte de um conjunto interessante, bancado por um chefe interessante do serviço (eu não guardei o nome, perdão), que apostava nos cineastas com os quais trabalhava, entre 1964 e 1969.

Para Rohmer, foi um achado. Ele se ressentia do fracasso de seu primeiro filme, “O Signo do Leão” e tinha sido afastado da direção dos Cahiers du Cinéma. Ou seja, não tinha como ganhar a vida.

Mas, a não esquecer, antes de cineasta Rohmer foi professor. Antes de Rohmer, foi Schérer. Esse o sentido da dupla assinatura, tão rara.

Jean Douchet sublinhou o fato quando comentou a série ao lembrar que durante o funeral de Rohmer, poucos meses atrás, havia uma separação entre os Schérer, a família de Rohmer, que ficavam no coro, e os Rohmer, os amigos do cinema, que ocupavam a nave da igreja.

E Douchet diz que foi amigo de Rohmer durante 60 anos sem nunca ter conhecido os Schérer, sem nunca ter sabido de seus filhos etc.

Estranho, mas muito de acordo com o homem reservado que foi Rohmer.

A série educativa teve vários outros diretores, Douchet inclusive.

É muito improvável que se encontrem ali filmes tão precisos sobre os temas que aborda, tão específicos, e ao mesmo tempo tão cheios de idéias próprias.

Promete-se para breve uma edição desses filmes restaurados em DVD. A esperar.


O Favorito dos Cinéfilos 3
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Inácio Araújo

No Paraíso da Cinefilia 3 – Jean Douchet comenta Hawks

Kevin Bronlow, o historiador, propôs a cena do mais falado dos filmes, “Jejum de Amor”. A abertura: Rosalind Russell entra na sala do editor, Cary Grant, que está numa reunião com seus jornalistas. Ele a recebe como quem a desdenhasse, mas ela está lá para informar-lhe de uma mudança em sua vida. Ele recebe o choque, trata-se de sua melhor repórter, mas faz que não dá o braço a torcer. Fala como que para abafar o que diz Rosalind. E vice-versa. Ela também. Em resumo: ela vai embora? Outro jornal? Quer aumento? Ok. Mas só um pouco. Ela explica que não: vai casar e morar em outra cidade. Eles começam a falar então de seu casamento e divórcio. Da absurda renúncia à vida pessoal que o jornalismo impôs. Ela quer mudar tudo isso. Etc.

Francamente, tenho a impressão de que os americanos não entendem nada de Hawks, ou não se interessam por ele. Bronlow fez a escolha, uma pequena intervenção e se mandou. David Bordwell nem deu as caras. O importante veio de Douchet, claro.

Sua observação sobre a cena:

O diálogo conduz a cena, porém a situação espacial dos personagens é marcada pela posição relativa que ocupam no quadro.

Quando falam de negócios (jornal), ora Cary ora Rosalind estão na posição acima do outro, isto é, de dominação. Quando falam de amor, ao contrário, estão sempre um e outro na mesma altura.

É quase um resumo do que acontecerá ao longo do filme. Mas também a constatação da evidência: cineasta do sonoro, Hawks é também, antes de tudo, cineasta da mise-en-scène.

Outras observações.

O lugar de Hawks, a partir de sua defesa pelos “Cahiers” desde 1953. HH é o cineasta moderno por excelência.

Aquele que passou rapidamente pela influência de Murnau, que todos nos EUA receberam, mas logo deu-lhe as costas. Nada de expressionismo, nada de romantismo, nada de metafísica (Jonathan Rosenbaum falara de metafísica em Hawks…).

É um homem da mecânica e dos mecanismos. Não tem nada a fazer com o século 19. É o homem de seu tempo, do século 20, da modernidade. Assim filma.

O filme é comandado pelos olhos do herói. Mas este olhar é duplo. Ele olha um mundo que deve compreender e dominar, pois a função do homem é dominar a natureza. Ele se volta sobre o mundo a fim de organizá-lo. Daí entrarem em ação todas as forças naturais em seus filmes.

Ao mesmo tempo ele deve se olhar, reflexivamente, pois para dominar a natureza deve, também, saber quem é.

Já a mulher é a própria natureza. Daí o seu papel: ser conquistada. Douchet nota, no entanto, que à medida em que a obra evolui, a mulher passa a ter um papel cada vez mais dominador, mais ativo, como em “Rio Vermelho”.

Somos levados sempre pela ação. São filmes de ação, pois o mundo é movimento.

