Blog do Inácio Araújo

Arquivo : April 2012

As belezas do “Xingu”
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Inácio Araújo

Até aqui o cinema do Brasil criou épicas negativas: derrotas, basicamente. A saga dos Villas-Bôas no Xingu me pergunto se é “vencedora” ou não.

Mas os elementos são interessantes. Há a Marcha para o Oeste, primeira grande empreitada de conhecimento territorial, se a gente não pensar nos Bandeirantes ou, talvez, Rondon. Aqui está o nosso faroeste, de certa forma.

Há uma visão de encontro do país consigo mesmo que é importante. A rigor, não conhecemos os índios. Temos deles uma idéia muito primária. São ou “os bugres”, na concepção mais preconceituosa (e que nos envolve a todos: terra de bugres, dizia-se antes) ou os “primitivos”.

Esse segundo caso é a concepção da antropologia do tempo de Rondon, Roquete Pinto e tal. O índio é nosso homem pré-histórico. Nossa tarefa, portanto, é queimar etapas, trazê-lo à civilização.

Os Villas-Bôas, ao menos no filme, formulam a coisa de outro modo, mais próximos da antropologia estrutural. Não sei se é coisa do filme, mas a idéia deles é mesmo essa: quanto menos contato melhor.

Ponto dois: é um filme de aventuras e de aventureiros. De caras que não aguentam a civilização, a cidade. Acham que liberdade é na selva. Mais ou menos como os cowboys do Velho Oeste.

Agora, é interessante como essa empreitada (a deles, mas também a do filme) acaba indo na direção oposta à da antropologia pré-Levy Strauss. Quer dizer: o importante é civilizar o branco, não o índio.

E nesse sentido é que eu vejo uma épica a desbravar. A do conhecimento do outro que há em nós (a imagem final do índio de uma tribo cujo nome esqueço, a última a fazer contato, é impressionante, porque já não fala dos índios que conhecemos, mas de outros).

Tenho a impressão de que o sucesso desse filme dependerá muito não apenas da aceitação da saga dos Villas-Bôas, como, sobretudo, de um desejo de encontro dos brasileiros consigo mesmos.

Penso que isso não diz respeito apenas aos índios. E volto à imagem belíssima e terrível de alteridade que é a última figura do índio no filme. Trata-se também de ver as diferenças que existem entre nós mesmos, playboys e manos, como dizem, ricos e pobres, cultos e incultos.

Não é fácil. Não será fácil. Será tão difícil como abordar os índios, entendê-los. Vejo meus colegas jornalistas em geral revoltados com um manual escolar em que a “norma culta” não é a única norma. A gritaria é análoga à do “mata índio”, ou “índio é atrasado”.

Me parece que é necessário um pouco mais de compreensão pelos outros. Não se trata de ensinar que o certo é “nóis vai”. Trata-se de remover o pesado estigma que paira sobre quem fala errado. Ou escreve errado.

Meus colegas jornalistas sabem o quanto sofrem com a norma culta. O quanto os jornais investem em professores de língua para evitar ao menos erros escabrosos. Talvez em função dessa disciplina terrível eles tenham criado um respeito excessivo, ao meu ver, à norma culta.

Se a gente for ver nossos clássicos, eles pululam de erros. Felizmente.

Que eles tirem esse peso maldito de nossas costas. Que as pessoas aprendam a escrever, aprendam a norma culta, mas sem esse respeito religioso, respeito imobilizante.

Essa segunda parte parece que não tem nada a ver com “Xingu”, mas tem. Tem também o fato deCao Hamburguerter feito um bom filme antes. De aqui ter ido mais longe.

O filme anterior era “O Diaem que MeusPaisSaíram de Férias”. Ou quase isso. Era sobre guerrilheiros. Agora foi ao Xingu. Ver os índios. Mas os índios não são o único episódio do Xingu, dessa parte do país, não é?

Me parece que apontar para essa possibilidade de os habitantes do país se verem e se reconhecerem uns nos outros (não pensarem, os ricos: ah, eu sou europeu, não sou daqui etc.) é uma grande coisa.

Cinema que faz sentido.