A máquina é o princípio. Hawks filma como mecânico, alguém às voltas com um mecanismo. HH filma as mulheres como máquinas (como os carros de The Crowd Roars? – pergunto-me). Louise Brooks em Uma Garota em Cada Porto, lembra ele, foi alvo de milhares de assobios numa sessão na Cinemateca Francesa, nos anos 1960, em presença dela. E o filme é de 1828.

Numa segunda etapa, Douchet fica meio queimado quando Rosenbaum fala que odeia “Sargento York”.

Ele diz que adora Sargento York, é filme de artista. Mostra como um camponês simples, religioso, ingênuo, pode ser retirado de seu lugar, transformado numa máquina de guerra e, finalmente em matador e herói. “Uma síntese da cultura americana” conclui, para um auditório boquiaberto.

Por hoje ficamos aqui. Mas tem mais coisa à beça. De Primeira.

Quem quiser ver uma bela parte delas, dê uma olhada no site do David Bordwell. Não entendo onde esse cara encontra tempo para escrever tudo que escreve: um fenômeno.

O “Potiche” de Ozon

François Ozon é quase sempre inesperado e quase sempre estranho. Depois de “Ricky”, no registro fantástico, “Potiche” aparece, primeiro, como comédia de boulevard.

Há o patrão reacionário e os empregados em greve. Um prefeito comunista. Um filho mais para progressista, artista, na verdade gay, e uma filha reacionária como o pai, talvez um pouco mais.

Ozon não disfarça a teatralidade da situação. Acentua. Daí o efeito de estranhamento: tudo parece um teatro.

Na verdade é. Estamos em 1977, com greves e comunistas. O mundo ainda não sabe para que lado vai. A França muito menos. Está dividida em dois, como de costume.

A família Pujol também. O homem é uma caricatura de empresário: reaça ao máximo, transa com a secretária, faz da mulher um penduricalho, tem pretensões a uma dominação patriarcal sobre a família.

Aos poucos, essa teatralidade (que traz junto certo distanciamento) vai se diluindo, mas não sendo eliminada. Vai se transformando numa fábula sobre certo quartel do século 20 e seus reflexos no 21. Em relação à mulher (ao homem, por tabela), à sexualidade, ao trabalho – o que muda e mudou faz o interesse do filme.

Que é, aliás, bem divertido de ver, embora nem de longe uma obra-prima.


O Favorito dos Cinéfilos 2
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Inácio Araújo

No paraíso da cinefilia 2

E então há, em Bologna, os primeiros sonoros do Hawks.

Fantásticos momentos: O Tubarão (Tiger Shark), com Edward G. Robinson fazendo o pescador português. O homem-tubarão, no fundo. Já se vê aqui, com nitidez, essa marca tão hawksiana que é a associação entre o homem e alguma figura animal. Há também o conflito com a natureza, a necessidade de dominá-la e de ao mesmo tempo se autoconhecer (isso, quem falou foi Jean Douchet). Scarface também tem isso: Toni Camonte é o homem-símio. Mas este é uma obra-prima tão consagrada que nem vem ao caso comentar.

Há ainda The Crowd Roars, um belo conflito entre irmãos corredores de automóvel em que não se sabe o que é competitividade e o que é afeto.

Mas talvez o primeiro momento em que vi Hawks pleno é mesmo 20th Century/Suprema Conquista, bela comédia de recasamento, mas também de um diretor de teatro e seu ego enorme em busca de sua estrela (a dominar, naturalmente) e também amada.

A mulher aparece aqui, essa figura forte que reencontraremos com frequência em seus filmes posteriores, sobretudo depois dos anos 1950. Obra-prima, também.

Por fim, não revi Barbary Coast/Duas Almas se Encontram, que vi há muitos anos e, na ocasião, me pareceu notável.

Agora, Trent’s Last Case é a esquecer.

Volto depois para completar essa visada Hawks, com a cena falada esmiuçada por Kevin Bronlow, Jonathan Rosenbaum e, sobretudo, Jean Douchet. E com a exibição de Os Homens Preferem as Loiras na Praça Maggiore.

Depois passo ao resto que, veremos, de resto não tem nada, nada mesmo.

Tropeços do CCBB

Não sei se o pessoal do CCBB leu os comentários ao post sobre o belo catálogo e a bela mostra Hitchcock. Mas as reclamações, me parece, procedem. Talvez não tudo.

Desta vez, neste ciclo, ao menos uma parte dos filmes está sendo reexibida no CineSesc, que é uma sala com maior capacidade. Mas é fato que uma sala tão pequena, desde o início, acaba sacrificando enormemente quem está interessado em ver os filmes.

Existem também as reclamações quanto ao catálogo não ser vendido, apenas distribuído a quem assiste uns tantos filmes.