Quem foi Heleno de Freitas ?
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Inácio Araújo

 

O estranho em “Heleno” é que tudo funciona. Os figurinos e a maquiagem, a cenografia e a fotografia. Não falemos de Rodrigo Santoro: sempre que dele se exige o extremo, responde indo ao extremo e mais um pouco, a se exaurir. As duas atrizes são bem escolhidas e os coadjuvantes também. É boa a direção dos atores

No entanto, a gente sai de lá sentindo falta de um filme… Como se cada parte fosse acessória, mas faltasse um coração. E não digo isso por ter ficado com a impressão de algo falso ou mesmo oportunista (impressão que a Conspiração lega com tão insistente freqüência). Não fiquei.

No que pude perceber, penso que há dois setores um tanto equivocados. O primeiro, o de roteiro. A opção por abolir a cronologia, que poderia ser feliz, resulta apenas um tanto confusa. Eu mesmo, que conheço razoavelmente (mas de muito tempo atrás) a trajetória do craque do Botafogo, às vezes não sabia em que ponto estávamos e muito menos porque estávamos ali, que papel tinha uma tal sequência estando em um dado ponto da intriga.

A opção pela cronologia poderia talvez ter deixado mais evidente o percurso e as circunstâncias que o levam da revelação de um talento luminoso à decadência precoce. Na pior das hipóteses, haveria a possibilidade de estabelecer um crescendo dramático. E permitiria talvez desenvolver de maneira mais aprofundada as relações complexas entre uma sociedade de preconceitos com o futebol, e do futebol com um jogador que destoava inteiramente desse meio (era bacharel, vinha de família bem posta, era um tipo galã, inteligente etc.).

O roteiro também deixa escapar certas particularidades do próprio Botafogo, um clube que aceitava bem essas excentricidades, digamos assim, no seu meio futebolístico.

Vale, porém, dizer que “Heleno” evita o novelesco tão característico da dramaturgia cinematográfica brasileira atual. Essa coisa 1930.

Quanto à parte terminal de sua vida, o desenvolvimento não cronológico não é problemático.

A direção é o outro problema, talvez o mais grave. Ao final do filme não sabemos o que era Heleno, afinal: um louco, um rebelde, um arrogante, um mulherengo, um bêbado, um doente crônico, um sedutor ou um chato.

O filme hesita muito. Essa hesitação é, me parece, o que faz a diferença entre um filme que começa bem e depois patina loucamente, já que as situações novas propostas não fazem senão reiterar aquilo que já vimos anteriormente, com ligeiras variações.

O que tento dizer é que, se ao final sabemos muito pouco sobre Heleno de Freitas não é porque o filme criou uma atmosfera de mistério, de tal forma que ele poderia possuir qualquer um desses atributos ou vários deles.

Parece, antes, que a direção simplesmente não soube escolher que linhas acentuar. Ou, em suma, o que dizer sobre Heleno. Admito que não é fácil, mas há momentos em que ele parece apenas um arrogante, um bocó metido a besta. E não era assim. Desde o início não era assim. Não optar claramente por um aspecto ou dois (“o rebelde”, “o maldito”, etc.) limita o filme mais do que amplia o conhecimento ou nossos devaneios a respeito.

Um ponto à parte, porque não diz respeito apenas a “Heleno”, é a timidez mórbida na filmagem de sexo. Não é, claro, exclusividade deste filme. Hoje em dia é assim que funciona no mundo todo, a menos que você se chame Cronenberg, ou De Palma, ou algo assim.

Mas aqui fica meio escandaloso, porque é do sex appeal de um cara que se trata ao menos durante um terço do filme. E em pelo menos mais um terço do sex appeal de duas garotas bem atraentes.

No filme, porém, tudo acaba nuns beijinhos, o mais das vezes, ou numas transas absurdas, como aquela de Rodrigo e Angie Cepeda, em que só vemos os dois rostos pulando na tela. A exclusão do corpo é tão mais escandalosa quanto é de corpos que se trata: a cantora e o jogador de futebol são corpos, antes de tudo.

As coisas não melhoram muito com a mulher de Heleno. Aí tem uns clichês meio radicais, do tipo a mulher que enfia o pé no peito dele deitado na cama. Pô, faz favor…

O pior momento é aqueleem que Helenopuxa a cantora, a Cepeda, pelos cabelos e a gente pensa, agora vai. Agora vai ter uma transa de Cronenberg, dessa em que os dois vão se arrebentar os ossos, a pele, a alma. Mas aí o que se segue são os beijinhos de sempre.