E são justíssimas, essas reclamações. Se se faz um belo catálogo como este, por que não vender? (No post sobre o catálogo eu lembrava os da Cinemateca Portuguesa: nunca vi um filme lá, mas comprei vários dos catálogos deles, que além do mais têm preço acessível).

Tenho a impressão de que isso (a não comercialização) tem a ver com o fato de esse centro cultural existir em vista da renúncia fiscal: as coisas seriam feitas então a partir de um orçamento anterior (prevê-se um mil ou dois mil exemplares, sejam lá quantos forem) e então devem ser distribuídos gratuitamente.

Pode ser que não seja nada disso, apenas uma maneira de ver as coisas um tanto errada – e nesse caso, daria para corrigir. Sei lá, quando acabar a mostra, faz uma edição para vender, qualquer coisa assim.

O certo é que esses catálogos do CCBB são preciosos para a cultura cinematográfica da gente aqui, trazem muita informação e reflexão importantes – não dá para ficar regulando.

Por fim, não vi reclamação específica, mas é o seguinte: não é só a sala que é um ovo. Também a tela do CCBB é, para dizer o mínimo, precária.

Quando fizerem outra sala é preciso cuidar disso. E ter janela para todos os formatos, sobretudo os clássicos: são filmes quase quadrados (pelo enquadramento, quero dizer) que vemos completamente horizontalizados, isto é: perde-se boa parte do quadro.

Literárias:
Flip Flop

Incrível : é Antonio Candido, com mais de 90 anos, quem chama a atenção para a moleza da crítica literária atual.

Não tenho como comentar o diagnóstico todo, mas é fato que a crítica com que eu topo é uma coisa em geral frouxa, tendendo a uma espécie de clube de amigos. Digo isso e já peço desculpas aos amigos que escrevem e que por ventura se sintam injustiçados, mas eu vejo a coisa assim, à distância, como leitor não implicado na coisa.

Alcir Pecora, já disse aqui, reinventa a crítica jornalística, embora seja alguém da academia.Nisso acho que o Candido deve estar errado: a questão não é o lugar de origem.

Um chato de galocha

Quase tive um ataque de riso ao ler da surpresa geral com que se descobre ser o Lanzman um chato de galocha.

Ele fez simplesmente um grande filme, “Shoah”. No mais é pessoa de profundos maus bofes. Quase digo desprezível, mas não digo.

A morte da literatura

Está morrendo? Leyla Perrone Moisés escreve que muito do contemporâneo consiste numa constatação da morte da escrita, do leitor.

Enterro de luxo, pois: ao mesmo tempo o espetáculo literário vai a mil.


O favorito dos cinéfilos
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Inácio Araújo

No paraíso da cinefilia 1

Em Bolonha não há competição de nenhuma espécie. Os filmes são antigos, por vezes antiqüíssimos. E isso mesmo é o que interessa a quem vai lá. Todo dia, desde a manhã, se vê o cortejo. São pequenos grupos, duas ou três pessoas, às vezes uma só, a caminho da Cineteca ou de algum dos cinemas que passavam os filmes do XXV Cinema Ritrovato.

Os cinéfilos preferem Howard Hawks, como se sabe. E lá estavam os seus filmes mudos, todos, desde “Fig Leaves”, uma comédia simpática, mas que não será exagerado dizer que é pré-hawksiana, que mostra um autor à procura de si mesmo.

“Paid to Love” me pareceu aquele em que melhor se manifesta a idéia hawksiana do conflito-encontro homem-mulher. Ou seja, da resistência do homem à mulher (no caso, um príncipe que só gosta de automóveis; seu pai trama para que ele encontre uma bela garota). Há também a presença da máquina (voltarei ao tema, lembrando Douchet, que estava lá), tão importante em toda a obra de HH.

“The Cradle Snatchers” era muito esperado, porque estava desaparecido. O que reapareceu não foi o filme inteiro, faltam ao que parece dois rolos, o que torna a intriga meio sem centro. Mas pelo que se pode ver não é um filme inesquecível.

Já “Fazil” está inteiro e me pareceu muito fracote. O Luis Carlos Oliveira Junior, ou seja, o Junior da Contracampo, estava lá e achou a mesmíssima coisa. Filme chato, ponto, com Hawks indo ao Oriente dos paxás e tal, aquele da Hollywood da época, do Rodolfo Valentino e tal, coisa que não lhe cai bem.

Uma Garota em Cada Porto, ao contrário, o filme da Louise Brooks, continua uma maravilha. Me parece o mudo de Hawks que melhor anuncia o seu sonoro, no geral mais forte.

Foi uma felicidade, claro, a visão ou revisão desses mudos todos, de todos os mudos dele.

Depois vêm os primeiros sonoros, que também passaram na mostra.

Volto a eles depois. Mas, caramba, há tanta coisa e tenho eu tanta coisa para fazer aqui…

Gustavo Dahl

Chego ao Brasil e meu filho diz ter lido que Gustavo Dahl teve a melhor morte possível. Pergunto o que ele quis dizer com isso, exatamente. E me diz o Chico que ele morreu em um cinema, em Trancoso, com a família, vendo um filme…

Morrer vendo um filme, um infarto fulminante… Bem, não há maneira boa de morrer, mas se foi de fato assim, acho que tem toda razão o Francisco.


Gustavo Dahl, o bravo guerreiro
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Inácio Araújo

Estou no paraíso da cinefilia: correndo atrás de tudo que acontece, mas é impossível. Anoto tudo para, quando tiver tempo, relatar a maravilha que é isso aqui, Bolonha durante o Cinema Ritrovato.

Estava nisso. Mas a morte de Gustavo Dahl é outra historia.

Quem foi ele? Bem, na última vez que estivemos juntos, eu tive a má idéia de voltar a pé do restaurante ao hotel onde estávamos. Gustavo topou. Sofreu muito mais do que eu imaginava, não por causa do coração, mas da perna, que tinha doente.

No dia seguinte fui pedir desculpas pela gafe, porque achei que seria agradável voltar a pé, sem calcular o quanto isso poderia ser dolorido para ele. E Gustavo disse: – Mas Inácio, de que vale Ouro Preto se a gente não fizer um bom passeio?

Era isso, Gustavo Dahl. Talvez o grande conciliador do cinema brasileiro.

Não fosse por ele, por sua capacidade de aproximar as idéias mais disparatadas do mundo e disso tirar um conjunto, o Congresso do Cinema Brasileiro de Porto Alegre não teria dado em nada. Era impressionante a paciência que tinha, tanto quanto a sapiência.

Mas seu prazer estava além disso. Gostava de pensar nos filmes e de vê-los. No tempo daquelas reuniões inúteis do Conselho da Cinemateca era um consolo quando chegava para mim e dizia: “Mas o Biáfora, hein, Inácio…

E começava a falar dos ensinamentos ora geniais e ora malucos do Ruben Biáfora. Porque Gustavo era um raro caso de paulo-emiliano radical que, talvez por ter sido diretor, entendia o que significava o ensinamento de Biáfora. Foi nesse tempo, por sinal, que nos aproximamos.

(Aliás, um de seus últimos textos, belíssimo, esta na ultima Filme Cultura, é dedicada ao s seus tempos de cinefilia, ao Biáfora).

Agora, Sheila está escrevendo suas memórias. Não sei se o trabalho estava completo, mas tenho certeza de que será cheio de vida, porque acompanhei um pouco do trabalho que faziam e as coisas que tinha a dizer são vitais. Dizem respeito à formação do Cinema Novo, à Embrafilme, à cinefilia, à critica, à busca da institucionalização do cinema brasileiro.

Gustavo Dahl passou por tudo isso sem perder o humor.

Ah, e fez três filmes. Um deles, o ultimo, eu acho ruim. Talvez ele tenha parado por achar também isso. Talvez porque tivesse mais gosto cuidando da distribuição, sei lá.

Mas, mesmo num filme errado, ele sabia o que era mise-en-scène tanto quanto sabia ver um filme.

Fará falta ao cinema brasileiro. E pessoalmente considero sua morte muito dolorosa.

Vamos em frente. Não há mais o que fazer, não é assim?


A arte do catálogo
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Inácio Araújo

Começamos, enfim, a fazer catálogos de primeira para acompanhar mostras de primeira, isso que há Cinemateca Portuguesa faz há décadas e diante dos quais só restava babar, invejar e, se possível, comprar.

Agora o CCBB desenvolve essa arte no Brasil.

No ano passado houve a retrospectiva John Ford. E agora a de Hitchcock. Entre as duas, mais modesta, a de Luc Moullet.

Todas com catálogos de primeira linha: bem informadas no que diz respeito às traduções e também bons textos brasileiros.

De novo a apresentação é de Ruy Gardnier, que continua a escrever magnificamente bem.

Na minha opinião, ficou faltando apenas um trecho, ao menos, ou uma menção ao belo livro de Jean Douchet sobre o grande mestre inglês.

Não é uma reclamação, claro, só uma observação.

Só estive na retrospectiva no dia em que participei do debate.

Quem quiser fazer elogios ou críticas, sinta-se à vontade.