É importante acentuar que este filme me pareceu honesto. Foi feito com mais sentido de paixão do que de oportunidade, o que não costuma acontecer no novo cinema brasileiro. Apesar da produção de época, o filme tem menos frufru do que a média da produtora.

Já falei do elenco? Rodrigo Santoro, sempre que se pede algo excepcional dele, comparece. Incrível. O elenco é ok. Essa Angie Cepeda seria a sex symbol do Mercosul, se houvesse um sentido de marketing no Mercosul.

(Já está muito comprido. Volto amanhã com Raul Seixas).


O cinema perigoso de David Cronenberg
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Inácio Araújo

Texto para a Ilustrada desta sexta-feira, 30 de março:

Para David Cronenberg não existe doença mental – ou antes: toda doença mental, toda dor psíquica tem uma tradução física. Basta ver a primeira cena de “Um Método Perigoso” para entender seu pensamento: uma mulher grita, contorce-se, bate-se dentro da carruagem que a leva até um hospital psiquiátrico.

Essa doente é Sabina Spielrein e, quando começa seu tratamento com o dr. Jung, tratamento pela fala, nota-se com clareza ainda maior como se manifesta essa doença: na dificuldade de falar, nos retorcimentos agônicos do corpo, na sufocação que parece inscrita em seu olhar.

Sabemos desde então por onde passará, no filme, tanto o encontro como o posterior conflito (ambos intelectuais) entre C.G. Jung e Sigmund Freud: pelo corpo. O corpo contido, protestante, de Jung. E o corpo inquieto, judaico, de Freud (inquietude que se manifesta no olhar, no charuto). Haverá no meio alguns outros corpos, mas o essencial é o de Sabina, cuja melhora a leva a tornar-se amante de Jung.

Sabina (aliás uma futura psicanalista) é, de início, um corpo em que a dor é produzida pela violência paterna. Transforma-se, com o tratamento, em corpo de amor, de prazer. Um prazer que não exclui a dor (ah, parece que Cronenberg é o último cineasta a saber filmar cenas de sexo, isto é, de amor).

Sabina será também, ao menos no filme, o eixo do conflito entre Freud e Jung, na verdade. Ela ama a Jung, o homem por quem revela-se o caminho do seu desejo, mas entende melhor a Freud: afinal é da resistência de Jung à abordagem da sexualidade por Freud que nasce a distância entre os dois homens.

Embora seja possível testemunhar algumas discussões sobre psicanálise ao longo do filme, está claro que não há a menor necessidade de compreendê-las. O essencial virá sempre da imagem, do físico. Assim é no momento em que Freud, sentindo-se apunhalado por Jung (desejo do filho de matar o pai) desmaia e cai, como que simulando a própria morte. Ou durante a visita a Jung de uma Sabina grávida (de outro homem) – momento lancinante, pois percebemos que esse filho deveria ser dele, Jung.

Se os filmes mais recentes de Cronenberg pareciam obra de um cineasta um tanto conformado com a atual realidade cinematográfica (que, no entanto, sempre buscou driblar), “Um Método Perigoso” o reencontra na trilha de sempre, de autor irredutível ao cinema dos bons modos. Podia-se temer ao abordar as relações entre um grupo de intelectuais: teria cedido ao “filme de arte”?

Seu “Método” prova que não, que é um cineasta do “filme de filme” a cada passo, a cada cena. E o que é próprio do humano, visto por Cronenberg, é o sofrimento, a agonia, o gozo: o perigo, enfim, de que essas aventuras intelectuais (a da psicanálise e a do filme) constituem uma demonstração.

Por fim: se Cronenberg não esconde que sua simpatia científica pende para o lado de Freud (o que já é bem mais que nada, neste momento em que se acredita na cura não pela fala, mas por pílulas mágicas), não deixa de reconhecer o que há de poético no pensamento metafísico de Jung.


O Arcebispo, o Roda Vida, a natureza
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Inácio Araújo

É boa a imagem do arcebispo de São Paulo, pelos poucos minutos em que o vi no Roda Viva de segunda-feira.

Ele tem um ar direto, inflexível, mas não dogmático, seguro mas não arrogante.

Mas um momento me chamou a atenção, logo que liguei, e nem sei a pergunta que foi feita.

A resposta, no entanto, era a seguinte, mais ou menos: a natureza fez dois sexos, e estava certa ao fazê-lo. Era uma maneira, me parece, de se opor a casamento gay e similares.

O que me espanta é a catolicidade falando em nome da natureza, já que esse não é o seu forte. O que há de natural, afinal, em retirar dos sacerdotes a sexualidade?

Rigorosamente nada. A natureza não tem nadinha a ver com isso. Para ficarmos no exemplo mais evidente.

Fico nele, senão a gente não acaba nunca.

A começar da prática constante de pedofilia, que a Igreja a vida inteira ocultou (ah, disso eu sei: quando estudava num célebre colégio de padres, célebre demais para o meu gosto, havia um padre que assediava um aluno, quando o caso foi descoberto – não sei por quem talvez no interior da ordem). Ele foi tirado do colégio e transferido para uma região mais distante, o Jaguaré, onde a ordem desenvolvia trabalho social (portanto com pobres).

Como eu disse: fiquemos por aqui. A Igreja pode invocar a Deus. À natureza, nem tanto.


110 por hora
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Inácio Araújo

A história da morte na estrada já rolou, já teve entrevistas do pai bilionário, da família do finado, a polícia já inocentou o rapaz em 10 minutos, muita gente o culpou em mais ou menos o mesmo tempo.

Vamos, sem maior perda de tempo, nos entender: essa história não vai dar em nada.

Mas alguns pontos merecem que a gente se detenha sobre eles.

O rapaz, o filho do Eike Batista, dirigia uma Mercedes. Ele jura que estava a 110 por hora. Desculpe, se estivesse a 110 numa estrada ele não seria apenas inocente, seria um bocó.

110 km/hora é quanto esse carro pega em segunda marcha. Não tem sentido subir nele para andar a essa velocidade.

51 pontos

O mais misterioso nessa história não é se o ciclista estava bêbado, no meio da pista, andando pelado ou o que for.

E sim: como um motorista com 51 pontos na carteira não recebeu uma notificação em casa, não tinha notícia das multas, etc?

Não era o caso de se perguntar ao Detran como pode esse tipo de milagre acontecer? É freqüente? Eike Batista mora numa zona perigosa, onde o Correio não se arrisca a chegar?

Porque na minha casa não há maldita notificação de multa, justa ou injusta, certa ou errada, que não chegue.

7 meses

Recebo notícia da Defensoria Pública SP, pelo email.

Ninguém dá notícia da Defensoria. Então dou eu.

Eles conseguiram habeas corpus para um rapaz preso em, se bem me lembro, São José do Rio Preto. Foi condenado pelo juiz de 1ª. Instância por roubar um boné avaliado em R$ 10,00.

A Defensoria pediu habeas corpus para ele, baseado na insignificância do roubo.O juiz negou.

Só em segunda instância foi possível libertar o rapaz.


“Habemus Papam” e o espetáculo papal
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Inácio Araújo

É preciso ter passado anos e anos perto do Vaticano para investir seu imaginário com tanta precisão nesse que é o momento mais espetacular da Igreja Católica: a eleição de um novo papa.

É preciso ser um cineasta, também.

Tudo no Vaticano é uma questão de mise-en-scène, de criar um grande espetáculo, capaz de submeter os fiéis, de fazê-los se sentir pequenos diante da magnitude “divina” do que lhes é dado ver.

Ver e não ver, aliás.

Porque uma parte essencial do espetáculo papal é o que não vemos: tudo que ocorre antes que a fumaça branca apareça e anuncie que, enfim, existe um novo papa.

Ora, em “Habemus Papam” o que Nanni Moretti imagina é uma anomalia: o cardeal indicado aceita o papel, mas pouco depois é vítima do “trac”, essa espécie de pânico que por vezes toma conta dos atores antes de entrar em cena.

Mas o “trac” que vitima o cardeal não é de ordem psicológica, ou não apenas, ou não sobretudo psicológica. Trata-se de outra coisa: da necessidade, para cumprir suas funções, de compreender um mundo que, doravante, se mostra fechado à compreensão. Da percepção de que muita coisa precisa ser mudada no mundo (e a Igreja interfere nisso), mas não se sabe o quê.

Ainda quanto ao teatro, duas cenas fantásticas: uma, a da loucura do ator, que se põe a recitar todas as réplicas de uma peça. Aqui ele se parece muito com o cardeal, que nada tem de louco, mas percebe que sua função o obriga a dar todas as réplicas, representar todos os papéis ao mesmo tempo, ser um e ser todos. Outra, aquela em que o Teatro do Vaticano invade e toma um teatro e impõe seu espetáculo.

Um retorno forte de Nanni Moretti, este. O filme tem muito humor na parte, justamente, em que comparece como ator, fazendo um psicanalista. Mas o tratamento à crise do novo papa evita qualquer deboche: por mais anticlerical que um romano possa ser, não é hora para isso.


“Shame”, um verdadeiro filme de artista
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Inácio Araújo

 

Há tempos eu não ouvia falar tanto de um filme e há tempos eu não esperava um filme com tanta ansiedade quanto “Shame”.

Havia muitos motivos para isso que não diziam respeito diretamente ao filme, como o fato de o diretor se chamar Steve McQueen, o que é estranhíssimo. Quis ver o filme em Roterdã, mas não tinha mais lugar. Era o filme mais procurado.

Então corri para vê-lo. E devo dizer que a decepção foi grande. “Shame” é um filme de artista. E em qualquer sentido que eu procure definir essa palavra, não há como soar positivo.

Sobre o que é o filme? A rigor, não sei. Em vez de ver o filme eu via os enquadramentos, tanto eles procuravam chamar a atenção para si mesmos. A decoração, aquele moderno perpétuo, igual, monótono, igualmente azulado e gélido em todos os ambientes, também não ajuda muito.

Mesmo no momento em que há uma tentativa de suicídio o filme chama a atenção não para o sangue, mas para o vermelho.

Lembrei do que disse o Godard, de que no cinema não existe sangue, existe vermelho. Sim, mas o impacto o que faz é o sangue. É preciso que o vermelho e o sangue se integrem, senão o espectador permanece indiferente.

E a sensação que eu tive é de que o público estava inteiramente indiferente ao drama do Michael Fassbender, embora pareça claro que ele é muito bom ator. Não era apenas eu.

O novo Steve McQueen, me parece, sofre de arte, do fato de ser artista plástico, isso ainda domina seu cinema e o sufoca tanto quanto o sexo sufoca seu personagem.

Habemus Papam

Já Nanni Moretti está em grande forma. Seu “Habemus Papam” é bem o filme de um italiano que bordeja o Vaticano a vida inteira. E a idéia de um papa em crise existencial, esmagado pelas responsabilidades, é muito interessante e desenvolvida com humor e sensibilidade.


Quando o artista vai preso
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Inácio Araújo

Existe algo de diferente no rosto dos artistas, quando são presos em manifestações, como aconteceu agora com George Clooney.

Não é como nós, que temos a temer da polícia. A polícia faz a prisão de modo meio protocolar, um pouco como se fosse sua obrigação, um pouco envergonhada de estar fazendo propaganda para o ator e para Hollywood em geral.

Quanto à celebridade, seu rosto tem uma dupla expressão, como se uma se sobrepusesse à outra.

Primeiro, há algo de heróico nele, como se voltasse à condição de simples cidadão que cumpre seus deveres políticos.

Ou melhor, que representa um papel cheio de dignidade (no caso de Clooney é papel que representa com frequência, no mais: quase um duplo de seu personagem no cinema, mas referendado agora pela vida real).

De todo modo ele sabe que voltar à simples cidadania é impossível, de maneira que existe um quê de alívio, de certeza da impunidade em sua expressão.

Com essa certeza, vem também a certeza da vitória, de que isso vai estar nos jornais, na TV, na internet, que sua causa acabará, afinal, triunfando.

No tempo do macarthismo a barra era um pouco mais pesada, mas a mesma sensação é transmitida pelas fotos de época, de Bogart etc.

Não se volta a ser um homem qualquer, exceto voltando a ser um homem qualquer. Aconteceu com alguns atores no macarthismo. Não vi foto nenhuma deles em manifestações posteriores.


Jornalismo e arte
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Inácio Araújo

Alberto Dines propôs a questão que eu não soube responder no programa “Observatório da Imprensa”: “Não será o jornalismo, também, uma arte?”.

No momento, agora, eu penso no que disse Borges certa vez: “arte é o que nos dá felicidade”.

Se for por aí, direto, o jornalismo não é uma arte, já que seu objetivo não é proporcionar felicidade, mas informar.

Pode-se usar um critério metafórico. Não será a medicina, por exemplo, uma arte? O cirurgião que corta o tecido humano com precisão e salva nossa vida não seria um artista? Ou o jornalista que utiliza habilmente as palavras seria um artista?

Mas esse critério leva longe e, cada vez mais, pode se tornar impreciso. O ensaísta é um ensaísta. Não se pretende que seja um artista, por mais forte que seja seu pensamento.

E por aí vai.

O artista é um criador de formas. O domínio da arte é o da criação e fixação de formas. Formas inúteis, pode-se acrescentar.

Se tirarmos a inutilidade fora, a arquitetura pode ser vista como uma arte. Talvez seja mesmo, pois é essencial para o embelezamento (ou não) das cidades e para o nosso bem estar de cidadãos.

Por esse critério pode o cinema figurar entre as artes?

A mancha do cinema, na primeira metade do século passado, era ser uma arte dependente da realidade. Ele não cria formas, mas se apropria de formas que estão na realidade.

No entanto, ele as seleciona e as articula. Ele redesenha a realidade, digamos assim. E a ressignifica, também.

Talvez o cinema esteja na base da crise da arte, que já não tem certeza do que seja. Então uma roda de bicicleta ou um urinol, se deslocados para um museu, tornam-se objetos de arte. Essa a proposta de Duchamp, não é?

Mas Duchamp pouco se lixava para a felicidade do seu espectador ou para a produção de beleza.

Quanto mais se avança nesse campo, mais a definição de arte me parece vaga o bastante, subjetiva o bastante, para temer até pelo seu desaparecimento.

Chegará o momento em que não nos reconheceremos nem mesmo nas formas do passado e que afinal nos constituem em larga medida?

Sei lá… Me parece que essa questão é muito maior que eu. Quem quiser se aventurar…


O retorno do reprimido
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Inácio Araújo

Por acaso, ligo na TV “Total Recall”, “O Vingador do Futuro”, que eu não via há alguns séculos. Fiquei com a impressão de que o cinema deu pra trás enormemente.

Era um filme de aventura, ficção científica de aventura, e Schwarzenegger é um operário que vai a uma empresa em busca de férias em outro planeta, Marte no caso.

Mas não há outro planeta. A firma implanta uma memória nele. E lá vai ele, já com um problema logo de saída.

E houve problema? Quando? Ele está viajando em um sonho (ou memória implantada?) ou está de fato? É um agente ou apenas imagina que é?

Mais: na ação ele se coloca ao lado dos terroristas de Marte contra o ditador que controla (e vende) todo o ar do planeta.

Então temos um filme para massas, nada de “filme de arte”, mas em que a dúvida sobre a existência mesmo do real é proposta com todas as letras, em que a experiência do cinema e a do sonho (e/ou memória implantada) é esmiuçada, portanto a imagem é posta em questão.

E há, no mais, ditaduras que podem ser combatidas por terroristas, como ocorreu ao longo de toda a história (o poder os chama de terroristas, eles se chamam de Resistência, guerrilha ou algo assim).

Ou seja, é fácil notar um enfraquecimento quase doentio da ficção que nos é dada ver.

Segundo, há que se constatar a vitória da linguagem de direita, que impôs, por exemplo, a expressão “terrorista”, a partir do 11 de setembro, como algo intrinsecamente ilegítimo (ah, até os ditadores árabes chamam os seus rebeldes de “terroristas”).

O mundo é de direita hoje, até as esquerdas são de direita. Quem manda é o discurso, muito do mais do que os votos.

Mas por vezes o reprimido retorna, como a nos lembrar que já andamos um pouco melhor.

O procurador de miolo mole

O que é isso, companheiro? A coisa está preta. Um procurador de Minas propõe suspender um dicionário, o Houaiss, porque dele consta a acepção pejorativa da palavra “cigano”.

Mas o que fazer? Limpar o dicionário? Estamos chegando nesse ponto de jurisdicismo?

O Hélio Schwartsman, na Folha, escreveu contra essa insanidade. Citou alguns exemplos.

Acho o melhor o “judiar”. Vamos extirpá-la? Seria justo.

Mas quem judia? Os judeus? Ou eles são judiados tão frequentemente? Não sei.

E nós, canhotos? Poderão nos chamar impunemente de sinistros?

E nós de esquerda? Somos sinistros?